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O Direito e sua interpretação na atualidade

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Agenda 22/06/2008 às 00:00

1.Falando do Direito

Na atualidade, como conseqüência do desenvolvimento da humanidade, a sociedade contemporânea, principalmente a partir da segunda metade do século XX, tem-se caracterizado pela crescente complexidade das relações humanas. Ademais, uma crise se abate por sobre o Estado Nacional e alcança, em especial, a soberania – esta tomada como o poder de criar e aplicar normas internas e defender sua autonomia no cenário internacional. Tais fatores fazem com que se torne inadiável uma (re)estruturação do Direito, mormente no seu âmbito aplicativo, fundamentada em alguns referenciais a partir dos quais possamos pensá-lo com objetividade.

Historicamente, o direito tem sido objeto de estudos de uma série de "escolas de pensamento" que o definem e o desenvolvem, a partir de determinado mirante epistemológico. De um modo geral, o direito formal burguês e o direito materializado do Estado social constituem os dois paradigmas jurídicos mais bem-sucedidos na moderna história do direito. De uma maneira sintética, pode-se dizer que a análise do direito sob as lentes da ciência divide-se em interna, que examina o fenômeno do direito a partir de suas normas jurídicas, e externa, que se ocupa em explicar o direito a partir da sociedade ou do social. [01]

A visualização do direito como ciência, no ocidente, iniciou-se no século XX, tendo como referência o pensamento do Hans Kelsen – em especial a partir de 1934, com a publicação de sua Teoria Pura do Direito, que representa um divisor de águas no pensamento jurídico e influenciou a maior parte dos sistemas jurídicos ocidentais.

O pensamento de Kelsen, influenciado pelos estudos do Círculo de Viena – grupo de filósofos fundador do positivismo lógico, neopositivismo ou da chamada filosofia analítica –, desenvolveu-se no objetivo de conferir à ciência jurídica objeto e métodos próprios, permitindo ao jurista autonomia científica [02] e culminou na elaboração de um sentido normativo próprio das proposições jurídicas e na construção sistemática de um sistema de regras destinado a garantir a consistência de decisões ligadas a regras, independentizando o direito da política. Buscava-se, assim, uma pureza no estudo do direito, partindo-se de uma visão interna que reduzisse o objeto de estudo do cientista jurídico à norma tomada esta como a expressão jurídico-legal de um acontecimento externo que, por sua significação objetiva, constitui um ato conforme ou contrário a direito. Visava-se uma pureza axiológica, tendo o direito como um sistema social padrão para a conduta humana distinto da moral, por estatuir sanções coativas.

Ao lado dessa teoria, e muitas vezes aspirando a combatê-la, surgiram outras que, a partir de outros mirantes epistemológicos, procuraram explicar o fenômeno jurídico de maneira distinta da proposta por Kelsen, que via somente na norma o objeto de estudo do jurista, excluindo toda e qualquer intervenção de valores de sua análise, sejam estes históricos, sociais ou individuais.

Dentre essas outras teorias, e ao que parece em caminhos diametralmente opostos, mas com o mesmo esforço de conferir cientificidade ao direito, têm-se a teoria sistêmica, apoiada no pensamento do Niklas Luhmann, e a teoria discursiva, de Jürgen Habermas, que, ao contrário de exclusão de interferências de valores sociais, toma o direito a partir do social, em uma perspectiva interdisciplinar, onde se colocam conceitos estranhos à teoria jurídica diferentemente, portanto, da perspectiva em que se baseia o neopositivismo kelseniano. Estas três correntes sobre como é o direito merecem exposição.

1.1 A matriz neopositivista e a Teoria do Hans Kelsen

A concepção do direito expressada por Hans Kelsen - mais especificamente no livro intitulado Teoria Pura do Direito [03] - representa um marco no estudo do direito, principalmente pela preocupação em analisar o direito como ciência desde uma perspectiva interna, ou seja, a partir da norma jurídica, de forma a abstrair toda e qualquer interferência de valores. Com efeito, Kelsen procura analisar o direito fora do campo da sociologia, filosofia, política etc., de modo a considerá-lo como objeto em si, separado de outros ramos da ciência.

Kelsen inicia a realização da sua teoria a partir do pensamento inaugurado pelo chamado Círculo de Viena, formado no início do século XX por um grupo de filósofos cuja preocupação era a constituição de uma teoria da ciência como disciplina autônoma, que acabou fundando o chamado positivismo lógico ou neopositivismo, corrente mais tarde conhecida pelo nome de filosofia analítica.

Os principais integrantes dessa escola foram Moritz Schlick, Rudolf Carnap, Friedrich Waismann, Otto Neurth, Herbert Feigl e Hans Hahn. O programa filosófico do Círculo de Viena ganhou influência, sobretudo nos países anglo-saxônicos, onde suas investigações não se limitaram ao campo da teoria da ciência, mas se estenderam aos domínios da ética, da filosofia da linguagem e da filosofia da história.

De acordo com os neopositivistas, ou positivistas lógicos, o ideal de ciência poderia ser construído a partir de dois princípios básicos, quais sejam, o princípio do empirismo e o princípio do logicismo, motivo pelo qual esta corrente também era denominada Empirismo Lógico.

O primeiro princípio consubstanciava-se no entendimento de que um conceito só seria significante se possuísse uma base empírica, formulada a partir da experiência sensível, enquanto o segundo – princípio do logicismo – fundava-se na idéia de que, para um enunciado ou sistema de enunciados possa equivaler a enunciado científico, deve ser passível de exata formulação na linguagem lógica.

Desses princípios decorre que toda a filosofia analítica se preocupasse na exigência de que os conceitos científicos pudessem ser reduzidos a conceitos observacionais. Neste sentido, o centro da questão era o seguinte: se a ciência empírica pretende informar sobre o mundo empírico, real, factual, é preciso que seus conceitos tenham um fundamento empírico. Parece que essa pretensão só poderia ser realizada caso fosse possível mostrar que os conceitos da ciência são passíveis de serem reduzidos, ou seja, traduzidos em uma linguagem observacional [04]

Com os olhos fixos nestes referenciais, entende-se a transposição kelseniana (realizada do pensamento da Filosofia Analítica para o direito, principalmente no que se refere à preocupação com a fixação do objeto científico que, a toda evidência, mostra-se calcado na situação posta, factual, real, qual seja, a norma jurídica - objeto que possui a natureza de refletir um acontecimento experiente) a partir de uma análise lógico-formal, onde formula as bases da teoria do direito, tomando uma postura neopositivista pelo fato de fundar a ciência do direito em proposições normativas que descrevem sistematicamente seu objeto. [05] Assim, como marco fundamental da teoria de Kelsen, está a determinação do objeto do conhecimento científico, que, para o jurista, é a norma jurídica reguladora do comportamento humano.

Outro aspecto de relevante interesse para o entendimento do direito a partir do pensamento kelseniano é a observação de que, para construir sua teoria original, ele buscou elementos no pensamento do Immanuel Kant - em especial, em relação à concepção da norma fundamental [06] -, principalmente em sua Crítica da Razão Pura, no desiderato de "purificar" o objeto de estudo da ciência do direito, que é a norma, afastando dela toda e qualquer influência de valores externos, de molde a tornar estranho, em sua concepção de ciência do direito, o conteúdo valorativo das normas.

Em sua Crítica da Razão Pura, Kant responde a três questões fundamentais de filosofia: Que possamos saber? Que devemos fazer? Que nos é lícito esperar?

Em Que possamos saber?, Kant distingue duas formas de saber: a) o conhecimento empírico, que tem a ver com as percepções dos sentidos, isto é, posterior à experiência; b) o conhecimento puro, aquele que não depende dos sentidos, ou seja, é anterior à experiência. Este último depende de uma afirmação universal e que para ser válida, não depende de nenhuma condição específica.

Ao espelho destes conceitos kantianos, Kelsen fundamenta sua Teoria Pura do Direito estabelecendo as concepções pricipiológicas do "ser" – a realidade das relações sociológicas – e o "dever ser" – o plano normativo – pondo a norma fundamental que comanda o edifício normativo como fruto do conhecimento puro, portanto, de concepção a priori, como a norma suprema, indiscutível quanto à sua validez, determinada por um "acordo" para possibilitar o equilíbrio das relações intersubjetivas, que possibilitam o equilíbrio da ordem social e até a própria sobrevivência do homem social. Assim, formula Kelsen que todas as normas cuja validez possa remeter-se a uma e mesma norma fundante básica constituem um sistema de normas, uma ordem normativa; a norma fundante básica é a fonte comum de todas as normas pertencentes a uma e mesma ordem. E é assim, nesse sentido, que os constitucionalistas tomam a Constituição como norma fundante básica das ordens jurídicas estatais.

A teoria do direito do Kelsen também possui influência do neo-kantismo em seu ideal de ciência pura. Nos capítulos iniciais de sua obra, Kelsen mantém os pressupostos kantianos, que, pouco a pouco, se mesclam com os neopositivistas. O ideal de pureza implica em separar o conhecimento jurídico do direito natural, da metafísica, da moral, da ideologia e da política. Por isso, Kelsen tem como uma de suas diretrizes epistemológicas basilares, o dualismo kantiano, entre ser e dever ser, que reproduz a oposição entre juízos de realidade e juízos de valor.

A purificação desejada por Kelsen na construção de sua teoria tem, além disso, como aspecto fundamental a percepção de que a sociedade é complexa, existindo no convívio humano uma série de aspectos que, para a compreensão do direito como ciência, devem ser afastados. Pode-se dizer, de uma forma bastante perfunctória, que a idéia de Kelsen, ao procurar a purificação de seu objeto de estudo, seria reduzir complexidades de fatos percebidas na sociedade.

Neste sentido, a purificação da ciência do direito é realizada a partir de cinco níveis, ou cinco purificações, quais sejam: 1) a purificação anti-causalística ou anti-naturalística, que definiu a ciência do direito como sendo normativa como a teologia e a ética, afastando de sua análise o que chamou de ciências causais; 2) a purificação intranormativa, onde separa, dentro das ciências normativas, o direito da ética e da teologia; 3) a purificação política e ideológica, afastando da ciência do direito, comprometimentos de ordem moral, política ou ideológica, preocupando-se tão-somente com a normatividade; 4) a purificação anti-jusnaturalista, que defende que a preocupação da ciência do direito deve estar voltada para o direito positivo, posto, factual, e não a um pretenso direito natural; 5) a purificação monista, onde, para análise científica, não há separações entre as várias áreas do Direito (civil, tributário, penal, comercial, etc.).

Portanto, desse dimensionamento, podemos entender que a pureza da ciência do direito decorre da estrita definição de seu objeto (corte epistemológico) e de sua neutralidade (corte axiológico) [07].. Estas questões metodológicas são imprescindíveis ao entendimento do pensamento do Hans Kelsen e de sua Teoria, principalmente no que se refere à separação entre teoria e práxis, afastando da análise do direito a função social da lei [08].

1.1.1.Os sistemas estático e dinâmico do Direito de Kelsen

Ingressando na teoria mesma de Kelsen, é preciso citar alguns pontos que são importantes para pensar o direito a partir da matriz neopositivista e que se mostram interessantes para o contraponto com a matriz teórica sistêmica e do agir comunicativo. Dentre estes pontos, estão os sistemas estático e dinâmico que descreve em sua obra mater.

Kelsen propõe que o conhecimento científico do direito pode ser apreendido utilizando-se do rigorismo elementar na metodologia neopositivista, a partir de duas perspectivas através das quais as normas devem ser consideradas. Assim, a filosofia analítica do direito assenta-se em dois campos de atuação, a serem agilizados respectivamente pela Teoria do Sistema Jurídico e pela Teoria das Regras Jurídicas, que ele retrata nas teorias estática e dinâmica do direito, respectivamente. Segundo ele, a primeira tem como objeto o direito como um sistema de normas com validez, o direito em seu estado de equilíbrio; a segunda, o processo jurídico no qual o direito se produz e se aplica, o direito em seu movimento.

Em verdade, segundo se depreende da própria terminologia utilizada por Kelsen, embora fique a ressalva de que o vocábulo "sistemas" que utiliza não se confunde com a matriz sistêmica adotada por NIiklas Luhmann, a estática e a dinâmica são dois tipos diferentes de sistemas de normas.

Segundo a natureza do fundamento de validade, podem-se identificar os dois sistemas de normas: o estático e o dinâmico. As normas do sistema estático, quer dizer, a conduta determinada pelas normas aos indivíduos, é considerada como devida e tem o espírito indicativo de ideal para o bom equilíbrio do convívio em sociedade (daí o dever ser) por força de seu conteúdo: porque a sua validade pode ser reconduzida a uma norma a cujo conteúdo pode ser subsumido o conteúdo das normas que formam o ordenamento, como o particular ao geral. Assim, por exemplo, as normas: não devemos mentir, não devemos fraudar, devemos respeitar os compromissos tomados, não devemos prestar falsos testemunhos, podem ser deduzidas de uma norma que prescreve o ideal de veracidade. O outro tipo, o dinâmico, é caracterizado pelo fato de a norma fundamental pressuposta não ter por conteúdo senão a instituição de um fato produtor de normas, a atribuição de poder a uma autoridade legisladora ou – o que significa o mesmo – uma regra que determina como devem ser criadas as normas gerais e individuais do ordenamento fundado sobre esta norma fundamental. Kelsen aclara este ponto com o seguinte exemplo: "um pai ordena ao filho que vá a escola. À pergunta do filho: por que devo eu ir à escola, a resposta pode ser: porque o pai assim o ordenou e o filho deve obedecer às ordens do pai. Se o filho continua a perguntar: por que devo eu obedecer às ordens do pai, a resposta pode ser: porque Deus ordenou a obediência aos pais e nós devemos obedecer a Deus, ou seja, um dogma convencional" [09]. Portanto, as normas de característica fundamental a priori e os costumes representam o tipo dinâmico do sistema normativo – e no princípio dinâmico se deve buscar a fundamentação. Por sua vez, a fundamentação das normas delas derivadas, e que constituem o sistema normativo estático, deve ser buscada através do princípio estático.

Verifica-se, assim, que o sistema estático de normas preconizado por Kelsen refere-se às normas jurídicas enquanto instrumento padrão, regulador da conduta humana. É a partir desta análise do tipo estático de normas que se encontram os enunciados deônticos, o "dever ser", com mais evidência, posto que nele encontram-se os direitos subjetivos, o dever, personalidade jurídica, etc., destinado a reger o agir dos homens.

Por outro lado, a teoria dinâmica do direito "aponta às normas jurídicas, a saber, aquelas que regulam a produção e aplicação do direito". Constitui o sistema dinâmico utilizado por Kelsen, referindo-se ao processo de aplicação e produção das normas pelo qual o próprio direito se autoproduz e a partir do qual são analisadas as situações de unidade da ordem jurídica, o fundamento do direito, a validade das normas etc., isto tudo como sendo fruto da função das autoridades jurídicas, sejam elas legisladoras ou judicantes. Distingue a função da ciência do direito da função da autoridade, ao defender que a ciência do direito só pode descrever o direito, não podendo, à diferença do direito produzido em normas gerais e individuais pela autoridade jurídica, prescrever algo. Neste sentido, Kelsen leciona que a ciência do direito é conhecimento deste, não conformação do mesmo.

Sob tal perspectiva, assenta-se com maior visibilidade a idéia de norma hipotética fundamental e, em outras palavras, a idéia de que somente o direito cria o direito. Ou seja, o direito seria resultado de um processo de "autoprodução" [10]. Nas palavras do próprio Kelsen, o direito regula sua própria criação [11].

Importante ainda salientar que estes sistemas de normas do pensamento kelseniano relacionam-se na medida em que a unidade lógica do ordenamento jurídico e a validade das normas mostram-se inseparáveis, tendo como via de comunicação a estrutura lógico-formal.

1.1.2.A norma hipotética fundamental

Com a preocupação de fundamentar o direito, mais especificamente com o objetivo de sustentar a sua validade sob a perspectiva lógico-dedutiva a partir da idéia de purificação axiológica, portanto, afastando aspectos morais, políticos, históricos, ideológicos, Hans Kelsen formula a norma hipotética fundamental.

Conforme se depreende do sistema normativo dinâmico de Kelsen, a validade e a ordenação lógica do direito se dão a partir de uma norma hierarquicamente superior, donde provém a idéia da pirâmide normativa que tem em seu topo a Constituição de um Estado. Em última análise, a proposta kelseniana assenta-se, na intenção de afastar as idéias jusnaturalistas, em adotar como critério de validade sempre uma norma anterior e superior. Kelsen lança mão de uma norma que deve sustentar o fundamento de validade da ordem jurídica como um todo, mas que necessariamente não tenha sido editada por nenhum ato de autoridade. Uma norma não posta, mas suposta e isto se encaixa no conceito apriorístico de Kant.

Assim, a norma hipotética fundamental, ou norma fictícia, para dar o fechamento necessário à Teoria Pura do Direito, não podendo ser oriunda de postulados metajurídicos ou transcendentais – posto que incidiria no erro jusnaturalista combatido por Kelsen –, surgiria do esforço racional, lógico-dedutivo, de molde a fundamentar a existência do direito positivo analisado.

Sob esta óptica, como anteriormente foi referido, não há como fugir da conclusão de que o fundamento do direito assenta-se no próprio direito, restando interferência externa.

Entretanto, embora sendo uma visão interna do direito que propugna por não comportar influência de outras ciências, no capítulo final da teoria pura do direito em que trata da interpretação jurídica, Kelsen adentra neste âmbito.

A separação entre teoria e praxis está bem caracterizada no capítulo final de sua obra, o qual é dedicado à interpretação do direito.

Das cinco purificações do direito que Kelsen veicula na sua Teoria Pura, destacam-se duas que são extremamente importantes no processo interpretativo para a aplicação e produção do direito. Por razões distintas, na concreta interpretação normativa, sobressaem a purificação monista e a purificação política e ideológica. A primeira, pelo seu peso e relevância, pois, filiando-se a qualquer das escolas de pensamento jurídico, o jurista não fugirá da visão unívoca do direito no âmbito do entendimento técnico.

Considerando que o conteúdo dos direitos e obrigações é o comportamento ou a conduta humana, a concepção kelseniana do direito desconsidera o dualismo tradicional que o desdobra em direito subjetivo e direito objetivo, reduzindo todo ele ao direito objetivo. Nesse sentido, a sua técnica de manipulação aponta fundamentalmente à totalidade do direito em sua validez objetiva e nessa atitude objetivista e universal dá ao direito uma conformação orgânica vendo cada um dos seus ramos em uma relação sistêmica com os demais.

O segundo destaque é relevante porque além de se perceber no capítulo dedicado à interpretação jurídica uma considerável aproximação entre a teoria kelseniana, que trata de uma visão interna do direito, e as duas outras que descritas a seguir, as quais dão o perfil do direito a partir de uma visão externa, também se vislumbra certa desconformidade entre o que no geral a teoria propugna e a particular lição no que diz respeito à interpretação da norma jurídica tanto pelos aplicadores e produtores do direito quanto pelo cientista do direito que, segundo defende, não produz direito.

Kelsen bifurca o processo interpretativo da norma jurídica em interpretação autêntica, que é a interpretação da autoridade e única habilitada a aplicar e produzir o direito e a interpretação não autêntica, esta efetuada ou pelos indivíduos que não têm que aplicar o direito, senão acatá-lo ao levar a cabo a conduta que evita as sanções, e pelo cientista do direito, quando descreve um direito positivo.

Kelsen confirma como não poderia ser diferente, a existência da discricionariedade do interprete no processo de concretização normativa. Afirma que a norma jurídica traz em seu bojo uma indeterminação relativa que tanto pode ser decorrente de intenção do legislador, ao deixar espaço de adequação ao fato pelo aplicador do direito, quanto pode ser não intencional face ambigüidade de texto, discrepância entre a expressão lingüística e a vontade da autoridade que ditou a norma, ou mesmo por contradição normativa no mesmo texto da lei.

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De todo modo, Kelsen define que a indeterminação da norma oferece ao aplicador do direito varias possibilidades conforme a direito, que o conduz a uma decisão, mas não a uma única decisão correta, ainda que apenas uma decisão se converta em direito positivo. Quanto aos métodos de interpretação, afirma Kelsen, não existe nenhum – caracterizável juridicopositivamente – capaz de distinguir entre os vários significados lingüísticos de uma norma, qual deles possa ser designado o "correto".

Durante toda a lição da teoria pura do direito, Kelsen, com profundidade e rigor científico, trabalha para sedimentar as cinco purificações. Entretanto, embora com a mesma grandeza dos demais, no curto capítulo que fecha sua obra, ao tratar da "interpretação da norma", objeto central de estudo da ciência jurídica, admite, expressamente, a influência de normas metajurídicas e mais, implicitamente, admite o comprometimento de ordem moral, político, ideológico e de outras ciências no âmbito do direito, senão vejamos.

A Teoria Pura do Direito nos oferece a imagem do direito como um "corpo" ou "organismo" possuidor de vida donde podemos inferir, metaforicamente, que a Ordem Legal (sistema estático) seria seu "arcabouço", mero manequim, que nada seria sem seu ingrediente vital, a praxis interpretativa que o põe em movimento (sistema dinâmico) e responde por sua "autoprodução".

Em suas palavras, o mestre da teoria pura atesta que "la interpretación es un procedimiento espiritual que acompaña al proceso de aplicación del derecho, en su tránsito de una grada superior a una inferior" [12]. Portanto, a interpretação da norma é um ato humano cognoscitivo em que o interprete joga com todo seu cabedal de conhecimento formado não apenas pela ciência jurídica.

Em outra parte, querendo demonstrar equívoco na representação em que se funda a teoria tradicional da interpretação por esta defender que a determinação do ato jurídico por cumprir-se, não efetuado pela norma jurídica por aplicar, pode ser obtida mediante alguma espécie de conhecimento do direito já existente, porque esta posição é contrária aos pressupostos da possibilidade de uma interpretação, afirmando que a pergunta de qual seja a possibilidade "correta", no marco do direito aplicável, não é – segundo os pressupostos prévios – nenhuma pergunta dirigida ao conhecimento do direito positivo, não é uma pergunta teórico-jurídica, mas um problema político, Kelsen está admitindo a influência da política no direito. Isto é tão verdade que logo a seguir afirma que a limitação discricional de criação do direito, imposta ao legislador e ao juiz quanto ao conteúdo da lei, é apenas de quantidade e não de qualidade, sendo menor a do primeiro. [13]

Esta posição de admissibilidade da influência de normas metajurídicas fica expressa e claramente evidenciada no capítulo dedicado à interpretação da norma jurídica, no texto que extraímos da obra conforme abaixo, para o que Kelsen apenas justifica no caso, tomá-las (as normas metajurídicas) transformadas em normas jurídicas positivas o que, a meu ver, justifica, mas não explica a extremada pureza que defende para a ciência do direito:

"En tanto en la aplicación de la ley, por añadidura de la determinación necesaria del marco dentro del cual debe cumplirse el acto que se efectuará, puede tener lugar una actividad cognoscitiva del órgano de aplicación, no se trataría del conocimiento del derecho positivo, sino de otras normas que pueden desembocar aquí en el proceso de producción del derecho: normas morales, normas de justicia, juizos de valor sociales, etcétera, que se suele denominar con rótulos tales como: "bien común", "interés del Estado", "progreso", etcétera. Desde el punto de vista del derecho positivo nada cabe decir sobre su validez y verificabilidad. Desde ese punto de vista, tales especies de determinación sólo pueden ser caracterizadas negativamente: son determinaciones que no provienen del derecho positivo mismo. En relación con ellas, la realización del acto jurídico dentro del marco de la norma jurídica aplicable es libre, es decir, es librado a la libre discrecionalidad del órgano chamado a efectuar el acto, como si el derecho positivo mismo delegara en ciertas normas metajurídicas, como la moral, la justicia, etcétera; pero de ese moso, esas normas se transformarían en normas jurídicas positivas." [14]

1.2.A matriz pragmático-sistemica e a Teoria de Niklas Luhmann

Demonstrada em linhas gerais a concepção de direito a partir de uma análise interna, ou seja, considerado o direito a partir da norma jurídica, que com Hans Kelsen ganhou notoriedade e influenciou grande parte dos ordenamentos ocidentais, cabe realizar um corte e visualizar o fenômeno jurídico a partir de uma análise externa como nos oferece as teorias desenvolvidas por Niklas Luhmann e Jürgen Habermas.

As visões ora propostas, até mesmo como contraponto à matriz neopositivista que resultou no normativismo kelseniano e extremou o positivismo jurídico, parte de uma análise sociológica do direito, considerando este como elemento social e, portanto, não excluindo de sua análise valores morais, políticos, históricos, etc. Nesta perspectiva, parte-se do entendimento da sociedade como sistema, o que provoca, para análise do direito, uma profunda mudança epistemológica.

Primeiro, veremos a concepção do direito desenvolvida por Luhmann, que se origina da idéia hobbesiana da auto-afirmação naturalista dos indivíduos eliminando a razão prática através da autopoiesis de sistemas dirigidos auto-referencialmente. Para tanto, parte-se do esforço que ele empreendeu para a construção de uma teoria geral da sociedade.

Ao empregar os sistemas autopoiéticos ao direito, Luhmann consegue reduzir a complexidade social. De tal modo, os estudos de Luhmann apregoam que o direito, em seu viés autopoiético, se (re)cria com base nos seus próprios elementos. Sua auto-referência permite que o direito mude a sociedade e se altere ao mesmo tempo movendo-se com base em seu código binário (direito/não-direito). Tal característica permite a construção de um sistema jurídico dinâmico, segundo ele, mais adequado à hipercomplexidade da sociedade atual.

A base dos estudos iniciais de Luhmann vem das pesquisas sobre sistemas desenvolvidas por Talcot Parsons [15] e que resultou na formulação da Teoria dos Sistemas. No entanto, Luhmann passou, principalmente a partir da década de 1960, a formar uma abordagem própria sobre os sistemas que resultou em uma análise sociológica do direito, excluindo-se, portanto, a visão puramente normativista. Entretanto, Luhmann teve a influência de Parsons somente na primeira fase de seu pensamento, época em que, entre outras, surgiu a obra "Legitimation durch Verfahren" de 1969 ("Legitimação pelo Procedimento"), partindo, após, para uma visão original, voltando-se para análise do direito como sistema autopoiético.

Sua obra pode ser dividida em duas fases: a primeira, do início dos anos 60 até meados da década de 1980, é a fase em que formulou uma teoria de sistemas funcional-estrutural, tendo por base a diferenciação entre sistemas e ambiente. O sistema define-se por diferença ao ambiente, através de mecanismo de seleção de equivalentes funcionais que servem para a redução de complexidade.

A segunda fase é destacada por sua principal obra: Soziale Systeme (Sistema Social, esboço de uma teoria geral), publicada em 1984. Nesta obra Luhmann introduziu uma nova concepção de sistema social, tendo por referência a mudança de paradigma na teoria geral dos sistemas, produzida por dois biólogos chilenos: Humberto Maturana e Francisco Varela. Essa mudança significou a substituição dos sistemas abertos, caracterizada pela diferença entre sistema e ambiente, pela teoria dos sistemas autopoiéticos. [16]

Para a formulação de sua teoria dos sistemas, Luhmann parte da constatação da profunda e crescente complexidade da sociedade contemporânea, entendendo por complexidade a totalidade das possibilidades do mundo, sendo o objetivo da criação dos sistemas a diminuição desta complexidade. Conforme o próprio autor, complexidade significa que sempre existem mais possibilidades do que se pode realizar. [17]

Outro ponto sobre o qual Luhmann se apóia é o conceito de diferenciação funcional que, no seu entendimento, é outra característica da sociedade contemporânea, ou seja, considerando a sociedade como sistema, dentro dele diferenciam-se cada vez mais os subsistemas, como o econômico, o político, científico, e o próprio direito que, por sua vez, diferenciam-se internamente, como é o caso do direito penal, civil, comercial, etc.

Assim, em um primeiro momento, complexidade e diferenciação funcional são dois conceitos que embasam a teoria sistêmica de Luhmann. Nesta perspectiva, o direito surgiria como sistema dinâmico, funcionalmente diferenciado, em evolução permanente no seio da sociedade, e que age como redutor dessa complexidade. Como diferenciado funcionalmente, o sistema jurídico, enquanto círculo recursivamente fechado de comunicação se delimita auto-referencialmente em relação a seu mundo circundante, de maneira que passa a desenvolver as suas relações com o exterior apenas através de observações, portanto, sem contato direto. Em cambio, ele descreve seus próprios componentes em categorias jurídicas e aplica esta autotematização para constituir e reproduzir com meios próprios os atos jurídicos. Como conseqüência, a autonomia do sistema jurídico firma-se na medida em que seus componentes são entrelaçados entre si, de modo que, internamente, as normas e ações jurídicas vão se produzindo umas às outras e os procedimentos e a dogmática identificam e vinculam essas relações.

Na concepção de Luhmann, o sistema jurídico não mantém uma troca com os outros sistemas que compõem o seu mundo circundante e nem mesmo influi neles de modo regulatório. O contato fronteiriço com eventos situados em outros sistemas, produzidos pela observação, oferece apenas oportunidades para o sistema jurídico fechado autopoieticamente influir sobre si mesmo. Não pode, portanto, assumir funções de orientação na sociedade como um todo. Quando muito, o direito pode regular a sociedade num sentido metafórico: na medida em que se modifica a si mesmo, ele se apresenta a outros sistemas como um mundo circundante modificado, em relação ao qual os outros podem reagir, indiretamente, do mesmo modo.

No modelo autopoiético, e em especial no processo judicial, segundo Luhmann, o direito tem que deduzir sua validade positiva a partir do direito vigente, lançando fora todas as pretensões de legitimidade que ultrapassem esse nível. Não há interface direta com o mundo circundante: o próprio processo político, a esfera pública e a cultura política formam mundos circundantes, cujas linguagens o sistema jurídico não entende.

A teoria sistêmica do direito, comunicando a norma jurídica com o social e a práxis, fornece um importante passo para a construção de uma nova teoria do direito relacionada com as funções do Estado: aqui estamos claramente refletindo sobre o direito de um Estado interventor. [18]

Dessa forma, podemos entender a sociedade como meio no qual estão presentes os sistemas funcionalmente diferenciados, como direito, economia, política, que não se confundem com o meio nem com os outros sistemas, mas com eles se comunicam, todos postos no objetivo de reduzir a complexidade do mundo.

Estes sistemas, nesta fase, são entendidos por Luhmann como fechados e abertos ao mesmo tempo, justificando o par binário sistema/meio (ou sistema/entorno), onde o sistema é fechado no sentido de que um sistema tem características próprias que não se confundem com o meio, mas, ao mesmo tempo, mantém relação com este meio de onde obtém informações que são por ele assimiladas e que retornam ao meio.

Outro aspecto fundamental na teoria de Luhmann é o conceito de contingência que, junto com a complexidade, forma um dos pontos de partida para a análise dos sistemas, e que se mostra mais relevante quando Luhmann passa a trabalhar com a sociologia do direito. Contingência, assim, pode ser considerada como sendo as possibilidades de um sistema. Em outras palavras, considerando que existem inúmeras possibilidades para as mais diversas formas de experiência, e que os fatos poderiam ser (ou terem sido) diferentes do que ocorreram, temos que a contingência é a variação dessas possibilidades, ou, conforme diz, o fato de que as possibilidades apontadas para as demais experiências poderiam ser diferentes das esperadas [19], que leva a aceitar a idéia de constante frustração, o que o direito, em Luhmann, também busca minimizar.

Num segundo momento, principalmente na década de 1980, influenciado pelos estudos dos biólogos Humberto Maturana e Francisco Varela, Luhmann remodela sua teoria sistêmica, modificando alguns dos seus pontos e passa a trabalhar com os conceitos de autopoiésis, fechamento operacional e acoplamento estrutural, onde o próprio direito aparecerá como um sistema que se auto-referencia, embora tenha comunicação e interferência do meio através do que chama de irritações causadas por um sistema em outro sistema ou pelo meio no sistema que podemos matizar como se fora um modo de erosão e aluvião que decorre do roce no relacionamento fronteiriço entre os sistemas.

Sintetizando o seu pensamento em relação aos sistemas sociais, a teoria de Luhmann tem a comunicação dos sistemas como seu elemento central. Sistemas sociais são sistemas de comunicação e a sociedade é o sistema social mais abrangente. Um sistema é definido pela fronteira entre ele mesmo e o ambiente, separando-o de um exterior complexo. O interior do sistema é uma zona de redução de complexidade: a comunicação no interior do sistema opera selecionando apenas uma quantidade limitada de informação disponível no exterior. O critério pelo qual a informação é selecionada e processada é o sentido (em alemão Sinn).

Na perspectiva mais recente da teoria dos sistemas autopoiéticos de Niklas Luhmann, a sociedade é entendida como o sistema global de comunicação: é dentro do sistema da sociedade que ocorre a totalidade dos processos comunicativos. A sociedade é composta apenas por comunicação. Todo o resto, que não pode ser entendido como comunicação, constitui o ambiente em relação ao qual, ao se diferenciar, o sistema adquire sua unidade.

Os organismos vivos reproduzem a vida a partir da vida pré-existente. Utilizam-se para tanto de elementos ingeridos provenientes do meio externo, mas, em seu interior, os apreendem e transformam de acordo com suas características individuais. E ao final desse processo, produzem e reproduzem a si mesmos.

Reconstruindo essa noção, Luhmann teoriza que para os sistemas sociais a comunicação serve de operação de autoprodução. No interior da sociedade, a produção de sentido na lógica de cada subsistema oferecerá elementos futuros para a reprodução da diferença com o ambiente. Na dinâmica interna dos sistemas, um feixe de premissas de experimentação se constitui numa organização estrutural que leva a uma pré-seleção das possíveis relações, entre os elementos internos, que serão admitidas pelo sistema.

Nesse singular entendimento, o homem figura como ambiente para o sistema da sociedade, estando fora dele. Mas a sociedade não existe sem homens, por que o sistema existe na única condição de que ele possa ter um ambiente do qual se distinga. Mas é apenas na auto-referência, definindo o que é comunicação e o que não é, em termos de informações relevantes ou não, que a sociedade se distingue como unidade. Ademais, apenas retirando o homem do conceito de sociedade pode-se conceber que mesmo que a comunicação se dê sem que a totalidade dos indivíduos sempre dela participe, ainda assim ela possa ser universalmente referente.

A interação é uma ação de um objeto físico sobre outro - os objetos físicos podem ser considerados desde partículas pontuais até campos quânticos.

Além da interação puramente física, o termo designa a ação conjunta humano-humano e humano-máquina. Em termos simples, ocorre interação quando a ação de uma pessoa desencadeia uma reação em outro (humano ou não). Esta interação pode ter diversos níveis, desde a simples bidirecionalidade até a interatividade.

Uma sociedade é um grupo de indivíduos que formam um sistema semi-aberto, no qual a maior parte das interações é feita com outros indivíduos pertencentes ao mesmo grupo. Uma sociedade é uma rede de relacionamentos entre pessoas. Uma sociedade é uma comunidade interdependente. O significado geral de sociedade refere-se simplesmente a um grupo de pessoas vivendo juntas numa comunidade organizada.

1.2.1 Autopoiésis, fecho operacional e acoplamento estrutural

É na segunda fase do pensamento de Niklas Luhmann que aparece o conceito de autopoiésis [20] como substituição ao conceito de sistema aberto/fechado. Pode-se dizer que a idéia de autopoiésis para Luhmann assenta-se na idéia não só de auto-organização interna, mas na autoprodução das estruturas para os elementos do sistema, servindo como auto-referência. Das Palavras de Luhmann se vê que um sistema é constituído por elementos autoproduzidos e por nada mais. Tudo o que opera no sistema como unidade – mesmo que seja um último elemento não mais passível de ser decomposto – é produzido no próprio sistema através da rede de tais elementos. O ambiente não pode contribuir para nenhuma operação de reprodução do

A modificação do pensamento de Luhmann, portanto, revoluciona o conhecimento sobre sistemas a partir do momento que admite que nenhum sistema vive graças ao fornecimento de vida por parte do ambiente, ou seja, as operações, como processamento de informações do sistema, são internas. Dessa idéia de que o ambiente não contribui para este processo surge o conceito de fechamento operacional, ou seja, o ambiente não contribui para a reprodução do sistema, e vice versa, para clarificar que um sistema não pode operar fora de seus limites.

Aqui estimo caber um aparte: Embora respeitando a tese de Luhmann, me vejo compelido a um contraponto no que se refere ao direito, pois o entendo como um sistema também autopoiético, mas que vai além de sua própria autopoiesis, pois também se modifica aceitando influência de outros sistemas, portanto, influência do ambiente, para disciplinar as novas relações intersubjetivas que surgem e que não possuem preexistência de normas objetivas específicas – daí a requisição emergencial do instituto da integração normativa – como também o direito se produzindo no sentido de vetoriar futuros comportamentos sociais. Essa posição converge para o posicionamento de Gunther Teubner a esse respeito.

Em verdade, todos os sistemas que se qualificam por suas funcionalidades específicas existem apenas na mente humana para efeito de redução da complexidade de compreensão para efeito didático, mas, de verdade, o que existe é a unicidade vital com os diversos sistemas interagindo, uns entrando nas órbitas dos outros em um modo de peso e contrapesos, limitando e estatuindo, enfim, acoplando-se operacionalmente.

Essa unicidade vital se desenvolve em espiral de aros crescentes na qual brotam outras espirais iguais sistêmicas. Paralelamente, esse mecanismo também existe funcionando no mundo do conhecimento que também se subdivide em sistemas. O conhecimento se desenvolve dentro de um modelo de espiral semelhante ao do mundo da vida e da espiral enciclopédica brotam outras espirais sistêmicas de conhecimento. Uma delas é do direito, sendo que no sistema direito nascem, em razão da evolução humana, outros subsistemas espirais que são os seus diversos ramos. Em resumo, se fizermos uma viagem de retorno partindo de qualquer ponto de qualquer dessas espirais, transitaríamos direta ou indiretamente por todas as demais até chegarmos na espiral fundamental enciclopédica. Nesta viajando regressivamente chegaríamos até seu ponto de origem. Isto tem similaridade ou é a evolução darwinista aplicada ao mundo do conhecimento. Estendo a essa concepção, a hipótese do Big Bang do conhecimento visto que, um dia, todo conhecimento humano esteve condensado, concentrado em apenas um ponto que em determinado momento eclodiu e posteriormente explodiu, fragmentando a inteligência.

Voltando à concepção de Luhmann, em que pese as não interferências diretas do meio no sistema e vice versa, e dos sistemas entre si, fica claro que eles possuem influências um no outro, através do que Luhmann chama de irritações, ou seja, alguns efeitos gerados no ambiente que, através do acoplamento estrutural, interferem no sistema. No pensamento de Luhmann, estas interferências, somente aparecem sobre a forma de informações que são captadas pelo sistema a partir do meio. Entretanto, aqui cabe um questionamento: se a geração crescente das relações intersubjetivas que conduzem a evolução da humanidade provoca "roces" entre os sistemas sociais, será que esses "roces" não implicam em um processo de erosão pelo qual (além de novos elementos que surgem), elementos se separam de sua localização sistêmica original e transportam-se para depósitos noutros sistemas pela ação das atividades humanas? E se isto ocorre não estará concretizada uma direta intercomunicação entre os sistemas?

A ligação entre o meio e o sistema operacionalmente fechado, portanto, dá-se através do acoplamento estrutural, conceito também tomado da teoria de Humberto Maturana, que serve como fundamento para explicar a idéia de que o sistema somente existe em função do ambiente que, embora seja pré-requisito para a existência do sistema nele não interfere diretamente, segundo o entendimento de Luhmann.

O conceito de acoplamento estrutural é tomado mais uma vez de Maturana com a tarefa de indicar como sistemas autopoiéticos, operacionalmente fechados, podem existir num ambiente que, por um lado, é pré-requisito da autopoiésis do sistema e, de outro, não intervém nesta autopoiésis. O conceito de acoplamento estrutural designa assim uma forma para interdependências regulares entre sistemas e relações ambientais, que não estão disponíveis operacionalmente, mas que precisam ser pressupostas. [21]

A partir destes principais conceitos utilizados por Luhmann na descrição dos sistemas sociais, desde a primeira fase de seu pensamento até a segunda fase da pesquisa sobre sistemas, pode-se extrair a concepção de direito a partir desse novo enfoque epistemológico.

1.2.2 A idéia do direito como sistema

Pode-se dizer que todo o ordenamento jurídico, independente da matriz teórica que o analisa, encerra a idéia de sistema, no sentido de que em todos se encontram presentes as idéias de ordenação e unidade. Claus Wilhelm Canaris já havia se manifestado a este respeito, da seguinte forma:

"Há duas características que emergiram em todas as definições: a da ordenação e a da unidade; elas estão uma para com a outra, na mais estreita relação de intercâmbio, mas são, no fundo, de separar. No que respeita, em primeiro lugar, à ordenação, pretende-se, com ela – quando se recorra a uma formulação muito geral, para evitar qualquer restrição precipitada – exprimir um estado de coisas intrínseco racionalmente apreensível, isto é, fundado na realidade. No que toca à unidade, verifica-se que este fator modifica o que resulta já da ordenação, por não permitir uma dispersão numa multitude de singularidades desconexas, antes devendo deixá-las reconduzir-se a uns quantos princípios fundamentais [22].

Conforme se verifica da própria obra de Kelsen, o vocábulo sistemas aparece por diversas vezes, como no caso dos sistemas estático e dinâmico da norma jurídica, justamente pelo ordenamento jurídico ter como peculiar a ordenação e a unidade. No entanto, há de restar bastante claro que não se confunde a utilização da palavra sistemas com a teoria sistêmica.

Com efeito, consoante o entendimento de Niklas Luhmann, o conceito de sistema se mostra determinado com mais precisão e não necessariamente referindo-se ao ordenamento jurídico; parte-se, na teoria dos sistemas, de uma análise da sociedade e, a partir desta, para a análise do direito como um "subsistema" imerso no sistema social, ou um sistema inserido no meio (entorno).

1.2.3 O direito como sistema autopoiético

Desta modificação profunda da teoria dos sistemas proposta por Luhmann, o direito, concebido como sistema inserido no sistema social, pode ser considerado como autopoiético. Esta construção se dá a partir da definição de direito proposta por ele e assentada em três dimensões, quais sejam a temporal (que se refere à normatividade), social (ligada à institucionalização) e a prática ou objetiva (onde se trabalha com significações).

Na dimensão temporal, o direito surgiria com a intenção de minimizar as frustrações das expectativas dos homens, expectativas essas, oriundas da contingência, no sentido de possibilitar expectativas de comportamento dos outros homens. Esta redução das frustrações e este "esperar" o comportamento alheio concretiza-se através da segunda dimensão, onde as expectativas passam a serem institucionalizadas, com base no consenso e na dimensão prática, onde efetivamente este consenso parte da aceitação de limitações recíprocas, compondo uma inter-relação. Segundo Luhmann, o direito não é primariamente um ordenamento coativo como entende Kelsen, mas sim um alívio para as expectativas. O alívio consiste na disponibilidade de caminhos congruentemente generalizados para as expectativas, significando uma eficiente indiferença inofensiva contra outras possibilidades, que reduz consideravelmente o risco da expectativa contratáfica. [23]

Assim, o direito para Luhmann se mostra sob a forma de uma estrutura (em especial considerando a normatividade inseparável do direito baseada no consenso) que, no entanto, pelos elementos antes referidos, é dinâmico no momento em que aceita as irritações do meio. Em outras palavras, sendo o direito um sistema autopoiético, aparece ele como normativamente fechado (operacionalmente), mas cognitivamente aberto, assimilando os fatores do meio (política, economia, cultura, etc.) de acordo com seus próprios critérios, ou seja, seleciona as informações que lhe são de interesse.

De uma forma bastante resumida, podemos afirmar que o sistema direito, assim como os demais sistemas, a partir de sua "constituição", se torna autônomo para sua organização, ou auto-organização, ou seja, seguir regras por ele mesmo produzidas. Neste sentido, o direito mostra-se autopoiético por que é a partir do direito que o direito se reproduz. Segundo o entendimento de Goyard-Fabre, isso significa não só que há autonomização do direito (que não necessita nem de transcendência moral ou religiosa, nem de causalidade natural ou sociopolítica), mas que o direito baseia-se unicamente no princípio de auto-referência [24].

1.3.Teoria da ação comunicativa de Jürgen Habermas

Concebendo que o direito formal burguês e o direito materializado do Estado social constituem os dois paradigmas jurídicos mais bem-sucedidos na história do direito e partindo da idéia de que os sistemas jurídicos surgidos no final do século XX, nas democracias de massas dos Estados sociais, denotam uma compreensão procedimentalista do direito, Jürgen Habermas, interpretando a política e o direito à luz da teoria do discurso, pretende reforçar os contornos de um terceiro paradigma do direito de modo que esse paradigma seja capaz de absorver os outros dois.

Herdando as discussões da Escola de Frankfurt, Habermas aponta a ação comunicativa como superação da razão iluminista transformada num novo mito que encobre a dominação burguesa (Razão Instrumental). Para ele, importa cultivar o logos da troca de idéias, opiniões e informações entre os sujeitos históricos estabelecendo o diálogo. Propõe, assim, duas abordagens teóricas possíveis à sociedade: o sistema e o mundo da vida. Sistema refere-se à denominada ''reprodução material'', regida pela lógica instrumental (adequação de meios a fins). Mundo da vida refere-se à ''reprodução simbólica'', ou seja, da rede de significados que compõem determinada visão de mundo, atenham eles aos fatos objetivos, às normas sociais ou aos conteúdos subjetivos. É conhecido o diagnóstico habermasiano da colonização do mundo da vida pelo sistema - a crescente instrumentalização desencadeada pela modernidade, sobretudo com o surgimento do direito positivo, que reserva o debate normativo aos técnicos e especialistas.

Seus estudos voltam-se para o conhecimento e a ética. Sua tese para explicar a produção de saber humano recorre ao evolucionismo de Charles Darwin. Segundo Habermas, a falibilidade possibilita desenvolver capacidades mais complexas de conhecer a realidade. Evolui-se assim através dos erros. Habermas defende também uma ética universalista, deontológica, formalista e cognitivista. Para ele, os princípios éticos não devem ter conteúdo, mas, através da participação nas decisões públicas através de discussões (Discursos), possibilitar a avaliação dos conteúdos normativos demandados naturalmente pelo mundo da vida.

Sobre sua teoria discursiva, aplicada também à filosofia jurídica, pode ser considerada em prol da integração social e, como conseqüência, da democracia e da cidadania. Teoria que possibilitaria a resolução dos conflitos vigentes na sociedade e, não com uma simples solução, mas a melhor solução, aquela que é resultado do consentimento de todos os concernidos. Sua maior relevância está, indubitavelmente, em pretender o fim da arbitrariedade e da coerção nas questões que circundam toda a comunidade, propondo uma maneira de haver uma participação mais ativa e igualitária de todos os cidadão nos litígios que os envolvem e, concomitantemente, obter a tão almejada justiça. Essa forma defendida por Habermas é o agir comunicativo que se ramifica no discurso.

Autor de vasta obra, que compreende hermenêutica jurídica; críticas ferrenhas ao positivismo em sua expressão resultante, o tecnicismo; análise do Marxismo e muitos outros temas, Habermas é representante da segunda fase da Escola da Frankfurt.

Contudo, mesmo sendo vasta a sua obra, o principal eixo das discussões de Habermas é, sem dúvida, a crítica ao tecnicismo e cientificismo que, a seu ver, reduziam todo o conhecimento humano ao domínio da técnica e modelo das ciências empíricas, limitando o campo de atuação da razão humana a todo conhecimento que fosse objetivo e prático.

Destacam-se, assim, três idéias fundamentais seguidas por Habermas:

a)Teoria da Ação Comunicativa;

b)A defesa da existência de uma esfera pública, na qual os cidadãos, livres de domínio político, podem expor idéias e discuti-las – Habermas, contudo, destaca que a mídia exerce influência no sentido de diminuir este espaço;

c)A idéia de que as ciências naturais seguem uma lógica objetiva, enquanto as ciências humanas – uma vez que a sociedade e a cultura são baseadas em símbolos – seguem uma lógica interpretativa.

E em cada um desses temas expressa-se a característica de Habermas, herança explícita da Escola de Frankfurt, isto é, a abordagem dita "crítica" a respeito das teorias, das ciências e do próprio presente, construindo, assim, um conhecimento engajado e revolucionário.

Seguindo este eixo e introduzindo uma nova visão a respeito das relações entre a linguagem e a sociedade, em 1981 Habermas publicou aquela que é considerada sua obra mais importante: Teoria da Ação Comunicativa.

Em algumas outras obras Habermas abordou as ciências sociais e, em especial, dedicou-se a estudar o Direito: em Conhecimento e Interesse, publicada em 1968, nela o júris-filósofo apresenta uma distinção entre as ciências exatas e as ciências humanas, afirmando a especificidade das ciências sociais; em A Transformação Estrutural da Esfera Pública (Strukturwadel der Öffentlichkeit), publicada em 1962, aborda o fundamento da legitimidade da autoridade política como o consenso e a discussão racional; em Entre Fatos e Normas, publicado em 1996, o filósofo faz uma descrição do contexto social necessário à democracia, bem como esclarece fundamentos da lei, de direitos fundamentais bem como uma crítica ao papel da lei e do Estado. Habermas, dessa forma, destaca-se como uma importante base para a formação teórica do conhecimento da ciência jurídica.

1.3.1 A Escola de Frankfurt e a Teoria Crítica

Para conhecermos o posicionamento doutrinário teorizado por Habermas, é de bom alvitre conhecer um pouco da história da escola frankfurniana.

Com a Revolução Francesa e o advento do Iluminismo, o século XVIII ficou conhecido como a "era das luzes", época em que houve a emancipação do homem através do uso da razão, avanços tecnológicos e um progresso expressivo da ciência.

No século XIX, a herança do Positivismo se fez presente nos pensamentos de Hegel, principalmente na crença de que a razão era o instrumento para se instaurar a harmonia e a felicidade entre os homens. De Hobbes até Hegel, a categoria do direito foi utilizada como apta e suficiente para mediar todas as relações sociais. As figuras do pensamento jurídico pareciam suficientes para desenvolver o modelo de legitimação de uma sociedade ordenada. A sociedade tida como correta era a que estava organizada conforme um programa jurídico. Todavia, já naquela época, a doutrina da sociedade natural, dos filósofos morais escoceses como Adam Ferguson e John Millar, este último introduzindo o conceito de luta de classes na compreensão da história, mais de 50 anos antes de Karl Marx, já questionara a concepção do direito racional uma vez que na sua visão os contextos naturais de práticas vitais, costumes e instituições, resistiam a uma reconstrução em termos do direito formal.

Como se para demonstrar que a reprodução da vida social é por demais complexa, não se prestando a uma apreensão por parte das figuras normativas rígidas do direito racional, a sociedade entrou em ebolição através de movimentos sociais revolucionários e o que se viu foi a instauração de um caos crescente, com a exploração da classe trabalhadora e a miséria oriunda das desigualdades sociais impostas pelo capitalismo e se começou a pensar que os próprios mecanismos da integração social não são apenas de naturaza normativa. A anatomia da sociedade burguesa, vertida em conceitos da economia política demonstrou possuir um efeito desmascarador revelando que o esqueleto que mantém coeso o organismo social não é mais o conjunto das relações de direito, e sim, o das relações de produção e viu-se que essa relação circular entre produção e reprodução de valores de troca se impunha ao direito e às suas realizações de integração social. Ou seja, o modelo realista de uma socialização anônima não-intencional, que se impôe sem a conciencia dos atores, substituia o modelo idealista de uma associação intencional de parceiros do direito doutrinariamente pregado como se fora um abstrato contrato social. Marx, captando essa relação, a teorizou afirmando que o direito faz parte da superestrutura da base económica da sociedade burguesa, onde a dominação de uma classe social sobre as outras é exercitado na forma de dominação dos meios de produção.

No século XX, o que se passa na Alemanha não é tão diferente das demais regiões da Europa, porém com um agravante – em 1918 é proclamada a República, deixando para trás a dominação pela família dos Hohenzollen que perdurava desde o século XII, e forma-se um Estado nacional, com a unificação dos principados independentes. Em 1923 eclode outra insurreição operária: a dos operários de Bremen, esta, porém, sufocada pelo Partido Socialista Alemão, governo da época.

A Europa, principalmente a Alemanha, vivenciava toda a brutalidade da 1ª Guerra Mundial. O comunismo iniciava-se na Rússia e o fascismo, na Itália. Hitler se impunha, trazendo consigo, o horror do holocausto.

Nesse contexto surge um movimento, em 1924, conhecido como a Escola de Frankfurt, encabeçado por Theodor W. Adorno – filósofo, sociólogo e musicólogo, Walter Benjamin – ensaísta e crítico literário, Herbert Marcuse – filósofo e Max Horkheimer – filósofo, sociólogo, que acreditavam na teoria de Marx, sobre o Materialismo Histórico e esperavam poder conciliar a teoria marxista à realidade, na qual o povo e o governo teriam uma convivência harmônica.

A Escola de Frankfurt torna-se conhecida por desenvolver uma "teoria crítica da sociedade", que é um modo de fazer filosofia integrando os aspectos normativos da reflexão filosófica com as realizações explicativas da sociologia, visto que o objetivo da mesma é fazer a crítica, buscando o entendimento e promovendo a transformação da sociedade.

A Escola de Frankfurt é uma denominação que se deu ao Instituto de Pesquisa Social, fundado em 1923, pelo economista austríaco Carl Grumberg, editor do Arquivo para a História do Pensamento Operário – os Arquivos de Grumberg, que visavam preencher uma lacuna existente nas ciências sociais: a história do movimento operário e do socialismo. Inicialmente tinha-se cogitado a denominação "Instituto de Marxismo", rejeitado porém pelo fato de reinar nos meios acadêmicos um sentimento anticomunista e pelo fato de seus colaboradores não terem adotado o espírito e a letra do pensamento de Marx e o do marxismo da época.

O objetivo da Escola de Frankfurt foi tecer uma crítica ao pensamento sistemático, para tanto, utilizava-se de ensaios, artigos de circunstâncias e resenhas, que sugeria uma idéia de algo inacabado e incompleto, portanto, aberto a sugestões e modificações nas linhas de pensamento, diferentemente do livro, que encerrava uma direção única para suas conclusões.

Em 1937, Horkheimer lança um ensaio, intitulada Teoria Tradicional e Teoria Crítica, um verdadeiro manifesto da Escola de Frankfurt, no qual aborda a questão da relação da filosofia com a história, no qual faz um tributo a Kant, Hegel e Marx, do ponto de vista da história da filosofia e pretende que os homens protestem contra a aceitação resignada da ordem total totalitária.

Do ponto de vista da história empírica, as reflexões dessa Escola versavam sobre o êxito da revolução bolchevique (Rússia, 1917) e a proclamação da Alemanha, em 1918, à qual se seguiram duas revoluções operárias (de 1919 e 1923).

A razão polêmica de Horkheimer, ao se opor à razão instrumental e subjetiva dos positivistas, não evidencia somente uma divergência de ordem teórica. Ao tentar superar a razão formal positivista Horkheimer não visa suprimir a discórdia entre a razão subjetiva e objetiva através de um processo puramente teórico. Ensina ele que essa dissociação somente desaparecerá quando as relações entre os seres humanos e destes com a natureza, vierem a configurar-se de maneira diferente da que se instaura na dominação. A união das duas razões exige o trabalho da totalidade social, ou seja, a práxis histórica.

À época de Horkheimer na direção do Instituto, a partir de 1931, a instituição era associada à Universidade de Frankfurt. O órgão oficial dessa gestão passou a ser a Revista para a Pesquisa Social, com uma modificação importante, pois a hegemonia não era mais da economia e sim, da Filosofia social. Esse periódico foi publicado de 1932 a 1933 em Leipzig e, após a ascensão de Hitler ao poder e as perseguições nazistas aos marxistas, judeus e socialistas, passa a ser editado na França, devido ao exílio dos colaboradores que publicavam seus artigos no referido periódico. Mais tarde, de 1939 a 1941, a revista passa a ser publicada em Nova York e em língua inglesa, passando a se denominar então, Estudos de Filosofia e Ciência Social.

A revolução socialista em vias de ser desencadeada, tornava as esperanças por uma transformação revolucionária da sociedade bem próximas da realidade, a que Horkheimer designa como sendo "o juízo categórico" – típico da sociedade pré-burguesa, na qual "a coisa é como é, o homem não pode mudar nada com relação a isso" e o "juízo hipotético e disjuntivo" – típico da sociedade burguesa ou, segundo a teoria crítica, os homens podem mudar as coisas, já que as condições para tal, existem.

A Teoria Crítica caracteriza-se por três grandes momentos:

1.os escritos de Adorno, Horkheimer e Mercuse, da década de 30: um período marcado por preocupação acerca da teoria do conhecimento;

2.os trabalhos da década de 40, de Horkheimer e Adorno, cuja característica fundamental é o distanciamento da teoria marxista, deixando de lado o tema da luta de classes e a substituição da teoria crítica da economia política pela crítica da civilização técnica, buscando a origem do fenômeno totalitário oriundo do nazismo, não apenas na crise econômica, política e social ou no erro da estratégia das forças de esquerda alemãs, mas no fenômeno metafísico;

3.a partir da década de 50: período em que as idéias originais da Teoria Crítica são abandonadas e as reflexões frankfurtinianas voltam-se a respeito das tendências no mundo moderno para o totalitarismo, mundo homogêneo, uniforme, sem oposição, que anula os indivíduos, acabando com a sua autonomia e a liberdade de ação na história, nas obras de Marcuse, Adorno e Horkheimer.

A esses três períodos, pode-se acrescentar um 4º, que não se fundamenta apenas no pensamento dos integrantes da Escola de Frankfurt, mas também como um prolongamento que sem desfigurar o perfil teórico da Teoria Crítica, procura, de modo original, resolver e superar certas lacunas deixadas pelos seus fundadores, tendo na figura de Jürgen Habermas, seu principal representante, cuja preocupação central é a reformulação da Teoria Crítica, com o objetivo de suprir essas lacunas.

Para Habermas, a teoria deve ser crítica, engajada nas lutas políticas do presente, e construir-se em nome do futuro revolucionário para o qual trabalha, ou seja, é um exame teórico da ideologia, mas também crítica revolucionária do presente.

1.3.2 Ação Comunicativa

A Ação Comunicativa é uma das principais teorias desenvolvidas por Jüegen Habermas. Introduzida pela primeira vez na obra Teoria da Ação Comunicativa, publicada em 1981, pode ser delimitada, em termos gerais, como a teoria da sociedade moderna fundamentada por métodos da sociologia, filosofia social e filosofia da linguagem.

Para Habermas a linguagem serve como garantia da democracia, uma vez que a própria democracia pressupõe a compreensão de interesses mútuos e o alcance de um consenso.

Contudo, para que a linguagem assuma este papel democrático, no pensamento habermasiano é necessário que a comunicação seja clara. Para Habermas, a distorção de palavras e de sua compreensão impede uma comunicação efetiva, o consenso e, portanto, a prática efetiva da democracia.

O uso correto das palavras, entretanto, só ocorreria quando fosse abandonado o uso exclusivo da razão instrumental – ou iluminista – a razão utilizada pelo sujeito cognocente ao conhecer a natureza com o fim de dominá-la, ou seja, a confusão do conhecimento com a dominação, exploração e poder. Dessa maneira, a razão torna-se um instrumento de uma ciência que, deixando de ser acesso a conhecimentos verdadeiros, torna-se é meio de dominação e poder: da Natureza e dos próprios seres humanos.

Dessa maneira torna-se necessária uma razão que não seja instrumento de dominação, mas de democracia: a razão comunicativa. A razão comunicativa, além de compreender a esfera instrumental de conhecimentos objetivos, alcança a esfera da interação entre sujeitos, marcada por simbolismo e subjetivismo, experiências pessoais e a contextualização dialógica de agentes lingüísticos.

Rompe-se, assim, com um diálogo baseado em conhecimentos instrumentais resultantes da relação entre um sujeito cognocente e um objeto cognoscível, a partir do qual o consenso, se possível, é desprovido do caráter democrático. Por outro lado trava-se um diálogo entre sujeitos capazes de compartilhar, pela linguagem, de um universo simbólico comum e interagir, buscando construir um conhecimento crítico pautado por argumentação submetida a critérios de validade, sem, contudo, ser orientada por rígidos domínios científicos.

Nesse contexto, Habermas crê que a comunicação só é eficiente, ou seja, não distorcida, quando quatro critérios são seguidos:

a)uso de regras semânticas inteligíveis (uso de regras semânticas compreensíveis para o receptor);

b)ser verdadeiro o conteúdo dito;

c)justificação do emissor por direitos sociais ou normas invocadas pelo uso do idioma (ou seja, o emissor possui autoridade nos argumentos utilizados);

d)emissor que se utiliza de sinceridade, sem procurar enganar seu receptor.

Os critérios de Habermas, contudo, são criticados em muitos aspectos. Entre eles critica-se o segundo critério, questionando-se a definição de verdade: "ora, como definir o que é verdadeiro universalmente?"

Entretanto, apesar das críticas, a Teoria da Ação Comunicativa propõe um retorno ao diálogo construtivo, capaz de alcançar um conhecimento mais profundo do que o alcançado pela relação entre o "sujeito cognocente o objeto cognoscível" por ser resultado da relação, em última análise, entre dois sujeitos cognocentes. Dessa maneira, a prática da Ação Comunicativa não se limita apenas à busca do consenso da democracia, mas também é instrumento para pedagogia, filosofia e muitos outros campos da ação humana.

1.3.3 Hermenêutica Jurídica

Falar em ação comunicativa de Habermas no Direito é pensar ou mesmo associar à hermenêutica jurídica, parte da ciência jurídica que diz respeito ao sistema de regras para a interpretação das leis (ou normas em geral). A princípio pode-se dizer que a ação comunicativa é a expressão da Razão Comunicativa – fonte do direito, que para Habermas proporciona as inter-relações entre os fatos (formas de vida) e as normas estabelecidas para os mesmos; ele ainda acredita que a correlação VALIDADE-EFICÁCIA representa a condição essencial para o direito pois além de manter a inter-relação, citada, de forma descentralizada de condições, ela também sustenta a imposição do Direito (característica básica deste). Todavia, a ação comunicativa cumpre seu papel de guardiã da integridade social, que para o pensador é a base de toda tensão da correlação já mencionada.

Entretanto, vale lembrar que interpretação e hermenêutica são coisas distintas, visto que a primeira, é a aplicação da segunda (analogia a técnica empregada pela metodologia). A interpretação é única, isto é, exceto quando usada para fins didáticos, na prática ela não pode ser fracionada; possui como objeto de estudo as palavras, frases, proposições e enunciados. As palavras expressam o sentido das normas jurídicas e garantem, para Habermas, a democracia; podem ser analisadas sob dois aspectos: Onamasiológico (sentido corrente da palavra), Semasiológico (significado normativo). A união de palavras em torno de um verbo dá origem às frases que em conseqüência produz as proposições e depois os enunciados. Os conceitos sobre estes, o próprio Habermas fornece; a proposição consiste em uma unidade lingüística, enquanto que o enunciado é a proposição situada, ou seja, é a unidade de discurso ou fala.

A partir desses conceitos, a interpretação é aplicada nos diversos problemas de ordem sintática, semântica e pragmática.

Os problemas de ordem sintática, em que dizem respeito às conexões das palavras, são interpretados de forma: Gramatical (questões léxicas), Lógica (problemas lógicos) e Sistemática (compatibilidade no todo estrutural). Quando os problemas originam dos significados das palavras, temos a semântica, cuja interpretação é feita por meio; Histórico (precedentes normativos) e Sociológico (contexto social). Por fim, temos os problemas de ordem pragmática em que caracterizam-se pelo não entendimento em uma relação de comunicação entre o emissor e o receptor; para isso utiliza-se as interpretações Teleológicas (situação das leis) e Axiológica (postulam os fins).

Apresentados alguns conceitos, passo a uma possível relação e explicação entre o pensamento do filósofo e a ciência jurídica. Como já foi dito anteriormente, a linguagem, especialmente a escrita, garante a democracia aos povos, contudo, ela também justifica a presença de um Direito imposto por uma autoridade sobre uma pessoa, cidade ou nação. Partindo desse pensamento Habermas coloca que a validade desse Direito está na crença do destinatário de que a norma a que se sujeita é também criada por ele, e que sua eficácia depende de uma interpretação do magistrado, coerente com cada situação real e concreta. No entanto, na verdade, o intérprete (magistrados e afins) guia-se pelas próprias avaliações do sistema interpretado, a fim de tornar enfraquecida as tensões sociais na medida em que neutraliza a pressão exercida pelos problemas de distribuição de poder, de recursos e de benefícios escassos.

1.3.4 Epítome da obra "Direito e Moral"

No particular âmbito a que destaco a influência do pensamento haberniano, cabe analisar, mesmo sem muito aprofundamento, a obra que entendo mais pertinente deste marcante filosófo do direito no aspecto a que busco ressaltar.

O livro é dividido em dois segmentos principais, o primeiro fazendo uma critica a pontos de vista de Max Weber no que toca o direito e a moral, tendo como título "Como é possível a legitimidade através da legalidade"; e o segundo mostrando se o desmoronamento do direito puramente racional resulta em um estado jurídico com maior agilidade diante da sociedade, sendo o título "Para a idéia do estado jurídico".

O primeiro grande segmento é sub dividido em três partes. Na primeira parte Habermas comenta a visão de Max Weber sobre a racionalidade do direito. Segundo Weber a racionalidade só existe devido ao caráter formal que está incutido no direito, ou seja só pode existir a razão em decorrência da obediência aos procedimentos jurídicos. Dessa forma moral e direito são dois campos separados, sendo a moral subjetiva e o direito objetivamente racional. Assim a interferência da moral no direito acabaria por retirar a racionalidade do mesmo. Mas Habermas nos mostra que o próprio ato de seguir os procedimentos jurídicos já implica na mistura entre moral e direito, afinal o direito é constituído de normas estabelecidas por um legislador e este possui uma moral que acaba sendo incorporada a lei. Sendo assim a teoria de Weber onde a legitimidade só pode ser alcançada pela legalidade puramente racional perde força.

Com a segunda parte são abordados alguns fenômenos não previstos por Weber. Dessa forma temos o direito reflexivo, onde os juristas refletem sobre as leis e fazendo isso acabam recorrendo a preceitos morais para explicá-las. Podemos falar ainda da marginalização dos litígios, pois as partes envolvidas podem fazer contratos aproveitando brexas na lei e acabam tornando o processo bastante subjetivo. Os imperativos funcionais, onde a criação de condições para um estado regulador acabam por pender para as preferências geradas pelo dinheiro e poder, deixando de lado a razão. Por fim temos a sucessão de legisladores, que tentam embutir seus próprios padrões morais na lei. Para encerrar esse segmento do texto Habermas ainda menciona a axiologia das Constituições Federais existentes como uma prova de padrões morais presentes na lei.

O último texto deste segmento mostra como nossa sociedade aceita a legitimidade só através da legalidade, sendo assim é preciso fundamentar esta legalidade. Já foram utilizados fundamentos como a metafísica e a religião, mas atualmente estes não são mais aceitos. Assim se buscou a razão como fundamento para nossa legalidade. Mas se de acordo com Weber a inserção da moral no direito retira sua razão e por sua vez sua legalidade, podemos questionar o fato de a razão estar baseada na moral; afinal não retiramos os padrões morais sociais do limbo.

A segunda parte do livro também é dividida em três partes. A primeira delas mostra como o sistema jurídico não esta preso aos conceitos gerais da teoria de sistema. Isso acontece porque o direito tem uma necessidade peculiar, que não ocorre na maioria dos sistemas, a de se adaptar constantemente e rapidamente às mudanças que se desenrolam na sociedade como um todo. Afinal a norma jurídica tem lacunas que devem ser preenchidas para manter a sociedade controlada e regulada.

Nesta próxima parte o autor busca mostrar o entrelaçamento do direito e da moral com a política. Ou seja, expor que o direito não se coloca a serviço da política, pois se a política controlasse o direito a legitimidade daquela seria comprometida pois este não teria poder para dar credibilidade, sendo o direito incorporado à política. E a seguir vemos que o contrario também é impensável, pois a idéia de que o direito pudesse criar suas próprias estruturas normativas pela razão também lesaria a legitimidade da norma jurídica.

Por fim Habermas mostra o porque da transformação do direito racional em estado jurídico. Uma sociedade como à atual não pode se prender as estruturas formais presentes no direito racionalista. Os mercados pedem uma maior agilidade por parte do ordenamento jurídico, assim se abre espaço para o direito subjetivo criar as condições necessárias para tal agilidade. Os contratos privados ganham uma maior autonomia para preencher as lacunas da legislação e dessa maneira a moral ganha um grande espaço no direito pois os contratos privados são subjetivos e a subjetividade é uma das manifestações mais claras da moral.

Sobre o autor
Jorge Inácio de Aquino

Doutorando em Direito Tributário pela Universidad de Salamanca. Auditor Fiscal membro do Conselho de Contribuintes do Estado da Bahia. Diretor de Assuntos Fiscais e Tributários do Instituto dos Auditores Fiscais da Bahia – IAF.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AQUINO, Jorge Inácio. O Direito e sua interpretação na atualidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1817, 22 jun. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11415. Acesso em: 22 nov. 2024.

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