6. A sentença.
A sentença já foi vista como uma declaração emitida pelo juiz como resultado de uma atividade mental [36]. Entretanto, para Alfredo Rocco, "a sentença não contem outra vontade que a da lei, traduzida em forma concreta por obra do juiz; e nisso não há por certo operação da vontade, mas apenas da inteligência do juiz" [37] E ao sentenciar, o juiz valer-se-á de limites, quais sejam, a lei e os pedidos decorrentes da dialética empregada pelos advogados, visando convencê-lo, e amiúde ludibriá-lo.
José Rubens Costa [38] certifica que o juiz, ao sentenciar, profere um juízo, manifesta uma opinião, embasada na avaliação de fatos e de direitos, sendo, portanto, um ato de inteligência. Contudo, é ao mesmo tempo um ato de vontade, pois a sentenciar, o juiz está manifestando a vontade do Estado, para a solução (forçada) do conflito.
Ao julgar, inegavelmente o juiz empregará o seu subjetivismo para analisar os fatos que lhe foram trazidos, para interpretar a lei, e ponderar sobre as proposições dos advogados. Após esse raciocínio, embevecido na subjetividade, emitirá sentença, solucionando o conflito de interesses à sua moda. Deixará transparecer sua formação ideológica, cultural, religiosa e mesmo jurídica.
Ademais, o ato interpretativo sofre inegavelmente mutações históricas, "implicando tanto a intencionalidade originária do legislador, quanto as exigências fáticas e axiológicas supervenientes, numa compreensão global, ao mesmo tempo retrospectiva e prospectiva." [39]
João Baptista Herkenhoff [40] fez interessante pesquisa de campo sobre a formação do juiz brasileiro. Disse, entre outras conclusões, que na sua maioria os juízes são conservadores, dando preferência pelo formal e solene; que se inclinam para os regimes liberais e que raramente optam contra a jurisprudência dominante. E, certamente, julgarão conforme seus ideais.
Daí não seria exagero dizer que a sentença é fruto do ambiente que o juiz vive e do toque pessoal que lhe empresta. Além disso, o juiz sentenciador pode estar tomado por novas teorias jurídicas, por mais absurdas que sejam, e mediante estas revelará seu julgamento.
Conforme Jacinto Nelson de Miranda Coutinho [41], "parece não ser viável, portanto, não levar em consideração a penetração, queira-se ou não, de elementos inconscientes, completamente arredios ao sistema, no ato decisional da jurisdição".
Dalmo de Abreu Dallari [42] sustenta, inclusive, que "alguns juízes mais conscientes de seu papel social e de sua responsabilidade estão assumindo a liderança de um processo de reformas". Defensor de uma mudança de mentalidade dos juízes prega que os mesmos assumam uma posição mais politizada, conquanto devam abster-se da política partidária [43]. Fala-se, portanto, da figura de um juiz politizado, que assuma suas posturas ideológicas e as deixe transparecer no seu julgamento.
Perdemos a ilusão quanto à neutralidade ideológica do intérprete. O intérprete e a interpretação não são neutros. Pelos caminhos da hermenêutica o exegeta faz o que quer. Aliás, "a lei diz aquilo que o intérprete diz que ela diz" [44].
Reiterando Jacinto Nelson de Miranda Coutinho [45], a decisão judicial pode ficar ao "bel-prazer" do sentenciador, podendo este, inclusive, julgar com base em interesses escusos:
Manipulando a lei estrategicamente, não raro a seu bel-prazer, os órgãos jurisdicionais têm construído - como sempre fizeram - uma realidade não poucas vezes perversa e contra legem. Decide-se, por exemplo, contra disposições expressas do CPP, em nome de "interesses maiores", em evidente prejuízo do réu. É o que chamo de direito alternativo às avessas ou, o direito que não queremos porque, no final das contas, investe contra a própria Constituição. Neste momento, a magistratura fala contra si mesmo; e em geral por falta de um maior - e melhor - conhecimento, não fosse sob o manto de "justiceira".
E é essa sentença, às vezes perversa, às vezes equivocada, às vezes deliberadamente subserviente, que produzirá a coisa julgada, que nada mais é do que uma decisão humana, cujo prolator tem consciência. E tem inconsciência. "Em outras palavras, trazem consigo a marca do humano." A propóstio, Thomas Hobbes [46]:
Finalmente, os homens, veementemente apaixonados por suas novas opiniões, por mais absurdas que fossem, e obstinadamente decididos a mantê-las, deram também a essas opiniões o reverenciado nome de consciência (...) Dessa forma, pretendem saber que estão certos, quando no máximo sabem que pensam estar.
Deste modo, a decisão judicial é fruto do fenótipo de seu autor, de sua cultura enquanto formação intelectual, estética e moral do homem. E essa idéia de cultura implica duas concepções: uma objetiva e outra subjetiva. Neste sentido, Victor Hell [47]:
A idéia de cultura implica duas concepções complementares: uma considera a cultura objetivamente como o conjunto de obras, realizações, instituições que determinam a originalidade e a autenticidade da vida de um grupo humano (...) A outra concepção direciona-se para a ação psicológica e espiritual que essas obras, realizações e instituições exercem sobre o grupo humano, enquanto ser coletivo,e sobre o homem, considerando não tanto como indivíduo, mas como expressão da finalidade da idéia da cultura.
Não se pode conceber que as fundamentações de uma sentença, que resultará na sua parte dispositiva, que por sua vez formará a coisa julgada, promovam a dita "verdade". A própria seleção dos fatos traz consigo uma valoração [48]. E, eventualmente, uma valoração equivocada. Aliás, o primeiro que se aprende, antes de e sobretudo, é a inseparabilidade do julgamento e do erro. O processo talvez não seja mais que um sistema de precauções contra o erro [49].
Neste passo, parece inevitável que a sentença traduza a verdade vista aos olhos de uma única pessoa: o sentenciante. Mas, a conclusão de uma única pessoa não pode ser tida e havida como verdade universal
7. Juízos hipotéticos de verossimilhança
Luiz Guilherme Marinoni [50] sustenta que o juiz, ao dar valor às provas, deve lembrar-se que "as verdades históricas nunca passam de mera verossimilhança". De fato, Marinoni faz coro aos pensamentos de Calamandrei, concluindo que "não existe verdade, pois a verdade está no campo do impossível". [51] E completa:
A verdade varia de acordo com a subjetividade de cada um. A certeza seria a manifestação subjetviva de alguém a respeito de um dado, de onde pode surgir a verdade para ela, mas não para os outros ou para todos. Esta certeza – mesmo porque a subjetividade do próprio ser cognoscente pode mudar – não existe, ou existirá, como absoluta nem àquele que em um dia a afirmou. Toda certeza, pois, não passa de mera verossimilhança. Mas o juiz, não obstante, deve procurar encontrar a "certeza do caso concreto". A certeza acerca da afirmação de um fato (...) A certeza do caso concreto, porém, não é a certeza da lógica do tradicional, ito é, não necessita apenas da presença de motivos convergentes em relação à afirmação realizada. Ao contrário, o juiz deve conviver com os motivos divergentes.
Não há verdade no processo. Há, sim, juízos de verossimilhança, ou verossimilitude. O próprio Francesco Carnellutti [52], que inicialmente dizia que o processo estava a serviço da busca da verdade reviu seu posicionamento. Primeiro disse:
...o resultado da busca juridicamente limitada ou regulada não é, pois, a verdade verdadeira, e sim uma verdade convencional, que se denomina verdade formal, porque conduz a uma indagação regulada nas formas, ou verdade jurídica, porque se busca mediante leis jurídicas e não somente mediante leis lógicas, e unicamente em virtude dessas leis jurídicas substitui a verdade material.
Tempos mais tarde, in Verdade, Certeza e Dúvida [53], confessa:
Quando parti, nos meus estudos sobre processo, com a prova civile, falei de verdade, assinalando como escopo do processo, a investigação da verdade substancial e, como resultado, a obtenção de uma verdade formal. Mas não era, embora algo comum, uma distinção fundada. A verdade não é, e nem pode ser, senão uma só: aquela que eu, como outros, chamava de verdade formal, não é a verdade. Nem eu sabia, naquele tempo, que coisa fosse e porque, sobretudo, nem com o processo, nem através de algum outro modo, a verdade jamais pode ser alcançada pelo homem.
(...)Em síntese, a verdade está no todo, não na parte; e o todo é demais para nós. Mais tarde isto me serviu para compreender, ou ao menos tentar compreender porque Cristo disse: .. eu sou a verdade.
Portanto, a minha estrada começada por atribuir ao processo a busca da verdade, deveria ter substituído a investigação da verdade, pela da certeza. [54]
O autor, então, rende-se ao fato de inexistir verdades no processo. Preocupa-se agora somente com a busca da certeza. Mas, igualmente quanto a esta, conclui:
Ora, não existe, infelizmente, juízo algum, cujo teste não ponha, quem o deve pronunciar, de frente aquele contraste, do qual a dúvida se constituiu. Um imputado confessou um delito, o qual se lhe imputa. Um testemunho narrou um fato. Um ou outro terá dito a verdade ou a mentira. Este é o exemplo mais banal da perplexidade que, a final de contas, o juiz não pode jamais eliminar cem por cento. A verificação do juízo acontece mediante o raciocínio, que assume a forma de um silogismo; e se sabe que o fulcro do silogismo é a lei; a qual constitui a premissa maior. Mas o conceito de lei, já, de Newton a Planck, isto é, da macrofísica a microfísica, está profundamente mudado; ao valor absoluto que, por tanto tempo, se nos foi atribuído, veio-se substituindo por um estatístico, e, por isso, relativo; e também disso os juristas tiveram, a séculos, a impressão, porque o direito é talvez a única ciência que intuiu o valor da exceção. Quem pode garantir que a lei, assumida como premissa maior de um raciocínio, não deveria ceder a exceção?
Conforme Jacinto Nelson de Miranda Coutinho [55], "resta evidente que estamos diante de uma insegurança, enquanto pretende-se exatamente o oposto." Sim, pois a dúvida é da essência do julgamento. Aliás, segundo Carnelutti,
Assim o juiz, após ter examinado as provas, após ter escutado as razões, após tê-las valoradas, continua a encontrar-se, em realidade, de frente a aquela dúvida, que o seu pensamento não consegue, de nenhum modo, eliminar. Existirão dúvidas macroscópicas e microscópicas, mas bastam somente essas últimas para constituir a sua dificuldade e o seu tormento (...) A dúvida "vem à ribalta". O cruel é que a escolha não a afasta; a opção é simplesmente uma opção, e nada mais. (...) Mas, a mim, atormenta, mais que esse aceno, pôr ênfase sobre a idéia de que a certeza pertence ao reino da ação, não ao pensamento, que é como dizer, ao reino da liberdade"
O juiz jamais poderá eliminar, conscientemente, sua dúvida no momento de julgar. Não há certeza, não há verdade no ato decisório. Quando muito, há aparência daquilo que se mostra como verdadeiro, ou verossimilhante. Segundo Thomas Hobbes [56]:
Da mesma forma como no aritmética, os homens sem razão, mesmo os professores, podem muitas vezes errar e contar falso, também em qualquer outro tema de raciocínio os homens mais capazes, mais atentos e mais práticos se podem enganar e inferir falsas conclusões. Não porque a razão em si própria não seja sempre uma razão certa, tal como a aritmética é uma parte infalível e certa. A razão de nenhum homem, nem a razão seja de que número de homens for, constitui a certeza.
Citando Friedrich Wilhelm Nietzche, [57]
O intelecto, como meio para a conservação do indivíduo, desdobra suas forças mestras no disfarce (...) No homem, essa arte do disfarce chega a seu ápice; aqui o engano, o lisonjear, mentir e ludibriar, o falar-por-trás-das-costas, o representar, o viver em glória de empréstimo, o marcarar-se, a convenção dissimulante, o jogo teatral diante de outros e diante de si mesmo (...) pode aparecer entre os homens como um honesto e puro impulso à verdade.
O processo é um grande disfarce. Há engano, há lisonja indevida, há mentira, há representação, há equívoco, e há interpretação da lei eminentemente discursiva. Essa amálgama não pode conduzir ao encontro da verdade. O processo é discursivo. E sobre o discurso, disse Thomas Hobbes [58]:
Por isso que nenhuma espécie de discurso pode terminar no conhecimento absoluto dos fatos passados ou vindouros. Porque para o conhecimento dos fatos é necessário primeiro a sensação e depois a memória (...)
Ninguém pode chegar a saber, por meio do discurso, que isto ou aquilo é, foi ou será, o equivalente a cohjecer absolutamente.
Mas há a sentença. Dela a coisa julgada. E convenciona-se falar que a verdade foi alcançada, e na busca da segurança jurídica, essa verdade é intangível, conquanto futuramente se descubra que a "verdade" lançada naquela sentença é um retumbante engano. Segundo Nietzche [59]: "Agora, com efeito, é fixado aquilo que doravante deve ser "verdade", isto é, é descoberta uma designação uniformemente válida e obrigatória das coisas, e a legislação linguagem dá também as primeiras leis da verdade".
A carga decisória de uma sentença não pode ser blindada, porque jamais revelará a verdade, que poderá vir à tona posteriormente. Nas palavras de Nietzche [60], "somente por esquecimento pode o homem alguma vez chegar a supor que possui uma verdade (...) Se ele não quiser contentar-se com a verdade na forma da tautologia, isto é, com os estojos vazios, comprará eternamente ilusões por verdades."
E conclui [61]:
"Acreditamos saber algo das coisas mesmas, se falamos de árvores, cores, neve e flores, e no entanto não possuímos nada mais do que metáforas das coisas, que de nenhum modo, correspondem às entidades de origem (...) O que é verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metomínias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias".
A "justiça", lançada na sentença, é um conceito humano, variável e fluído, e por vezes perverso. Não há como se ter a verdade ou a certeza no processo e, por conseguinte, no ato decisório. Haverá apenas indícios maiores ou menores de probabilidade, de verossimilhança. [62] Mas verossimilhança não é verdade. Antes, é semelhança de verdade, juízo de probabilidades.
E é exatamente esse juízo de probabilidade que redunda no ato decisório, que por sua vez fará a coisa julgada.
Daí a importância da fundamentação. Através dela revelar-se-á a análise dos fatos e do direito empregada pelo julgador, na "busca da verdade". E é exatamente por inexistir verdade no processo que a coisa julgada não atinge "verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença" [63], ou "os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença" [64].
Desde logo pode se concluir que raciocínios equivocados, ilegais e injustos podem redundar numa sentença, quer perfará uma coisa julgada. É por isso que não se pode dar à coisa julgada um status de inatingível, sob pena de se albergar situações antijurídicas como as acima mencionadas. Aliás, Nelson Luiz Pinto, Cláudio Finkestein, Ricardo Hasson Sayeg e Leonel César [65], pregam que
O Direito deve servir ao Bem e não simplesmente à ordem, pois os juristas também podem ser terríveis, como aqueles que buscaram legitimar, por meio do direito, o abominável Regime Nazista na Alemanha, ou o Ato Institucional nº 5 no Brasil.
Eis a conclusão inevitável: quando muito, o jurista estará a busca de juízos hipotéticos de verossimilhança, pois a busca da verdade é utópica.