O ministro Humberto Gomes de Barros, presidente do Superior Tribunal de Justiça, editou no dia 14 deste mês a Resolução nº7/2008, que regulamenta o processamento e julgamento de processos repetitivos, tendo em vista a recente modificação do Código de Processo Civil pela Lei nº11.672/2008.
Este último diploma legal, como se sabe, criou possibilidade de, quando houver multiplicidade de recursos especiais envolvendo a mesma matéria de direito, ser feita a apreciação de apenas um espécime, cuja decisão deverá fundamentar a negativa de seguimento dos demais recursos, se contrariarem a orientação firmada pelo STJ, com retorno dos autos ao órgão fracionário que prolatou o acórdão para manter ou reconsiderar o que decidira anteriormente.
O regulamento em questão, entretanto, fez mais do que disciplinar o processamento e julgamento dos recursos repetitivos no STJ, pois invadiu a esfera de competência dos tribunais de segunda instância e do Poder Legislativo, uma vez que:
a) atribui ao presidente dos tribunais de segunda instância a faculdade de suspender o andamento de recursos ainda não julgados e de processos no primeiro grau de jurisdição (art. 1º, §§ 3º e 4º), o que a lei não prevê;
b) determina que os órgãos fracionários reconsiderem suas decisões, se contrariarem a posição firmada pelo STJ, o que contraria disposição expressa da lei regulamentada, que faculta a manutenção do julgado (art. 10, II);
c) determina que os "processos suspensos em primeiro grau de jurisdição serão decididos de acordo com a orientação firmada pelo Superior Tribunal de Justiça" (art. 12), o que também não é previsto na lei regulamentada.
Ou seja, com uma penada o Ministro Humberto Gomes de Barros contrariou de forma flagrante:
a) o art. 96, I, "a" da Constituição Federal, que atribui aos tribunais, privativamente, a competência para elaborar seus regimentos internos e dispor sobre a competência e funcionamento de seus órgãos jurisdicionais;
b) o art. 44 da Constituição Federal, pois usurpou função - legislar - que é privativa do Poder Legislativo;
c) o princípio constitucional da independência do juiz, que deflui da regulamentação constitucional da separação dos poderes e das garantias asseguradas à magistratura, cuja única exceção é a da súmula vinculante do Supremo Tribunal Federal.
A resolução nº7/2008, assim, caracteriza-se como o mais violento atentado ao Estado Democrático de Direito desde a Revolução de 1964. E o mais chocante também, considerando-se que foi praticado pelo presidente de um tribunal superior e não por um general qualquer durante um regime de exceção.
Será que tão cristalina inconstitucionalidade terá passado despercebida do eminente ministro? E esta não é a única pergunta que vem à mente: o que autorizou o ministro Humberto Gomes de Barros a supor que poderia agir como agiu sem encontrar resistência no próprio STJ, nos tribunais inferiores, na magistratura de primeiro grau e na própria sociedade civil? A pergunta que faço, no que diz respeito aos primeiros, parte do pressuposto, naturalmente, de que seus presidentes desconheciam o que estava sendo gestado. Admitir que conheciam e concordaram implica um grau alarmante de subserviência e falta de dignidade, para dizer o mínimo.
Uma resistência não menor, é de se imaginar, será encontrada também no Poder Legislativo. O que a resolução sob exame concretiza, de fato, é a súmula vinculante do STJ, ainda que canhestramente travestida de "regulamentação" do processamento e julgamento de processos repetitivos. Implantar a súmula vinculante de forma oblíqua, entretanto, equivale a passar uma rasteira no Poder Legislativo, por melhores que sejam as intenções, o que é inadmissível no Estado Democrático de Direito.
De qualquer forma, é conveniente lembrar - considerando-se a hipótese de a resolução nº7/2008 vir a ser referendada pelos pares do seu autor - que a legitimidade de qualquer instituição social, em particular de um órgão como o STJ, não advém apenas da legalidade da forma de investidura de seus integrantes ou da força de que dispõe para ser obedecida, mas também do consentimento dos cidadãos, resultante do reconhecimento de que o poder exercido pela instituição foi obtido de forma legítima e atende ao interesse da coletividade. Se é assim, que legitimidade se poderia atribuir a súmulas vinculantes cuja edição resultou de uma competência obtida de forma espúria?