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Controle jurisdicional do processo disciplinar

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Agenda 22/08/2008 às 00:00

3 O CABIMENTO DO CONTROLE JURISDICIONAL DO PROCESSO DISCIPLINAR

Assentados os argumentos expostos nos dois capítulos anteriores, os quais serão fundamentais para a análise e formação do convencimento no que diz respeito à possibilidade do exercício do controle jurisdicional sobre o processo disciplinar, tanto em face dos servidores públicos, quando praticam falta funcional, quanto em face dos parlamentares, desta feita por quebra de decoro, passamos, no presente capítulo, a adentrar no âmago da discussão a que se presta este trabalho.

Aqui, considerando aspectos didáticos e o intento de conferir-se mais racionalidade ao estudo, serão de logo apresentados os principais argumentos sustentados por aqueles que não admitem a sindicabilidade do processo disciplinar para, em seguida, discorrermos a respeito das razões que norteiam a corrente que o admite. Por fim, apresentaremos o entendimento ao qual chegamos após o presente estudo.

3.1 Dos argumentos contrários ao controle jurisdicional do processo disciplinar

A função jurisdicional, exercida de forma típica pelo Poder Judiciário, é a prerrogativa do Estado de resolver as controvérsias surgidas na sociedade, aplicando, para isso, o direito ao caso concreto e proferindo uma decisão que será dotada de imutabilidade, em face do princípio da coisa julgada, conforme já o fora mencionado alhures.

Ocorre que, para muitos, essa função ainda deve se restringir à singela tarefa de cotejar o caso à lei, devendo o juiz, sobretudo, primar pelo integral e mecânico cumprimento das normas, ainda que isso importe em injustiça. Escorados basicamente nesse pensamento é que seus adeptos dele se valem para propagar a impossibilidade de submissão do processo disciplinar ao crivo do Poder Judiciário.

Eles se embasam nos seguintes argumentos: ofensa à separação dos poderes; incognoscibilidade do mérito do ato discricionário e na natureza do ato sancionatório, que consideram de cunho político. Dessa forma, nos itens que seguem iniciaremos a abordagem desses fundamentos para, após, contrapô-los com as opiniões que sustentam o cabimento do controle jurisdicional, senão vejamos.

3.1.1 Da ofensa à separação dos poderes

A Constituição Federal consagrou a divisão dos "poderes" do Estado como forma de garantir o funcionamento do sistema de freios e contrapesos e a observância dos direitos fundamentais dos cidadãos. Assim, em seu art. 2º está dito que "São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário".

Esse sistema foi teorizado inicialmente por Aristóteles, em sua obra intitulada "Política", que posteriormente foi detalhado por Jonh Locke no "Segundo Tratado do Governo Civil", sendo finalmente exposto na célebre obra de Montesquieu – "O Espírito das Leis", de em que se espraiou pelas demais nações democráticas.

Ao dissertar sobre a divisão dos poderes Montesquieu (1999) dizia que o equilíbrio entre eles era pressuposto para se atingir um Estado com governo moderado e, para isso, as atribuições de legislar, administrar e julgar não deveriam ser concentradas em uma única pessoa, mas conferidas a entes distintos.

Tal postulado consiste, como se sabe, em distinguir três funções estatais – legislação, administração e jurisdição, que devem ser conferidas, por conseqüência, a três órgãos distintos, que serão autônomos e a exercerão com exclusividade.

Ocorre que não é raro um poder desrespeitar suas limitações, o que se dá quando exerce atribuição que não é sua e se arroga de competência que não possui, e que deveria ser exercida por outro poder. Assim, invade a esfera de atuação alheia, inobservando o dever de convivência harmônica que devia pairar.

No que tange ao nosso objeto de estudo, isso ocorre, segundo a corrente que professa a impossibilidade do controle jurisdicional do processo disciplinar, quando o Poder Judiciário é chamado para rever a punição aplicada ao agente público, seja ele servidor público da Administração estatal ou membro do parlamento investido por mandato eletivo.

Como o ato administrativo disciplinar que aplica a respectiva sanção ao agente público é oriundo ora do Poder Executivo, ora do Poder Legislativo, conforme, num ou noutro caso, o agente que se puna pertença a este ou àquele Poder, o Judiciário não pode rever ou substituir a vontade daqueles poderes pela sua própria vontade, isto é, os critérios utilizados pela Administração para aplicar a reprimenda seriam insuscetíveis de controle judicial.

É o que se depreende da decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) nos autos do MS nº 3.071-0/DF, DJU 14/03/1994, cujo relator foi o ministro Milton Luiz Pereira. Eis sua ementa:

O controle jurisdicional do ato administrativo, para não violar a separação dos poderes, distancia-se do critério político (mérito), cingindo-se à verificação das prescrições legais determinadas (competência e manifestação da vontade do agente, objeto, conteúdo, finalidade e forma). O critério político e razões técnicas, desde que lícitos, são estranhos à prestação jurisdicional

. (grifo nosso)

Dessa forma, ao Poder Judiciário seria vedado rever as sanções funcionais aplicadas aos agentes públicos, pois no fundo o Judiciário estaria revertendo as razões de ordem discricionária e política que condicionaram o administrador a tomar referida decisão.

Assim, vê-se que o apontado óbice está em estreita relação com o que será visto nos tópicos seguintes, que é a alegação de insuscetibilidade de submissão dos atos administrativos discricionários e políticos à apreciação judicial.

3.1.2 Da intangibilidade do mérito do ato discricionário

O primeiro óbice, acima apontado, guarda estreita relação com este e com o seguinte, pois seria justamente pela apreciação judicial dos atos discricionários e políticos, emanados da Administração, que restaria configurada a referida ofensa ao princípio constitucional da separação dos poderes.

O mérito do ato disciplinar são as razões que levaram a Administração a agir de determinada forma diante da situação concreta, o que se dará quando investida da competência discricionária. Assim, ela será livre para ponderar acerca da conveniência e da oportunidade de praticar o ato desta ou daquela maneira, e o Judiciário não poderia interferir alegando a prática de injustiça.

Assim, o quantum e o an da punição a ser aplicada aos agentes públicos não seriam suscetíveis de revisão judicial, pois, quando assim age, a Administração o faz de acordo com sua competência discricionária.

Sob esse aspecto, ao Poder Judiciário só seria legítimo apreciar se o ato punitivo é ou não legal, isto é, se estaria de acordo com a legislação ou não. Maria Sylvia Zanella di Pietro (2006, p. 711), a respeito dos atos discricionários, diz que eles se sujeitam à apreciação judicial, "desde que não se invadam os aspectos reservados à apreciação subjetiva da Administração Pública, conhecidos sob a denominação de mérito (oportunidade e conveniência)". Nesse mesmo sentido, já decidiu o STJ, conforme se depreende do julgamento do RMS n° 1.288-0/SP, DJU 02/05/1994, abaixo transcrito:

É defeso ao Poder Judiciário apreciar o mérito do ato administrativo, cabendo-lhe unicamente examiná-lo sob o aspecto de sua legalidade, isto é, se foi praticado conforme ou contrariamente à lei. Esta solução se funda no princípio da separação dos poderes, de sorte que a verificação das razões de conveniência ou de oportunidade dos atos administrativos escapa ao controle jurisdicional do Estado.

(grifo nosso)

Hely Lopes Meirelles (2003, p. 668) também trata do tema da mesma forma, asseverando o autor o seguinte:

Permitido é ao Poder Judiciário examinar o processo administrativo disciplinar para verificar se a sanção imposta é legítima e se a apuração da infração atendeu ao devido procedimento legal. Essa verificação importa conhecer os motivos da punição e saber se foram atendidas as formalidades procedimentais essenciais, notadamente a oportunidade de defesa ao acusado e a contenção da comissão processante e da autoridade julgadora nos limites de sua competência funcional, isto sem tolher o discricionarismo da Administração quanto à escolha da pena aplicável dentre as consignadas na lei ou regulamento do serviço, à graduação quantitativa da sanção e à conveniência ou oportunidade de sua imposição.

O que se nega ao Judiciário é o poder de substituir ou modificar penalidade disciplinar a pretexto de fazer justiça, pois, ou a punição é legal, e deve ser confirmada, ou é ilegal, e há que ser anulada; inadmissível é a substituição da discricionariedade legítima do administrador por arbítrio ilegítimo do juiz. (grifo nosso)

Assim, embora haja a possibilidade de revisão judicial do processo disciplinar, esta seria restrita aos seus aspectos legais, à análise da compatibilidade do ato sancionatório com a lei, sem adentrar nas considerações quanto à justiça, oportunidade, eficiência, razoabilidade, etc.

3.1.3 Da natureza política do ato

Por fim, as sanções disciplinares aplicadas aos servidores públicos e aos parlamentares, estes, quando incidirem em quebra de decoro, seriam de natureza política e insuscetíveis, por conseguinte, de apreciação judicial.

Embora guarde certa similitude com o ato discricionário, o ato acoimado de político é mais abrangente, pois seria dotado de uma maior carga de discricionariedade do ente administrativo encarregado da apreciação do caso. Nessas espécies de ato, o Poder Judiciário não poderia sequer conhecer de seu conteúdo, haja vista tratar-se de matéria interna corporis.

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M. Seabra Fagundes (2006, p. 180) diz que o próprio sentido de mérito do ato administrativo denota seu cunho político, o que impediria a apreciação jurisdicional, asseverando o autor nos seguintes termos:

O mérito está no sentido político do ato administrativo. É o sentido dele em função das normas da boa administração, ou, noutras palavras, é o seu sentido como procedimento que atende ao interesse público, e, ao mesmo tempo, o ajusta aos interesses privados, que toda medida administrativa tem de levar em conta. Por isso, exprime um juízo comparativo. Compreende os aspectos, nem sempre de fácil percepção, atinentes ao acerto, à justiça, utilidade, equidade, razoabilidade, moralidade etc. de cada procedimento administrativo.

Para os adeptos desse pensamento, a simples classificação do ato administrativo como interna corporis seria suficiente para apregoá-los como atos políticos e excluí-los da apreciação jurisdicional. Nota-se isso particularmente nas decisões do Poder Legislativo sobre a cassação de mandato de seus membros por quebra de decoro parlamentar, em que seriam de forma mais destacada. Nesse sentido já decidiu o STJ, ao julgar o RMS nº 18.959/SE, DJU 10/10/2005, lavrado nos seguintes termos:

ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSO DE CASSAÇÃO DE MANDATO PARLAMENTAR. CONTROLE PELO PODER JUDICIÁRIO DE ATOS DE NATUREZA POLÍTICA. ATO INTERNA CORPORIS. REQUERIMENTO. VALIDADE. 1. [...] 2. Além de ato político, a cassação de mandato parlamentar é interna corporis, cuja apreciação é reservada exclusivamente ao Plenário da Câmara, não podendo o judiciário substituir a deliberação da Casa por um pronunciamento judicial sobre assunto que seja da exclusiva competência discricionária do Poder Legislativo. 3. Recurso não-provido.

Talvez isso se dê em virtude do ranço deixado pelas Constituições de 1934 e 1937, que diziam serem os atos políticos insuscetíveis de apreciação judicial. Nesse período, a motivação política do ato e a alegada supremacia do interesse público sobre o particular frustravam qualquer tentativa do Judiciário de imiscuir-se nessa seara.

Maria Sylvia Zanella di Pietro (2006, p. 712) faz as seguintes colocações acerca desse nebuloso momento:

Houve um período no direito brasileiro, na vigência da Constituição de 1937, em que os atos políticos eram insuscetíveis de apreciação judicial, por força de seu art. 94. Essa norma ligava-se à concepção do ato político como sendo aquele que diz respeito a interesses superiores da nação, não afetando direitos individuais; como o exercício do direito de ação estava condicionado à existência de um direito individual lesado, não ocorrendo lesão, faltava o interesse de agir para o recurso às vias judiciais.

(grifo nosso)

Assim, vê-se que o entendimento acerca dos atos políticos é que estes não seriam sindicáveis porque não causariam prejuízos aos particulares, já que, em tese, seriam praticados visando ao bem comum, à promoção da satisfação coletiva e na persecução do interesse público.

3.2 Dos argumentos favoráveis ao controle jurisdicional do processo disciplinar

Superada a exposição das razões que fundamentam a impossibilidade do exercício do controle jurisdicional do processo disciplinar, iniciaremos aqui o delineamento dos motivos que embasam a tese a seu favor, e que entendemos seja a corrente mais acertada.

Para isso, apresentaremos o entendimento de que as instâncias administrativa e jurisdicional não se confundem, sendo autônomas, o postulado que garante ao administrado o direito de ter acesso à justiça, a necessidade de uma razoável tipificação das condutas, que se configurem como faltosas em face do servidor público e indecorosa em face do parlamentar, além de defender-se a necessidade de proteção judicial aos direitos subjetivos dos sujeitos processados.

3.2.1 Da autonomia entre as instâncias e do acesso à Justiça

Embora a Administração Pública possa apurar e punir internamente seus servidores e agentes políticos, essa faculdade é exercida sem prejuízo da garantia do cidadão de invocar a proteção jurisdicional, existente em face da autonomia entre as instâncias administrativa e judicial.

O processo disciplinar, como expusemos, é deflagrado no âmbito interno da Administração; nele vige o princípio da oficialidade em sua plenitude. Após o seu desate, caso se comprove a prática de falta funcional pelo servidor ou pelo parlamentar, a este será aplicada a respectiva sanção diretamente pela própria Administração, pois o ato administrativo disciplinar goza do atributo da auto-executoriedade.

Ocorre que, caso o ato disciplinar lese ou ameace lesar direitos subjetivos do agente público, este poderá recorrer ao Judiciário para que repare a punição arbitrária. Essa arbitrariedade ocorrerá sempre que a Administração não balizar o processo disciplinar de acordo com os parâmetros legais e principiológicos que norteiam sua atividade.

A Constituição Federal assegura expressamente em seu art. 5°, inc. XXXV, a previsão de amplo acesso ao judiciário para aqueles sujeitos que vierem a ter seus direitos ameaçados. Do mesmo modo, para viabilizar esse sagrado direito, acrescenta a garantia do devido processo legal e do contraditório a todos os litigantes, quer em processo judicial ou administrativo.

Em seu art. 41, § 2º, na redação dada pela emenda constitucional nº 19/98, a Carta Magna diz que a demissão do servidor público estável poderá ser invalidada por sentença judicial, sendo ele, nesses casos, reintegrado ao seu cargo de origem. Daí se depreende a possibilidade do servidor socorrer-se ao Judiciário para ver resguardado seu direito ao regular trâmite do seu processo disciplinar.

Ao analisá-lo, o Judiciário ponderará se os aspectos vinculados do ato disciplinar – que é, prima facie, discricionário – foram observados, como a competência do agente, a finalidade, a forma, e outros. Porém, deverá analisar também se a punição está em consonância com os princípios constitucionais e administrativos que regem a Administração, notadamente os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ), por conduto de sua Quinta Turma, proferiu recentemente acórdão bastante elucidativo nesse sentido, deixando assentado no RMS n° 19.774/SC, DJU 12/12/2005, cujo Relator foi o Ministro José Arnaldo da Fonseca, a possibilidade de revisão judicial do processo disciplinar tendo por supedâneo os princípios constitucionais e administrativos que norteiam a atividade da Administração Pública, especificamente os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Eis sua ementa:

RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO ESTADUAL. PROCESSO DISCIPLINAR. DEMISSÃO. CAPITULAÇÃO DA INFRINGÊNCIA. DIFERENÇA ENTRE O RELATÓRIO DA COMISSÃO E O ATO INDIGITADO. AGRAVAMENTO DA PENA: DEMISSÃO. SUGESTÃO DA PENA DE SUSPENSÃO. DESPROPORCIONALIDADE. Ao Poder Judiciário não cabe discutir o mérito do julgamento administrativo em processo disciplinar, mas, por outro lado, compete-lhe a análise acerca da proporcionalidade da penalidade imposta, nos termos de farto entendimento jurisprudencial. Mesmo sendo clara em relação à ausência de comprovação de lesão ao erário e de dolo por parte do recorrente, a autoridade coatora entendeu pela presença da desídia, e assim alterou a capitulação da infringência, aplicando, com evidente falta de proporção, a pena demissória. Recurso provido, com a concessão parcial da ordem para determinar a anulação da demissão e a conseqüente reintegração do recorrente, resguardando à autoridade coatora a aplicação da penalidade sugerida pela Comissão. (grifo nosso)

Germana de Oliveira Moraes (2004, p. 110-111), ao dissertar acerca do princípio do acesso à justiça em face do princípio da separação dos poderes, afirma a necessidade de uma interpretação que leve à coexistência de ambos. Diz a autora o seguinte:

Para saber se há compatibilidade entre o princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional e o princípio da separação de poderes, é preciso, de um lado, verificar se há hipóteses nas quais a conduta da Administração Pública ocasiona lesão ou ameaça a direito insuscetíveis de apreciação judicial, e, de outro, se há intromissão indevida do Poder Judiciário na atuação administrativa. A limitação do controle jurisdicional da atividade administrativa, a denominada "área de livre decisão", seja de atuação discricionária da Administração Pública, seja de preenchimento do sentido dos conceitos indeterminados, reside nas conseqüências decorrentes desse controle (e não na exclusão de determinados atos), as quais se restringem, na grande maioria das vezes, apenas a invalidar o ato impugnado, sem determinar sua substituição por outro. Assim, no Direito Brasileiro, os princípios da inafastabilidade da tutela jurisdicional e da separação dos poderes são perfeitamente compatíveis entre si, pois, quando da atividade não vinculada da Administração Pública, desdobrável em discricionariedade e valoração administrativa dos conceitos verdadeiramente indeterminados, na denominada "área de livre decisão" que lhe é reconhecida, resultar lesão ou ameaça a direito, é sempre cabível o controle jurisdicional, seja à luz do princípio da legalidade, seja em decorrência dos demais princípios constitucionais da Administração Pública, de publicidade, de impessoalidade e da moralidade, seja por força do princípio constitucional da igualdade, ou dos princípios gerais de Direito da razoabilidade e da proporcionalidade, para o fim de invalidar o ato lesivo ou ameaçador de direito.

Assim, vemos que o controle jurisdicional, fundado no direito de acesso à justiça, não encontra óbice no postulado da separação dos poderes. Ademais, é dever da Administração Pública observar, ao emitir um ato disciplinar em detrimento de seus agentes, os mesmos requisitos do ato administrativo em geral, devendo, sobretudo, motivá-lo e fundamentá-lo.

No que tange ao processo disciplinar em face dos servidores públicos, se a autoridade incumbida de aplicar a sanção funcional discordar da opinião emitida pela comissão processante em seu parecer, deverá expor os motivos pelos quais assim age. Se não o fizer, tal ato punitivo será anulável por ausência de motivo. Sob esse aspecto, ela estará vinculada aos fatos apurados no processo disciplinar, sendo-lhe aplicável, nesse aspecto, a teoria dos motivos determinantes, só não se vinculando à penalidade recomendada no parecer conclusivo.

3.2.2 Da existência de uma razoável tipificação das condutas

Embora a noção de tipicidade seja mais afeta ao direito penal, em que estão em jogo interesses de suma importância, tanto da sociedade, como do indivíduo, isso não obsta que, em relação às faltas funcionais praticadas pelos servidores públicos da União e pelos parlamentares, quando configurem quebra de decoro, sejam-lhes aplicados as premissas básicas do instituto com o fim de resguardar seus direitos subjetivos.

É verdade que no âmbito penal os interesses em conflito são de maior magnitude (honra, integridade física, liberdade, etc.), o que demandará do Estado e dos entes envolvidos mais cautela no procedimento apuratório. Porém, isso não quer dizer que ali seja a única seara na qual direitos subjetivos individuais estejam em questão, podendo sofrer restrições.

Quando é instaurado processo disciplinar em face de determinado servidor público, a ele poderá ser aplicado, desde que comprovada a falta, sanções de diversos níveis, que vão desde uma reprimenda simples, como a advertência, até a demissão e a cassação de aposentadoria ou disponibilidade [06], assim o agente público será privado da única fonte de subsistência que possui para manter-se e à sua família.

Essa questão ganha maior evidência nos procedimentos disciplinares instaurados em face dos congressistas federais (deputados e senadores), quando acusados de prática de conduta incompatível com o decoro parlamentar, pois aqui, caso reste comprovada a falta e, nesse sentido, seja a votação de seus pares, haverá a cassação do mandato do parlamentar ímprobo, já que esta é a sanção cominada.

Assim, vê-se que uma tipicidade prévia e mínima das condutas faltosas (servidores) e indecorosas (parlamentares) é fundamental, tanto para resguardar os sujeitos processados de eventuais processos disciplinares, que às vezes são impulsionados mais pela perseguição e pelo arbítrio que pelo zelo da postura dos agentes públicos, como até para legitimar as eventuais sanções que vierem a serem-lhes aplicada.

Nesse sentido, a já referida lei nº 8.112/90 traz os deveres7e as proibições8 aos quais estão vinculados os servidores públicos, de modo que devem ser tomadas por parâmetro para aplicação das penas de ordem estatutária.

Em seu art. 128 está assentado que para aplicação de qualquer penalidade deve-se levar em consideração a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para o serviço público, as circunstâncias agravantes e atenuantes, bem como os antecedentes funcionais do servidor.

Além disso, deve-se destacar que a referida norma correlaciona à sanção cominada as condutas previamente descritas nos arts. 116 e 117, que tratam dos deveres e das proibições dos servidores, como fora mencionado. Assim, aplicar-se-á a pena de advertência nos casos apontados pelo art. 129; a de suspensão nos casos do art. 130; a de demissão para as faltas descritas pelo art. 132; e a de cassação de aposentadoria ou disponibilidade nos casos do art. 134.

José dos Santos Carvalho Filho (2006, p. 614), ao tratar da responsabilidade administrativa dos servidores, ensina que há necessidade da Administração motivar a penalidade aplicada ao agente público, não só como requisito do ato administrativo, mas também porque é daí que será possível averiguar se o administrador atentou para a correlação que deve existir entre a infração funcional e a punição imposta. Eis suas palavras:

[...] Outro é o princípio da motivação da penalidade, necessário para apontar os elementos que comprovam a observância, pelo administrador, da correlação entre a infração funcional e a punição imposta. Por essa razão, em tais atos punitivos devem estar integrados os fatores apurados no processo administrativo disciplinar, bem como os fundamentos jurídicos da punição, rendendo ensejo, por conseguinte, a que possam tais elementos ser aferidos no Poder Judiciário. (grifo nosso)

Idêntico pensamento deve ser seguido em relação aos congressistas acusados de procederem de forma incompatível com o decoro parlamentar.

A Constituição Federal, por muitos taxada de extremamente analítica, pois regula de forma minudente todas as questões que entende relevantes para a formação e desenvolvimento do Estado, contendo assim normais constitucionais formais e matérias, aqui merece elogios.

O constituinte originário, pois, prevendo que as disputas eleitorais sazonalmente travadas pelos grupos políticos em busca do poder poderiam vir a prejudicar o regime democrático e a estabilidade das instituições, restringiu a discricionariedade das casas legislativas (Câmara dos Deputados e Senado Federal) em dizer o que seria ato incompatível com o decoro parlamentar.

Dessa forma, ao preceituar quais as duas principais situações que ofendem a dignidade parlamentar e ensejam a cassação do mandato9, deixou assentado desde logo a possibilidade do Poder Judiciário apreciar o procedimento de cassação e perquirir se houve, ou não, a prática de ato indecoroso, não havendo de se invocar aqui o óbice de que se trataria de ato interna corporis ou de natureza política.

Assim, no caso de processo disciplinar de cassação de mandato de congressista acusado de conduta incompatível com o decoro parlamentar, também deverá haver a motivação e a comprovação da conduta indecorosa, consistente no abuso das prerrogativas individuais ou na percepção de vantagens indevidas.

Nesses dois casos poderá o Judiciário, se provocado pelo agente político, analisar o procedimento disciplinar; se a decisão estiver em consonância com a prova carreada aos autos, o julgamento final no sentido da cassação do mandato ou da absolvição será mantido incólume; caso contrário, se dele divergir, a decisão final poderá ser anulada pelo Judiciário por afronta à Constituição Federal.

Destaque-se que o STF, por ser o juízo competente para julgar as ações mandamentais impetradas em face das Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, e tendo em vista ainda que o mandado de segurança, além de cabível, será o instrumento processual mais adequado para tutelar os interesses em conflito, será a Excelsa Corte que apreciará as ações deste jaez, que terão por objeto a revisão das decisões do parlamento pendendo ora pela cassação ora pela manutenção do mandato do congressista10.

3.2.3 Da proteção aos direitos subjetivos

Não raro servidores públicos e congressistas, submetidos a procedimento disciplinar por suposta prática de conduta faltosa, batem às portas do Poder Judiciário na tentativa de salvaguardar seus direitos, invocando razões de ordem jurídica para rever ou obstar aquele julgamento que a princípio seria, segundo alguns, de natureza política, e cuja apenação ficaria ao sabor da apreciação discricionária da Administração.

Contudo, é sabido que os conceitos de falta funcional e decoro parlamentar, nos quais incidem os servidores públicos e congressistas, respectivamente, que são submetidos a processo disciplinar, como outros do mundo jurídico, podem ser ponderados pelo Judiciário nos casos submetidos à sua apreciação, pois é esta a instituição que, em último caso, os agentes injustiçados buscarão tutela resguardo aos seus direitos.

Assim, ao servidor público deve ser assegurado a ampla possibilidade de levar seu processo disciplinar a análise do Poder Judiciário, caso se sinta lesado ou na iminência de o sê-lo, pois existe a possibilidade de mácula a direitos subjetivos seus, como o direito à estabilidade no cargo, à impenhorabilidade dos seus vencimentos, dada sua natureza alimentar, ao direito de defesa nos processos judiciais ou administrativos, etc.

Ademais, os termos "falta funcional" e "decoro parlamentar", sendo conceitos jurídicos, ainda que parcialmente indeterminados, não outorgam um "cheque em branco" à Administração para apontar quando um ou outro restará configurado.

Eles podem e devem ser interpretados pelo Judiciário nos casos em que sejam chamados a analisar, em que perquirirá da prática, ou não, de conduta faltosa do servidor ou do agente público à luz dos princípios constitucionais e administrativos. Nesse sentido já decidiu o STF, ao julgar o RMS n° 24.699/DF, DJU 01/07/2005, cuja ementa é a seguinte:

EMENTA: RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO. PROCESSO ADMINISTRATIVO. DEMISSÃO. PODER DISCIPLINAR. LIMITES DE ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO. PRINCÍPIO DA AMPLA DEFESA. ATO DE IMPROBIDADE. 1. Servidor do DNER demitido por ato de improbidade administrativa e por se valer do cargo para obter proveito pessoal de outrem, em detrimento da dignidade da função pública, com base no art. 11, caput, e inciso I, da Lei n. 8.429/92 e art. 117, IX, da Lei n. 8.112/90. 2. A autoridade administrativa está autorizada a praticar atos discricionários apenas quando norma jurídica válida expressamente a ela atribuir essa livre atuação. Os atos administrativos que envolvem a aplicação de "conceitos indeterminados" estão sujeitos ao exame e controle do Poder Judiciário. O controle jurisdicional pode e deve incidir sobre os elementos do ato, à luz dos princípios que regem a atuação da Administração. 3. Processo disciplinar, no qual se discutiu a ocorrência de desídia – art. 117, inciso XV da Lei n. 8.112/90. Aplicação da penalidade, com fundamento em preceito diverso do indicado pela comissão de inquérito. A capitulação do ilícito administrativo não pode ser aberta a ponto de impossibilitar o direito de defesa. De outra parte, o motivo apresentado afigurou-se inválido em face das provas coligidas aos autos. 4. Ato de improbidade: a aplicação das penalidades previstas na Lei n. 8.429/92 não incumbe à Administração, eis que privativa do Poder Judiciário. Verificada a prática de atos de improbidade no âmbito administrativo, caberia representação ao Ministério Público para ajuizamento da competente ação, não a aplicação da pena de demissão. Recurso ordinário provido. (grifo nosso)

No que tange aos congressistas, também lhes deve ser assegurada a possibilidade de revisão judicial de seus processos de cassação por suposta quebra de decoro, pois aqui também está em jogo direitos individuais seus, além da expectativas de seus eleitores, que o investiram no mandato.

O STF já se pronunciou sobre essa questão, e o Min. Carlos Velloso, em seu voto, no julgamento do MS nº 21.564/DF, enfatizou a possibilidade de revisão judicial de "atos políticos" quando em jogo direitos subjetivos. Eis o trecho do seu voto:

Onde houver a alegação no sentido de que um direito subjetivo, público ou privado, está sendo violado, lá estará o juiz para curar a lesão. É certo que há atos de natureza puramente política, tanto do Congresso quanto do Executivo, que estão imunes ao controle jurisdicional. Todavia – a lição é velha, mas é atual, é a do maior constitucionalista brasileiro, é de Ruy – "a violação de garantias individuais, perpetradas à sombra de funções políticas, não é imune à ação dos tribunais." [...]

É sabido que decoro parlamentar significa o dever, comum aos legisladores, de procederem com ética, probidade e zelo na sua vida pública. Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1972) diz que já na CF/69 houve uma delimitação do que se entedia por decoro parlamentar, pois aquela Carta Política restringiu o âmbito do termo, não havendo infração ao dever de decoro, apta a ensejar a perda do mandato eletivo, senão quando a conduta do congressista configurasse ação ou omissão descrita como tal, na Constituição ou no regimento interno da Casa Legislativa.

Em face dessa evolução conceitual, e tendo em vista que o procedimento disciplinar que apura a prática de conduta incompatível com o decoro parlamentar pode extirpar direitos subjetivos do indivíduo e da sociedade, o Poder Judiciário, nos casos já previstos constitucionalmente, pode valorar seu conteúdo e dizer se, em determinada situação, submetida à sua apreciação (CF, art. 5º, XXXV) houve ou não a prática de conduta indecorosa.

Esses casos são: i) o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional; e ii) a percepção de vantagens indevidas. Frisamos ainda que o uso das imunidades parlamentares, no entanto, não foi conferida ao congressista por suas qualidades pessoais, mas sim em virtude das atribuições do seu cargo.

Por outro lado, a fiscalização do Congresso Nacional não pode redundar numa "cassa às bruxas", feita de forma arbitrária e desproporcional. A esse respeito, Eduardo Fortunato Bim (2006, p. 77) diz que "o exercício das imunidades não pertence tão subjetivamente ao próprio parlamento", e pode vir a ser controlado se o parlamentar não extrapolou do "regular exercício das imunidades".

Nesse sentido adverte Miguel Reale (1969, p. 88):

Grave risco cercearia o regime democrático se "faltar ao decoro parlamentar" viesse a significar, também, pretensos excessos praticados pelo parlamentar no exercício do seu dever de crítica e de fiscalização dos negócios públicos, a começar pelos da própria Casa a que pertence.

(grifo nosso)

Assim, não há que se falar que a punição das faltas funcionais dos servidores públicos ou dos parlamentares sejam atos políticos, discricionários ou interna corporis, cuja apreciação e ponderação ficaria ao exclusivo alvedrio da autoridade administrativa.

Na verdade, será plenamente cabível o controle judicial do processo disciplinar em ambos os casos, visto que há a possibilidade, ainda que potencial, de ofensa a direitos fundamentais dos sujeitos processados.

Desse modo, apresentadas as premissas acima no sentido do cabimento do controle jurisdicional do processo disciplinar instaurado, tanto em face dos servidores públicos, quando cometem falta funcionais, quanto em face dos parlamentares, quando infringem o dever de decoro, encerra-se aqui o presente capítulo. Passamos agora fazer as derradeiras ponderações quanto ao assunto ora estudado.

Sobre o autor
Paulo César Morais Pinheiro

Procurador do Estado do Piauí e Advogado. Ex-Analista Processual do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. Pós-graduando em Direito Constitucional (Universidade Estácio de Sá) e em Direito Processual Civil (Universidade Anhanguera Uniderp/LFG)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PINHEIRO, Paulo César Morais. Controle jurisdicional do processo disciplinar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1878, 22 ago. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11622. Acesso em: 22 nov. 2024.

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