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Controle jurisdicional do processo disciplinar

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22/08/2008 às 00:00
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O processo disciplinar instaurado em face dos servidores públicos e dos parlamentares não está, assim como tantos outros atos estatais, imune à revisão jurisdicional.

RESUMO

A importância da pesquisa acerca do tema - Controle Jurisdicional do Processo Disciplinar - reside em apreciar a revisão judicial sobre os procedimentos e atos da administração pública que visem a aplicar sanções de natureza estatutária e política aos servidores públicos e aos parlamentares, respectivamente, considerando, para tanto, as novas vertentes do princípio da legalidade, a adoção do Estado de Direito e a garantia de acesso à justiça. O que se pretende com este trabalho é demonstrar a viabilidade do amplo controle jurisdicional dos processos de natureza disciplinar que são instaurados em desfavor dos servidores públicos civis da União e dos parlamentares do Congresso Nacional (deputados e senadores), tendo em vista a necessidade de se valorizar os preceitos de ordem constitucional, sobretudo, os de hierarquia principiológica, além do que o referido controle não acarreta prejuízos ao princípio da separação dos poderes, que permanece incólume, pois apenas promove a efetividade do ordenamento jurídico.

Palavras-chave: Processo Disciplinar. Controle Jurisdicional. Cabimento.

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1 LINHAS GERAIS ACERCA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E DO CONTROLE JURISDICIONAL. 1.1 A Administração Pública no Estado de Direito. 1.2 O regime jurídico da Administração Pública. 1.2.1 Fundamentos. 1.2.2 A proeminência da Constituição Federal. 1.2.3 Dos atos administrativos. 1.3 O controle jurisdicional dos atos administrativos. 1.3.1 Hipóteses. 1.3.2 Os atos administrativos discricionários. 2 O PROCESSO DISCIPLINAR. 2.1 O processo disciplinar por falta funcional. 2.1.1 Conceito. 2.1.2 Fundamentos. 2.1.3 Princípios e modalidades. 2.1.4 Etapas. 2.2 O processo disciplinar por conduta ofensiva ao decoro parlamentar . .2.1 Conceito .2.2.2 As modalidades de condutas ofensivas ao decoro parlamentar. 2.2.3 Das conseqüências da conduta indecorosa . 3 O CABIMENTO DO CONTROLE JURISDICIONAL DO PROCESSO DISCIPLINAR. 3.1 Dos argumentos contrários ao controle jurisdicional do processo disciplinar. 3.1.1 Da ofensa à separação dos poderes. 3.1.2 Da intangibilidade do mérito do ato discricionário. 3.1.3 Da natureza política do ato. 3.2 Dos argumentos favoráveis ao controle jurisdicional do processo disciplinar. 3.2.1 Da autonomia entre as instâncias e do acesso à Justiça. 3.2.2 Da existência de uma razoável tipificação das condutas. 3.2.3 Da proteção aos direitos subjetivos. CONCLUSÃO . REFERÊNCIAS. APÊNDICE.


INTRODUÇÃO

A partir da decadência dos regimes monárquico-absolutistas, notadamente da Revolução Francesa, em 1789, que constitui o marco histórico delimitador do fim da Idade Moderna e início da Era Contemporânea, o Estado Democrático de Direito deixou de ser uma utópica aspiração das nações para tornar-se realidade, sendo essa ruptura política fundamentada basicamente nos ideais humanitários e liberais, em alta na época, pregada pelos filósofos iluministas.

Desde então, seja nas monarquias parlamentaristas, seja nas repúblicas presidencialistas, a idéia de submeter todos os membros da coletividade ao ordenamento jurídico nacional, fundado numa Constituição, passou a aplicar-se também ao Estado. Assim, foram estabelecidos direitos e garantias individuais e coletivas em prol dos cidadãos oponíveis ao próprio Estado – isso sem prejuízo da sua aplicação nas relações privadas – tais como o direito à vida, à propriedade, à segurança, ao julgamento justo perante o juízo natural, ao devido processo legal e à ampla defesa, à inviolabilidade do lar, da vida privada e da intimidade das pessoas, dentre outros.

Como a característica principal dos Estados de Direito é sua submissão à Constituição e às Leis, o princípio da legalidade e o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional se mostram os pilares de sustentação desse regime democrático, pois deles dependem a maioria dos demais. Nesse aspecto, representam simultaneamente uma garantia dos cidadãos contra abusos eventualmente praticados pelo Estado e pelas entidades que o compõem e um direito à reparação pelos possíveis danos que este venha a causar-lhes ao exercer sua atividade.

Sabido que o Estado, sendo uma ficção jurídica, não atua senão por intermédio da conduta de seus agentes (servidores públicos e agentes políticos), esses sujeitos podem vir a praticar atos incompatíveis com as normas vigentes, podendo e devendo, por isso, serem-lhes aplicadas as sanções previamente cominadas pelo ordenamento estatal.

Porém, ao exercer o poder disciplinar sobre seus funcionários, o Estado estará irremediavelmente jungido ao princípio da legalidade, isto é, deverá limitar-se a aplicar a sanção cabível, que seja compatível e proporcional ao desvio cometido, observando as regras e os princípios do direito, notadamente a ampla defesa e o devido processo legal, sob pena de ter sua decisão punitiva revista e reformada pela intervenção do Poder Judiciário, caso seja provocado a se manifestar por impulso do sujeito lesado.

Assim, embora o Estado detenha a prerrogativa de disciplinar internamente os seus servidores e as demais pessoas sujeitas ao regime jurídico de direito público, aplicando aos faltosos a sanção que entender conveniente e bastante dentre aquelas existentes, a verdade é que essa punição deve ser pautada pela legalidade, conceito atualmente entendido não mais como a estrita observância ao direito positivo, mas também aos princípios constitucionais e administrativos explícitos e implícitos.

Sob esse prisma, o estudo do controle jurisdicional dos atos administrativos, embora ainda seja um tema nebuloso e intrincado, é apaixonante e extremamente recompensador, sobretudo quando descemos à minúcia de analisar especificamente a possibilidade de revisão dos processos disciplinares.

À guisa de exemplo, são freqüentes os casos de servidores públicos sancionados a revelia da legalidade, às vezes, de forma imotivada, noutras sem a observância mínima dos princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, o que enseja a propositura das mais diversas ações judiciais pelos agentes prejudicados, em que pleiteiam a cessação da arbitrariedade.

É comum vermos notícias veiculadas pela mídia informando a atuação do Poder Judiciário no âmbito do processo disciplinar, notadamente, nos casos em que servidores são acusados de crimes e expulsos da Administração, após sumário e superficial procedimento disciplinar, sendo, contudo, posteriormente, readmitidos por decisão judicial em virtude da absolvição na instância criminal. Assim, Juízes e Tribunais ora têm concedido ordem suspensiva do feito administrativo ainda em curso, ora decisão declaratória de nulidade do ato disciplinar e, às vezes, até mesmo mandado judicial de reintegração, assegurando ao servidor demitido o retorno ao cargo que ocupava.

Isso é possível graças à adoção do Estado de Direito e ao expresso acolhimento do princípio da legalidade, sem prejuízo dos demais, pela Constituição Federal, o que possibilita o controle jurisdicional dos atos administrativos. A própria Carta Magna assegura a possibilidade de revisão do processo disciplinar pelo Poder Judiciário, estabelecendo que o servidor público estável só perderá o cargo ou em virtude de sentença judicial transitada em julgado, ou mediante processo administrativo em que lhe seja facultado defender-se amplamente, ou ainda mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho, na forma da lei complementar.

No que tange ao controle jurisdicional da decisão que proscreve o mandato eletivo dos membros do Congresso Nacional, embora o Pretório Excelso já tenha se manifestado negativamente quanto a sua admissibilidade, fê-lo utilizando-se do argumento de que tal ato seria de natureza política e discricionária, insuscetível, portanto, de apreciação judicial.

Contudo, é fundamental não generalizarmos esse entendimento. A Suprema Corte, na verdade, deveria fazer uma análise pontual de cada caso submetido a sua apreciação, pois, do contrário, estaria consagrando o autoritarismo e sufragando cassações de mandato totalmente descabidas que, no fundo, têm como justificativa meras desavenças políticas ou ideológicas. Se continuar a prevalecer esse entendimento genérico do STF, toda decisão daquele jaez seria de natureza política e discricionária, inabalável, portanto, em face de apreciação judicial, o que seria, aí sim, ofensa ao princípio da separação e autonomia dos poderes.

Como se vê, a análise dos atos administrativos de natureza disciplinar aplicáveis pela Administração aos seus servidores e agentes, bem como sua sujeição a revisão pelo Poder Judiciário, é tema atual e pululante na doutrina e jurisprudência.

Fincadas essas premissas, buscar-se-á desenvolver pesquisa monográfica que responda os seguintes questionamentos: se o controle jurisdicional sobre o processo administrativo disciplinar instaurado contra servidores públicos importa em ofensa ao princípio da separação dos poderes; se a autoridade incumbida de sancionar o servidor faltoso está vinculada à conclusão e aos fatos apurados no processo disciplinar, sendo-lhe aplicável a Teoria dos Motivos Determinantes; e finalmente se a perda do mandato eletivo dos membros do Congresso Nacional, sob o fundamento de conduta incompatível com o decoro parlamentar, é passível de controle judicial perante o Supremo Tribunal Federal.

Quanto aos aspectos metodológicos, as hipóteses levantadas foram investigadas através de pesquisa bibliográfica. No tocante à tipologia da pesquisa, esta, segundo o emprego dos resultados, é pura, uma vez que é realizada unicamente com o intuito de aumentar o conhecimento, sem transformar a realidade. No que se refere à abordagem, é quantitativa, através da pesquisa de fatos e de dados objetivos, e qualitativa, com a observação das ações, relações, e situações sociais pertinentes. Quanto aos objetivos, a pesquisa é exploratória, uma vez que procurará aprimorar idéias, buscando maiores informações sobre o tema em foco, e descritiva, posto que buscou descrever, explicar, classificar, esclarecer e interpretar o fenômeno observado.

Tendo por base os objetivos apontados e, de acordo com o método utilizado, o desenvolvimento deste estudo foi executado em três capítulos para que, ao final, apresentássemos a opinião que se entendeu mais adequada para o caso em testilha.

No primeiro será abordado o regime jurídico ao qual a Administração Pública se encontra submetida, fazendo-se uma análise das normas constitucionais e legais, bem como dos atos administrativos e seus elementos, requisitos e atributos, que o ente estatal emite visando à persecução do interesse público. Destacar-se-á os aspectos gerais do controle jurisdicional e seu manejo como instrumento de garantia dos direitos fundamentais em face da Administração Pública, seu desenho em nosso atual Estado de Direito e a atuação do Poder Judiciário como ente garantidor do ordenamento jurídico.

Será mencionada também a questão do controle jurisdicional dos atos administrativos, feito genericamente com fulcro nos princípios constitucionais e administrativos, notadamente a legalidade, a inafastabilidade da jurisdição e a segurança jurídica, destacando-se seu dever de observância, não só da literalidade da lei, mas também da compatibilidade do ato com o sistema jurídico, o que vale inclusive para os atos discricionários.

Apontados esses lineamentos gerais sobre a atividade administrativa e o controle jurisdicional do Estado, com destaque para a ampliação da esfera de conhecimento do Poder Judiciário sobre os atos administrativos, passa-se a averiguar os aspectos concernentes ao processo disciplinar, dentre os quais seu conceito, natureza, fundamento, princípios, modalidades, forma de desenvolvimento e aplicabilidade da decisão sancionatória, além das nuanças do procedimento disciplinar em face dos servidores públicos civis federais e dos congressistas, estes quando acusados de praticarem conduta incompatível com o decoro parlamentar.

Estabelecidas essas considerações, que serão apresentadas, respectivamente, nos dois primeiros capítulos, foi então discutido o cabimento ou não, e se amplo ou restrito, do controle jurisdicional do processo disciplinar, o que foi feito no terceiro capítulo e em duas partes.

Na primeira foi enfocado o processo disciplinar propriamente dito, que é aquele instaurado contra os servidores públicos federais, e na segunda abordou-se o controle jurisdicional do procedimento, de natureza disciplinar, que visa a apurar a prática de conduta incompatível com o decoro parlamentar por parte dos congressistas federais (deputados e senadores). Em ambos foram levantados posicionamentos a favor e contra o cabimento do controle jurisdicional.

Por fim, ante os argumentos que foram desenvolvidos no transcurso desse estudo, apresentou-se o entendimento que pensamos ser o mais condigno e eficaz para tutelar os direitos individuais dos sujeitos processados e da sociedade, conforme num ou noutro sentido reste comprovado a prática do desvio funcional, com ênfase no apontado pela doutrina e pela jurisprudência mais recente, segundo os princípios da dignidade da pessoa humana, da legalidade, da garantia da jurisdição, da segurança jurídica, da razoabilidade e da proporcionalidade.

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1 LINHAS GERAIS ACERCA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E DO CONTROLE JURISDICIONAL

O Estado, como atualmente o conhecemos, foi concebido limitado em seu início, uma vez que fora constituído somente para proporcionar segurança e proteção à propriedade privada e à integridade física daquelas pessoas que o compunham, restringindo-se a manter a paz e o status quo através do combate às invasões estrangeiras. Assim evoluiu, a titularidade do poder mudou de mãos – do monarca para o povo – e o Estado foi do feudalismo ao absolutismo monárquico, daí ao liberalismo e ao socialismo, chegando ao modelo social-democrata hodierno.

Veio o constitucionalismo e o reconhecimento de direitos fundamentais aos cidadãos, assim como a tripartição das funções ou "poderes" estatais, isto é, as prerrogativas de administrar, legislar e julgar, antes concentradas em uma única pessoa ou instituição, passaram a ser conferidas a entidades distintas, que são os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, incumbindo ao primeiro a administração pública, ao segundo a elaboração das leis e ao terceiro assegurar o cumprimento delas. A partir de então surgiram os Estados Democráticos de Direito, que conforme o caput do art. 1º da Constituição Federal é o modelo de poder sobre o qual o Brasil se encontra atualmente estruturado.

Contudo, embora as funções estatais devam ser exercidas de forma independente e harmônica por cada Poder, com estrita obediência à Constituição e às leis, isso nem sempre ocorre. Muitas vezes a arbitrariedade e a violação a direitos individuais cometida por um Poder deságua e reflete noutro. Nesse ponto se destaca o Poder Judiciário e a função jurisdicional como o último refúgio do cidadão injustiçado. Assim, a jurisdição estatal consiste em aplicar aos conflitos intersubjetivos que afloram na sociedade as normas do ordenamento jurídico, visando com isso solucioná-los através da proclamação de uma determinada decisão, que será, de regra, definitiva.

Sob esse aspecto, ao nos constituirmos sob a forma de Estado Democrático de Direito, devemos ter em mente sua principal característica, que é a submissão do próprio Estado ao ordenamento jurídico pátrio, ao qual estão igualmente sujeitos os demais membros da coletividade, cuja base é a Constituição Federal. Nesse modelo, não há privilégios nem exceções de qualquer sorte, a não ser as prerrogativas funcionais e institucionais asseguradas constitucionalmente. Dessa forma, tanto os cidadãos, quanto o próprio Estado estão sujeitos ao império da lei.

1.1 A Administração Pública no Estado de Direito

O atual estágio de evolução sócio-político fez com que adotássemos o Estado Democrático de Direito quanto à forma de constituição, consoante se depreende do caput do art. 1º da CF, cujo modo de governo escolhido é o presidencialismo republicano. Aqui a Administração Pública, ao invés do que se dava nas monarquias absolutistas – onde sua atividade era "legitimamente desregrada" – tem sua atuação "legalmente definida", conforme parâmetros normativos pré-estabelecidos.

Nesse sentido, distingue-se o vetusto Estado de Polícia do atual Estado de Direito, conforme ensina Merkl (1980, p. 92-93) apud Maria Sylvia Zanella di Pietro (2001, p.17-18):

A primeira etapa do Estado moderno é conhecida como Estado de Polícia, em que a forma de Governo adotada é a monarquia absoluta. A segunda etapa corresponde ao surgimento do Estado de Direito. [...] A oposição, mais corrente, entre Estado de Polícia e Estado de Direito representa, igualmente, dois tipos de administração, cuja diferença reside na relação que guarda a administração com o campo funcional que dela se destaca. [...] O Estado de Polícia se apresenta como aquele Estado cuja administração se acha legalmente incondicionada, enquanto o Estado de Direito oferece uma administração condicionada legalmente. (grifo nosso)

Segundo José Afonso da Silva (2006, p.114) a submissão do Estado ao Poder Judiciário é elemento fundamental num Estado de Direito, asseverando o renomado constitucionalista que "Estado submetido ao juiz é Estado cujos atos legislativos, executivos, administrativos e também judiciais ficam sujeitos ao controle jurisdicional no que tange à legitimidade constitucional e legal".

Desse modo, serão sindicáveis perante o Poder Judiciário, não só a atuação abusiva dos particulares e os conflitos entre estes, mas também todas as desavenças surgidas entre aqueles e o próprio Estado, corporificado pela Administração Pública.

Esse entendimento é confirmado pelo disposto nos arts. 5°, incs. II e XXXV, e 37, caput, da CF, que trazem, respectivamente, os postulados da inafastabilidade da garantia jurisdicional e o princípio da legalidade, aplicáveis tanto aos jurisdicionados, quanto à Administração Pública.

Ressalta-se que, quando nos referimos à Administração Pública, consideramos aqui a sua forma subjetiva, a qual, segundo Maria Sylvia Zanella di Pietro (2001, p. 19), consiste naquele "conjunto de pessoas e órgãos que exercem a função administrativa do Estado", pois embora o Poder Executivo seja por excelência aquele que se ocupa precipuamente da atividade administrativa, esta não lhe é exclusiva, mas típica, pois tanto o Poder Legislativo quanto o Judiciário a exercem de forma atípica, ao lado das suas funções institucionais de normatizar e julgar, respectivamente. Estes o fazem sempre que praticam atos de natureza administrativa, isto é, quando, por exemplo, contratam um serviço através de licitação, quando nomeiam seus funcionários ou os demitem, etc.

Da Administração Pública, interessa-nos, particularmente, a sua atuação concreta, pois quando o administrador público age e exerce suas funções, não o faz desgarrado de qualquer parâmetro, mas de acordo com o princípio da legalidade, ou seja, atua com estrita observância à Constituição e às Leis. Isso significa que não lhe foi conferido vontade ou margem de escolha entre esta ou aquela conduta, pois sua atividade já é previamente pautada em lei. Hely Lopes Meirelles (2003, p. 86) tece os seguintes comentários a respeito desse princípio:

A legalidade, como princípio de administração (CF, art. 37, caput), significa que o administrador público está, em toda a sua atividade funcional, sujeito aos mandamentos da lei e às exigências do bem comum, e deles não se pode afastar ou desviar

, sob pena de praticar ato inválido e expor-se a responsabilidade disciplinar, civil e criminal, conforme o caso. [...] A eficácia de toda atividade administrativa está condicionada ao atendimento da Lei e do Direito. [...] Na Administração Pública não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza. A lei para o particular significa "poder fazer assim"; para o administrador público significa "dever fazer assim". (grifo nosso)

Sob esse aspecto, embora a Administração Pública sempre busque a perfeição e a eficiência na satisfação do interesse coletivo, especializando-se cada vez mais nas diversas áreas de sua incumbência, não poderá olvidar que sua atividade deverá ser exercida com estrita observância à legalidade, que no Estado de Direito é mais que o simples cumprimento da lei.

1.2 O regime jurídico da administração pública

A atividade administrativa do Estado está embasada no princípio da legalidade, conforme mencionado anteriormente, pois é ele que a legitima, sendo ambos objeto de estudo, tanto do direito administrativo, como do direito constitucional, em face da interação das matérias. Em conseqüência, nesse ponto, far-se-á menção aos fundamentos da atividade administrativa e às principais normas e dispositivos que tratam da Administração Pública, conforme se passa a detalhar.

1.2.1 Fundamentos

Os principais fundamentos que legitimam a atividade administrativa do Estado são a supremacia do interesse público sobre privado e a sua indisponibilidade por parte da Administração. Disso resulta que toda a atividade estatal há de ser executada com base nesses postulados.

Celso Antônio Bandeira de Mello (2006) atribui especial importância a esses dois princípios, afirmando que não devem ser analisados em si mesmos, de forma isolada, mas sim de acordo com suas repercussões no ordenamento jurídico, pois seriam o fundamento da construção de todo o sistema de Direito Administrativo.

Explica-se o destaque da doutrina administrativista a esses princípios, pelo fato da Administração Pública sempre buscar satisfazer o bem coletivo, entendido como a prática de condutas por parte do administrador para conseguir aquilo que mais proveito traga à comunidade, além de ter o dever de zelar e bem gerir o patrimônio público, já que pertencente a toda sociedade. Aliás, o próprio termo "administrar" pressupõe alguém incumbido de bem e fielmente conduzir as "coisas" ou os negócios de terceiros, no caso a sociedade.

1.2.2 A proeminência da Constituição Federal

É sabido que a Constituição Federal é a norma suprema e incontestável num Estado Democrático de Direito, tal qual o nosso. Sua supremacia e sua rigidez são pressupostos da legitimidade estatal e que possibilitam ao Poder Judiciário, na qualidade de instituição encarregada de preservar a ordem jurídica, exercer o controle dos atos administrativos, legislativos e jurisdicionais praticados no exercício da atividade pública.

Considerando esses aspectos da Constituição, a Administração Pública, uma vez submetida ao princípio da legalidade, deve, sem dúvida, observar o mandamento legal das normas infraconstitucionais, mas deve, também, e, principalmente, fazê-lo com relação à CF, dada sua superioridade hierárquica e sua rigidez normativa.

Isso posto, o jurista Paulo Bonavides tece os seguintes comentários (2000, p. 267):

O sistema das Constituições rígidas assenta numa distinção primacial entre poder constituinte e poderes constituídos. Disso resulta a superioridade da lei constitucional, obra do poder constituinte, sobre a lei ordinária, simples ato do poder constituído, um poder inferior, de competência limitada pela Constituição mesma. As constituições rígidas, sendo constituições em sentido formal, demandam um processo especial de revisão. Esse processo lhes confere estabilidade ou rigidez bem superior àquela que as leis ordinárias desfrutam. Daqui procede pois a supremacia incontrastável da lei constitucional sobre as demais regras de direito vigente num determinado ordenamento. Compõe-se assim uma hierarquia jurídica, que se estende da norma constitucional às normas inferiores (leis, decretos-leis, regulamentos etc.), e a que corresponde por igual uma hierarquia de órgãos.A conseqüência dessa hierarquia é o reconhecimento da superlegalidade constitucional, que faz da Constituição a lei das leis, a lex legum, ou seja, a mais alta expressão jurídica da soberania.

Tais considerações demonstram que a Administração Pública não poderá desvencilhar-se de cumprir, quer os postulados legais, quer as normas traçadas constitucionalmente, sobretudo aqueles que se lhe aplicam de forma imediata, e que constam nos arts. 37 e seguintes da Carta Magna, pois, conforme afirma a já citada administrativista Maria Sylvia Zanella di Pietro (2001, p. 62), se é sabido que o direito administrativo é essencialmente legislado, é assente também que grande parte de seus institutos encontram embasamento na CF, arrematando a autora nos seguintes termos:

[...] É o que ocorre com a matéria de princípios, de intervenção na propriedade, de licitação e contratos, concessão e permissão de serviços públicos, de empresas estatais, de servidor público, de serviço público, de controle. Poucas são as matérias do direito administrativo que não encontram seu fundamento e seus limites na própria Constituição. (grifo nosso)

Essas considerações nos levam a concluir que a observância da CF e de seus princípios, além das regras legais positivadas, deve ser feita de forma inquestionável por parte da Administração Pública, pois se é possível suscitar eventual alegação de inconstitucionalidade da lei, o mesmo não será possível em face das normas constitucionais. Caso contrário, poderá o Poder Judiciário ser chamado à tona para dirimir a controvérsia instalada, restaurando a ordem jurídica violada pela atividade ilegítima do Estado.

Nesse contexto, apresentam peculiar importância os dispositivos da CF que se referem diretamente à atividade administrativa do Estado, que se encontram arranjados no Título III, Capítulo VII da Carta Magna. Contudo, como o tema aqui em estudo restringiu-se a analisar o controle jurisdicional da atividade administrativa do Estado na aplicação de sanções aos servidores públicos federais e aos parlamentares do Congresso nacional, é razoável a menção, entre aqueles comandos, somente aos que mais intimamente lhes dizem respeito, considerando o trinômio Estado Administração - Servidor Público - Parlamentar, já que os demais, além de aplicáveis só reflexamente, são elucidáveis e compreensíveis a partir de uma singela leitura.

Feita essa premissa, destacam-se as disposições do art. 37 da CF, com a redação dada pela Emenda Constitucional (EC) nº 19/98, os arts. 39 a 41, que se referem aos servidores públicos, bem como os arts. 53 a 56, onde se encontra o "estatuto dos congressistas". No âmbito infraconstitucional, destaca-se a lei nº 8.112/90, que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União.

1.2.3 Dos atos administrativos

O Poder Legislativo, ao exercer sua função típica, emite atos legiferantes; o Poder Judiciário, por sua vez, faz uso dos atos jurisdicionais, tais como despachos, sentenças, acórdãos, etc.; o Poder Executivo, que exerce a atividade administrativa por excelência, por fim, lança atos administrativos para cumprir seu desiderato. Esses últimos se caracterizam por serem emanações concretas do Poder Público que, agindo nessa qualidade, produz efeitos imediatos, estando sujeito ao regime jurídico de direito público e ao posterior controle jurisdicional.

Os atos administrativos, conforme o clássico ensinamento de M. Seabra Fagundes (1979, p. 26), ainda são "aqueles através dos quais o Estado determina situações jurídicas individuais ou concorre para a sua formação". Para que a sua constituição se dê de forma válida, esses atos devem ostentar determinados requisitos, sem os quais estarão fadados à ilegalidade. São eles: I – a competência, que é a parcela de poder outorgada por lei ao agente da administração para que pratique e exerça regularmente suas funções; II – a finalidade, ou seja, o alvo do ato deve ser a satisfação do interesse público, que, na maioria dos casos, já vem indicado pela norma; III – a forma, que consiste no revestimento externo do próprio ato, no modo como ele se manifestará; IV – o motivo, isto é, a causa, a razão, o intuito, as circunstâncias fáticas ou jurídicas que levaram a autoridade a praticar o ato; e, por fim, V – o objeto, pois como os atos administrativos visam adquirir, resguardar, transferir ou modificar direitos para satisfazer o interesse público, seu objeto ou conteúdo é, segundo ensina Maria Sylvia Zanella di Pietro (2006, p. 216), "o efeito jurídico imediato que o ato produz".

Caso o ato administrativo preencha esses requisitos, gozará das prerrogativas que o fazem peculiar e os distinguem dos demais atos jurídicos em geral. Tais predicados são os atributos do ato administrativo, e são de três ordens: a) presunção de legitimidade e veracidade; b) imperatividade (ou coercibilidade); e c) auto-executoriedade. O primeiro se refere aos fatos alegados pela administração que servirão de fundamento para a prática dos atos administrativos, é a "fé pública". Uma das suas principais conseqüências é transferir o ônus da prova de ilegalidade do ato administrativo para quem o alega. O segundo confere obrigatoriedade a certos atos emanados da Administração Pública, independentemente de declaração de validade ou legitimidade ulterior. O terceiro atributo consiste na faculdade que a Administração tem de proceder à imediata e à direta execução de alguns atos, independentemente de ordem judicial.

É interessante fazermos aqui uma rápida alusão à classificação doutrinária dos atos administrativos para destacarmos, contudo, somente dois dos critérios utilizados, que nos interessarão mais adiante nesse estudo, quando abordarmos o controle jurisdicional dos atos administrativos. São eles os que consideram a formação do ato e o que atenta para a liberdade de ação do administrador. Aquele subdivide os atos administrativos em simples, complexos e compostos, conforme num ou noutro caso haja se manifestado um ou vários órgãos estatais.

Aqui invocamos mais uma vez a lição de M. Seabra Fagundes (1979, p. 38-40):

Ainda os atos administrativos podem ser simples, complexos ou contratuais, se vistos sob o aspecto da formação da vontade neles expressa. No ato simples, há uma vontade única. O ato somente dela depende. No ato complexo, várias vontades individuais se somam e se manifestam numa declaração única. Num, a vontade é individual. Noutro, várias vontades se conjugam para integrar o ato, que, à falta duma delas, ou por vício de qualquer uma, poderá, em certos casos, ser anulável ou nulo. Mas são sempre atos unilaterais, no perfeito sentido da palavra, porque decorrem de manifestação unilateral da vontade, obrigando a uma parte que neles não aquiesceu nem colaborou. Ainda quando haja multiplicidade de vontades (ato complexo), elas se somam no sentido de produzir determinados efeitos sobre terceiro alheio à sua manifestação. (grifo nosso)

Hely Lopes Meirelles (2003, p. 167-168) também aborda o tema de forma bastante didática, senão vejamos:

Ato simples

é o que resulta da manifestação de vontade de um único órgão, unipessoal ou colegiado. Não importa o número de pessoas que participam da formação do ato; o que importa é a vontade unitária que expressam para dar origem, a final, ao ato colimado pela Administração. [...] Ato complexo é o que se forma conjugação de vontades de mais de um órgão administrativo. O essencial, nesta categoria de atos, é o concurso de vontades de órgãos diferentes para a formação de um único ato. [...] Ato composto é o que resulta da vontade única de um órgão, mas depende da verificação por parte de outro, para se tornar exeqüível. [...] O ato composto distingue-se do ato complexo porque este só se forma com a conjugação de vontades de órgãos diversos, ao passo que aquele é formado pela vontade única de um órgão, sendo apenas ratificado por outra autoridade. Essa distinção é essencial para se fixar o momento da formação do ato e saber-se quando se torna operante e impugnável. (grifo original)

O segundo critério de classificação, que considera a liberdade de ação do administrador, divide os atos administrativos em vinculados e discricionários, conforme a lei lhe tenha deixado ou não certa margem de atuação. Quanto a esse critério é pertinente trazermos à baila os ensinamentos de José dos Santos Carvalho Filho (2006, p. 114):

Atos vinculados

, como o próprio adjetivo demonstra, são aqueles que o agente pratica reproduzindo os elementos que a lei previamente estabelece. Ao agente, nesses casos, não é dada liberdade de apreciação da conduta, porque se limita, na verdade, a repassar para o ato o comando estatuído na lei. Isso indica que nesse tipo de atos (sic) não há qualquer subjetivismo ou valoração, mas apenas a averiguação de conformidade entre o ato e a lei. [...] Diversamente sucede nos atos discricionários. Nestes é própria a lei (sic) que autoriza o agente a proceder a uma avaliação de conduta, obviamente tomando em consideração a inafastável finalidade do ato. A valoração incidirá sobre o motivo e o objeto do ato, de modo que este, na atividade discricionária, resulta essencialmente da liberdade de escolha entre alternativas igualmente justas, traduzindo, portanto, um certo grau de subjetivismo. (grifo original)

Expostas as colocações sobre os atos administrativos que mais nos interessam, analisaremos agora os aspectos do seu controle perante o Poder Judiciário.

1.3 O controle jurisdicional dos atos administrativos

A submissão dos atos da Administração Pública à análise do Poder Judiciário é pressuposto lógico de nossa constituição sob a forma de Estado de Direito, como fora exposto no início desse capítulo. Nesse tópico destacaremos brevemente as principais hipóteses que autorizam o exercício do controle jurisdicional sobre os atos administrativos, bem como a questão da possibilidade de revisão judicial dos atos administrativos discricionários.

1.3.1 Hipóteses

O exercício do controle jurisdicional dos atos administrativos será possível, quando ocorrerem irregularidades na sua formação, nos seus efeitos, na sua motivação, em síntese, quando houver afronta ao regime jurídico administrativo, ao qual se encontre submetida a Administração Pública. Nesses casos, poderá ser pleiteada a anulação do ato por vício de legalidade, independentemente do exercício da autotutela administrativa, conforme preconiza a súmula nº 473 [01] do Supremo Tribunal Federal (STF).

Assim, os atos administrativos podem ser anulados, quando exista alguma irregularidade, ou quando não esteja presente algum de seus requisitos (competência, finalidade, forma, motivo e objeto). Sem esses componentes, ou tendo-os viciado, o ato não se aperfeiçoará, não terá aptidão para gerar efeitos válidos perante o Direito.

Também será revisto judicialmente o ato que não se compactue com as regras normativas positivadas e com os princípios constitucionais e administrativos, explícitos e implícitos, que informam a atividade estatal. Essas regras, de natureza principiológica, são de fundamental observância por parte da Administração, são a "infra-estrutura" normativa e sobre elas repousa todo o direito positivo.

A Constituição Federal, em seu art. 37, caput, impõe à atividade administrativa o respeito a esses princípios. Reza o dispositivo:

Art. 37.

A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: [...] (grifo nosso)

Sem prejuízo dos princípios expressos, mencionados pela CF, existem ainda os princípios reconhecidos ou implícitos, que também vinculam a atividade administrativa e são aceitos pela doutrina e pela jurisprudência como parâmetros para o exercício do controle jurisdicional. São eles: a supremacia do interesse público, a autotutela, a indisponibilidade dos bens públicos, a continuidade dos serviços públicos, a segurança jurídica, a razoabilidade e a proporcionalidade.

1.3.2 Os atos administrativos discricionários

Não obstante a Administração Pública esteja submetida ao império da legalidade, só podendo agir de acordo com o que a lei, previamente, vier a estabelecer, a verdade é que, nem sempre, o legislador consegue antever tudo aquilo que ocorrerá no seio social. Ele, no exercício da função legiferante, emite normas necessariamente gerais, impessoais, dirigidas a todas as pessoas ou entidades, sem particularidades ou discriminações, isto é, sem levar em conta os casos específicos que surgem e que requerem, por conseqüência, uma normatização peculiar, considerando o princípio da isonomia.

Como conseqüência desponta a discricionariedade administrativa, entendida como a margem de liberdade atribuída à Administração pela lei para que esta analise os casos concretos e escolha, dentre as alternativas legais possíveis, aquela mais adequada, a que mais lhe convenha, a mais oportuna para satisfazer o interesse público. Hely Lopes Meirelles (2003, p. 164) define o ato discricionário como o que "a Administração pode praticar com liberdade de escolha de seu conteúdo, de seu destinatário, de sua conveniência, de sua oportunidade e do modo de sua realização".

Essa margem de liberdade de que dispõe o administrador para atuar, contudo, não é ilimitada. A ele foi apenas delegado, em face das circunstâncias – pois ninguém melhor que a própria Administração conhece as situações concretas enfrentadas rotineiramente – a oportunidade e a conveniência de escolher a melhor solução para o caso, a mais justa, segundo sua valoração. Nisso consiste o mérito do ato administrativo, quando praticado no exercício do poder discricionário.

M. Seabra Fagundes (1979, p. 74-76), ao comparar os atos administrativos vinculados aos atos discricionários afirma o seguinte:

Para a prática de alguns atos, a competência da Administração é estritamente determinada na lei, quanto aos motivos e modo de agir. A lei lhe determina que, existentes determinadas circunstâncias, proceda dentro de certo prazo e certo modo. A competência diz-se então vinculada. A Administração Pública não é livre em resolver sobre a conveniência do ato, nem sobre o seu conteúdo. Só lhe cabe constatar a ocorrência dos motivos, e, com base neles, praticar o ato. Escusando-se a praticá-lo, no tempo e com o objetivo determinado, viola a lei. Noutros casos, a lei deixa a autoridade administrativa livre na apreciação do motivo ou do objeto do ato, ou de ambos ao mesmo tempo. No que respeita ao motivo, essa discrição se refere à ocasião de praticá-lo (oportunidade) e à sua utilidade (conveniência). No que respeita ao conteúdo, a discrição está em poder praticar o ato com objetivo variável, ao seu entender. Nestes casos, a competência é livre ou discricionária. A propósito de tais atos, não é possível cogitar de nulidade relacionada com o motivo, com o objeto, ou com ambos, conforme a respeito de qualquer um desses requisitos, ou dos dois, possa deliberar livremente a Administração. No mais, entretanto, ou seja, quanto à manifestação da vontade (falta de competência para agir e defeito pessoal na vontade do agente), finalidade e forma, o ato discricionário incide nos mesmos casos de invalidez dos atos vinculados. (grifo nosso)

Desse seu ensinamento, extrai-se que o mérito do ato administrativo discricionário, ou seja, a oportunidade e a conveniência acerca da sua prática, seria intangível jurisdicionalmente, subsistindo sobredito controle somente em relação aos elementos vinculados do ato (competência, finalidade, forma, etc.).

Contudo, sem embargo do acerto dessa lição do notável mestre, a doutrina e a jurisprudência, até então uníssonas em compartilhar semelhante pensamento, começam a se inclinar para o sentido de, considerando a nova feição do princípio da legalidade, que atualmente não mais se restringe a perquirir da compatibilidade mecânica entre o ato discricionário e a lei positivada, admitirem o controle jurisdicional também do mérito dos atos discricionários, desde que tomado por parâmetro o dever da Administração de fundamentar seu comportamento, indicando o porquê de portar-se de determinada forma, bem como os motivos pelo qual o faz, sem olvidar igualmente os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.

Acerca do princípio da proporcionalidade, Pierre Müller (1978, p.218) apud Paulo Bonavides (2006, p.393) tece as seguintes considerações:

[...] há violação do princípio da proporcionalidade, com ocorrência de arbítrio, toda vez que os meios destinados a realizar um fim não são por si mesmos apropriados ou quando a desproporção entre meios e fim é particularmente evidente, ou seja, manifesta. (grifo nosso)

Os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade vêm gradativamente ganhando importância no cenário jurídico, de modo que hoje já não é mais possível à Administração renegá-los, quando da execução dos seus deveres. Nota-se que houve um aumento da esfera de atuação do Poder Judiciário, já não se admitindo a restrita atuação de perquirir da compatibilidade do ato concretamente praticado com a norma positivada, o que era feito desprovido de qualquer ponderação de conteúdo axiológico.

Nesse sentido convém registramos a preciosa lição de Germana de Oliveira Moraes (2004, p.111-112), que assim se manifesta:

A compreensão do controle jurisdicional da discricionariedade e da valoração administrativa dos conceitos indeterminados, como controle de juridicidade, e não apenas de legalidade, revela a superação do positivismo legalista, que pretendia reduzir o Direito à exegese apenas das leis escritas. Atualmente, conforme já se afirmou anteriormente, ultrapassada a dicotomia entre princípios e normas, não se questiona a idéia de que as normas jurídicas compreendem tanto as regras, normas em sentido estrito, quanto os princípios.

Os princípios, cuja superioridade e hegemonia na pirâmide normativa se reconhece a partir de sua positivação nos textos constitucionais, rotulados de "normas-chaves de todo o ordenamento jurídico" e considerados "o oxigênio das Constituições na época do pós-positivismo", são, na expressão de Paulo Bonavides, "compreendidos, equiparados e até mesmo confundidos com os valores" e "enquanto valores fundamentais, governam a Constituição, o regímen, a ordem jurídica. Não são apenas a lei, mas a sua extensão, substancialidade, plenitude e abrangência." De acordo com essa perspectiva doutrinária, ocorreu, no Brasil, a partir da Carta Política de 1988, a constitucionalização dos princípios da Administração Pública. [...] A constitucionalização desses princípios da Administração Pública e dos princípios gerais do Direito gerou para o Poder Judiciário a possibilidade de verificar além da conformidade dos atos administrativos com a lei, ao exercer o controle de seus aspectos vinculados, à luz do princípio da legalidade, também aspectos não vinculados desses atos, em decorrência dos demais princípios constitucionais da Administração Pública, da publicidade, da impessoalidade e da moralidade, do princípio constitucional da igualdade e dos princípios gerais da razoabilidade e da proporcionalidade. (grifo nosso)

Como se vê, o controle judicial dos atos administrativos, sobretudo dos atos discricionários, teve seu âmbito dilatado, e isso graças ao acolhimento constitucional dos princípios gerais e específicos que regem a atividade administrativa do Estado.

Porém, tal não significa tolher da Administração o exercício de sua competência discricionária, uma vez que esta, assim como a atividade vinculada, é de fundamental importância para o seu êxito e a sua eficiência.

O que se busca é a possibilidade de apreciação jurisdicional dos atos discricionários para que, a partir da análise de seus requisitos e elementos, em cotejo com os princípios jurídicos acima mencionados, possa se anular aqueles que, a despeito de serem discricionários, findarem por pender para a arbitrariedade.

Assinaladas as principais características da Administração Pública e do controle jurisdicional, especialmente, o aplicável aos atos administrativos, cumpre-nos a seguir apresentar alguns aspectos referentes ao processo administrativo disciplinar, para que, fixadas tais premissas, seja-nos possível apreciar, ao final, o cabimento do seu controle jurisdicional.

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Sobre o autor
Paulo César Morais Pinheiro

Procurador do Estado do Piauí e Advogado. Ex-Analista Processual do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. Pós-graduando em Direito Constitucional (Universidade Estácio de Sá) e em Direito Processual Civil (Universidade Anhanguera Uniderp/LFG)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PINHEIRO, Paulo César Morais. Controle jurisdicional do processo disciplinar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1878, 22 ago. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11622. Acesso em: 19 abr. 2024.

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