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Controle jurisdicional do processo disciplinar

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22/08/2008 às 00:00
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2 O PROCESSO DISCIPLINAR

É sabido que o processo é o principal e um dos mais legítimos instrumentos dentre aqueles que o Estado se vale para resolver os conflitos intersubjetivos que afloram na sociedade, constituindo-se, assim, num dos meios de pacificação e controle social existentes. Contudo, nem sempre foi o que ocorreu.

Em épocas remotas, quando o Estado ainda se encontrava em estágio embrionário, os litigantes faziam uso da autotutela para resolverem suas questões. Nesses casos, sempre prevalecia à justiça o poder e a imposição da vontade do sujeito mais forte sobre o mais fraco. Somente num momento posterior, quando o Estado ganhou força e legitimidade suficiente, pôde suplantar esse estágio e monopolizar a atividade jurisdicional, decidindo os casos concretos de acordo com as leis.

A partir desse período, os conflitos não eram mais resolvidos pelos próprios cidadãos, mas por funcionários do Estado, terceiros imparciais que, aplicando o direito ao caso debatido, proferiam decisões obrigatórias e de regra definitivas. Eram os pretores, que atualmente corresponde aos nossos juízes e tribunais que integram o Poder Judiciário. Assim, quando hoje surge um conflito, este é resolvido através do processo e da jurisdição estatal, entendendo-se como tal a aplicação prática do direito objetivo ao caso a ser solucionado.

Ocorre que não obstante tenha sido atribuído precipuamente ao Poder Judiciário o encargo jurisdicional, essa função também é exercida legitimamente, embora de forma atípica, pelos Poderes Executivo e Legislativo, considerando a atividade jurisdicional como a prerrogativa de aplicar o direito na solução das situações que surgem, o que é feito através do processo. A diferença reside no seguinte ponto: as decisões proferidas pelo Poder Judiciário são, em regra, definitivas, em face do dogma da coisa julgada, enquanto que as decisões exaradas nos processos administrativos podem ser revistas pelo Judiciário.

No que respeita às faltas funcionais praticadas pelos servidores públicos, a Administração se vale do processo disciplinar como meio legítimo de apuração dos desvios de conduta e de aplicação da sanção respectiva.

Já a prática de conduta pelos parlamentares que se afigure como procedimento que atente contra o decoro institucional será apurada no âmbito do Poder Legislativo, através de procedimento próprio, que pode redundar inclusive na perda do mandato político.

Assentadas essas ponderações, será feita, no presente capítulo, uma breve análise acerca do processo administrativo disciplinar em face dos servidores públicos, enfocando seu conceito, fundamentos, princípios, modalidades e principais etapas. Em seguida serão tecidas algumas colocações no que concerne às condutas praticadas pelos parlamentares que se afigurem como incompatíveis ao decoro parlamentar, em que se examinará também suas conseqüências e o respectivo processo de apuração, que possui inquestionavelmente natureza disciplinar.

2.1 O processo disciplinar por falta funcional

Preliminarmente, devemos atentar para corrente distinção que é feita entre processo e procedimento, pois enquanto o primeiro corresponde àquele conjunto de atos e providências praticadas com o intuito de obter-se determinada solução sobre uma controvérsia qualquer, seja no âmbito judicial ou administrativo, o segundo caracteriza-se pelo modo de exteriorização do processo, pelas fases de seu andamento, ou seja, pelo seu rito.

2.1.1 Conceito

O processo administrativo disciplinar para apurar as faltas funcionais pode ser conceituado, segundo as lições de Hely Lopes Meirelles (2003), como o meio de que se vale a Administração Pública para apurar e punir os desvios de conduta praticados por seus servidores e pelas demais pessoas sujeitas ao regime jurídico administrativo. Ensina ainda o mestre que essa espécie de processo se baseia na supremacia especial que o Estado exerce sobre todos aqueles que se vinculam aos seus serviços ou às suas atividades, quer de forma definitiva ou transitória, razão pela qual se submetem à sua disciplina.

José dos Santos Carvalho Filho (2006, p. 812) define o processo administrativo disciplinar como sendo "o instrumento formal através do qual a Administração apura a existência de infrações praticadas por seus servidores e, se for o caso, aplica as sanções adequadas". Vemos então que o processo disciplinar é espécie do gênero processo administrativo e busca apurar, particularmente, os desvios funcionais que venham a ser praticados pelos agentes públicos ou pelos particulares que estejam submetidos ao regime jurídico administrativo.

Contudo, devemos ressaltar que a garantia do processo disciplinar foi conferida aos servidores públicos efetivos, e não aos empregados públicos, que são aqueles contratados pelo Estado, selecionados através de concurso público, cuja relação de trabalho é regida pela legislação celetista. Estes, segundo o entendimento do Supremo Tribunal Federal (AI-AgR nº 323346/CE), podem ser sancionados sem as formalidades de prévio processo disciplinar, porém desde que haja motivo e que seja comprovada e justificada pela autoridade a falta funcional.

2.1.2 Fundamentos

A Administração Pública, ao tomar conhecimento da prática de desvios funcionais por parte de seus agentes, deve necessariamente apurar a falta cometida para aplicar a sanção mais adequada e consentânea ao caso. Para isso é que dispõe do poder disciplinar, de natureza administrativa, que é o fundamento e o sustentáculo da sua atividade disciplinadora.

Esse poder, assim como os demais, é de caráter instrumental, pois serve para que bem desenvolva a atividade administrativa. De acordo com Hely Lopes Meirelles (2003, p. 120) ele pode ser definido da seguinte forma:

Poder disciplinar é a faculdade de punir internamente as infrações funcionais dos servidores e demais pessoas sujeitas à disciplina dos órgãos e serviços da Administração. É uma supremacia especial que o Estado exerce sobre todos aqueles que se vinculam à Administração por relações de qualquer natureza, subordinando-se às normas de funcionamento do serviço ou do estabelecimento que passam a integrar definitiva ou transitoriamente.

Esse poder, no entanto, não se confunde com o poder punitivo do Estado, uma vez que ele se baseia e analisa as condutas incompatíveis com o estatuto funcional, e não com o ordenamento penal, embora, em alguns casos, a mesma conduta possa dar ensejo à aplicação de ambas as penas, a disciplinar e a criminal.

Destacamos ainda que a aplicação da sanção disciplinar, nos casos em que realmente exista a prática de falta funcional por parte do servidor, é de caráter obrigatório, sob pena de o superior hierárquico incorrer no crime de condescendência criminosa, previsto no art. 320 do Código Penal.

2.1.3 Princípios e modalidades

Regem o processo administrativo disciplinar, assim como o processo civil ou penal, algumas normas de caráter principiológico que lhe dão fundamento e o norteiam, indicando qual o melhor caminho a ser seguido, quando da apuração do desvio funcional. Grande parte desses princípios do processo administrativo é comum, também, ao processo civil e ao processo penal, mas podemos apontar alguns que são peculiares àqueles processos conduzidos no âmbito interno da Administração.

Dentre os princípios comuns, que integram a teoria geral do processo, podemos destacar os seguintes: I – princípio da legalidade; II – princípio da publicidade; III – princípio da oficialidade; IV – princípio do contraditório e da ampla defesa; V – princípio da economia processual. Esses princípios, embora sejam comuns aos vários ramos processuais, aplicam-se ao processo administrativo com certa dose de intensidade ou mitigação, conforme num ou noutro caso o interesse público seja mais eficazmente tutelado.

Segundo Maria Sylvia Zanella di Pietro (2006, p. 604), o princípio da publicidade, por exemplo, no processo administrativo, é de aplicabilidade mais ampla que ao processo judicial. Eis suas palavras:

Esse direito de acesso ao processo administrativo é mais amplo do que o de acesso ao processo judicial; neste, em regra, apenas as partes e seus defensores podem exercer o direito; naquele, qualquer pessoa é titular desse direito, desde que tenha algum interesse atingido por ato constante do processo ou que atue na defesa do interesse coletivo ou geral, no exercício do direito à informação assegurado pelo art. 5º, inciso XXXIII, da Constituição.

Também o princípio da oficialidade, no processo administrativo, é mais abrangente que no tradicional processo judicial, pois enquanto neste ele só se aperfeiçoa após instaurada a relação processual, naquele existe a possibilidade da própria Administração dar início ao processo sem necessidade de provocação de qualquer pessoa. É o que se depreende ainda da lição de Maria Sylvia Zanella di Pietro (2006, p. 605), que averba o seguinte:

No âmbito administrativo, esse princípio assegura a possibilidade de instauração do processo por iniciativa da Administração, independentemente de provocação do Administrado e ainda a possibilidade de impulsionar o processo, adotando todas as medidas necessárias a sua adequada instrução. Essa executoriedade, sendo inerente à atuação administrativa, existe mesmo que não haja previsão legal; como a Administração Pública está obrigada a satisfazer ao interesse público, cumprindo a vontade da lei, ela não pode ficar dependente da iniciativa particular para atingir os seus fins

. (grifo nosso)

Além desses princípios, comuns aos processos administrativos e judiciais, existem outros, que se aplicam mais peculiarmente aos primeiros. Esses princípios estão descritos no art. 2º da lei nº 9.784/99, diploma que trata do processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal. O dispositivo preceitua o dever de obediência da Administração aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.

Feitas essas ponderações, atentemos agora para as principais modalidades de apuração disciplinar que a Administração Pública lança para averiguar os desvios funcionais praticados.

De acordo com o art. 143 da lei nº 8.112/90, norma que trata do regime jurídico dos servidores públicos civis da União, de suas autarquias e fundações públicas federais, existem duas espécies de procedimentos: a sindicância e o processo administrativo disciplinar.

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Na sindicância, que consiste em meio sumário de investigação funcional, a Administração Pública realiza levantamentos preliminares para, posteriormente, instaurar processo administrativo disciplinar, caso existam indícios suficientes da prática da falta; do contrário arquiva a investigação. Trata-se de procedimento similar ao inquérito policial, que poderá resultar ou não no início da ação penal, caso haja indícios da autoria e materialidade delituosa.

Ainda segundo o art. 145, inc. II da referida lei, da sindicância não poderá resultar punição ao investigado, salvo a aplicação da pena de advertência ou de suspensão por até 30 dias, desde que assegurada oportunidade de defesa.

A segunda espécie, e a principal delas, é o processo administrativo disciplinar propriamente, que também é chamado erroneamente de "inquérito administrativo". Segundo Hely Lopes Meirelles (2003, p. 666), "é o meio de apuração e punição de faltas graves dos servidores públicos e demais pessoas sujeitas ao regime funcional de determinados estabelecimentos da Administração".

É o meio de que se vale a Administração para aplicar as penas de maior gravidade ao servidor faltoso, e que, por isso, demandam a necessidade de assegurar-lhe ampla possibilidade de defesa. De acordo com a definição do art. 148 da lei nº 8.112/90, o processo disciplinar é o instrumento destinado a apurar responsabilidade de servidor por infração praticada no exercício de suas atribuições, ou que tenha relação com as atribuições do cargo no qual se encontre investido.

Existe ainda "verdade sabida", que é o meio sumário de averiguação e punição da conduta irregular mediante a iniciativa da própria autoridade incumbida de aplicar a sanção. A respeito nos ensina ainda o notável Hely Lopes Meirelles o seguinte (2003, p. 669):

[...] verdade sabida é o conhecimento pessoal da infração pela própria autoridade competente para punir o infrator. [...] Em tais casos, a autoridade competente, que presenciou a infração, aplica a pena pela verdade sabida, consignando no ato punitivo as circunstâncias em que foi cometida e presenciada a falta. Esse meio sumário só é admissível para as penalidades cuja imposição não exija processo administrativo disciplinar. Tem-se considerado, também, como verdade sabida a infração pública e notória, estampada na imprensa ou divulgada por outros meios de comunicação de massa. O essencial para se enquadrar a falta na verdade sabida é seu conhecimento direto pela autoridade competente para puni-la, ou sua notoriedade irretorquível. Não obstante, embora sem rigor formal, deve-se assegurar a possibilidade de defesa.

Feitas essas colocações, passaremos agora a analisar as principais etapas do processo administrativo disciplinar instaurado contra os servidores públicos. Após, discorreremos sobre o procedimento para cassação de mandato dos congressistas acusados de praticarem conduta incompatível com o decoro parlamentar.

2.1.4 Etapas

As etapas do processo administrativo disciplinar instaurado contra os servidores públicos civis federais encontram-se dispostas nos artigos 148 a 182 da lei nº 8.112/90. A primeira fase do processo administrativo disciplinar é a instauração e se dá mediante ato da autoridade legalmente competente, que expede uma portaria descrevendo o que deve ser apurado e indicando a infração na qual o investigado possivelmente incorreu. Nesse momento é designada também uma comissão processante, que será incumbida de realizar toda a instrução processual.

Essa comissão deverá ser composta necessariamente por três servidores estáveis, cujo presidente será indicado pela autoridade e deverá ter cargo ou nível de escolaridade igual ou superior ao do funcionário processado. Ato contínuo, o presidente escolhe então um dos servidores para exercer as funções de secretário da comissão [02].

Em seguida, inicia-se a fase de instrução. Nela, a comissão processante goza de plena liberdade no que tange à colheita das provas produzidas pelas partes – Administração e servidor processado, podendo se valer de assessores técnicos, peritos, documentos, provas testemunhais, vistorias, etc. Nessa etapa deve ser assegurado efetivamente ao demandado seu direito ao contraditório e à ampla defesa, como reza o art. 5º, inc. LV da CF e o art. 156 da lei nº 8.112/90.

Uma vez terminada a instrução, a comissão disciplinar irá relatar tudo o que ocorreu durante o processo. Em seu relatório, deverá dizer se houve infração funcional, e, nesse caso, qual ou quais os dispositivos infringidos, recomendar a instauração de outros processos ou a adoção de outras providências que entenda necessária e, ao final, manifestar-se a favor ou contra a aplicação da sanção, indicando-a [03].

Por fim, vem a fase de julgamento e decisão, em que a autoridade que determinou a apuração do desvio e deflagrou o processo disciplinar irá se manifestar sobre o relatório conclusivo. Ela poderá imputar ao sujeito demandado a pena sugerida pela comissão ou outra que entenda mais razoável para o caso, ou ainda nenhuma, concordando ou discordando da conclusão exarada no parecer.

Nesse sentido, assinala Maria Sylvia Zanella di Pietro (2006, p. 614-615): "O relatório é peça apenas opinativa, não obrigando a autoridade julgadora, que poderá, analisando os autos, apresentar conclusão diversa", porém, a autora aduz ainda que, quando da decisão da autoridade, e nos casos em que ela divirja da conclusão exarada no parecer da comissão processante, há necessidade de fundamentar e motivar a aplicação, ou não, da penalidade, indicando quais as causas que a levam decidir num ou noutro sentido. Eis sua lição (DI PIETRO, 2006, p. 615):

A fase final é a de decisão, em que a autoridade poderá acolher a sugestão da comissão, hipótese em que o relatório corresponderá à motivação; se não aceitar a sugestão, terá que motivar adequadamente a sua decisão, apontando os elementos do processo em que se baseia. (grifo nosso)

Destacadas as principais fases do processo disciplinar em face dos servidores públicos, analisaremos agora o procedimento, de natureza disciplinar, instalado em desfavor dos membros que integram o Poder Legislativo (deputados e senadores), manejável quando se portam em desacordo com o "decoro parlamentar", conforme reza a CF. Serão destacadas também as espécies de conduta incompatíveis com o decoro parlamentar, as etapas de apuração, além das conseqüências da sua prática.

2.2 O processo disciplinar por conduta ofensiva ao decoro parlamentar

Decoro significa decência, compostura, dignidade, pundonor. A preocupação com a ética na disputa política e no decorrer do exercício do mandato eletivo fez com que o constituinte originário estabelecesse limitações ao comportamento dos parlamentares, o que fora feito com o intuito de inibir que a prática de suas prerrogativas não transbordasse para o abuso de direito.

Aos congressistas, como aos demais agentes do poder público, é vedado se valerem da legislatura para pleitearem vantagens pessoais. No sistema da democracia representativa, tal qual o nosso, eles recebem do povo delegação para agirem em seu nome, são mandatários, devem aprovar as leis que interessem à sociedade, fiscalizar o Poder Executivo, exercer o controle orçamentário e financeiro dos gastos públicos, além de outras atribuições institucionais.

Ocorre que nem sempre os parlamentares se portam como deveriam. Às vezes se desviam de sua missão constitucional e agem de forma ilegítima, e quando isso ocorre aflora a prática de condutas incompatíveis com o decoro parlamentar. Quando praticam desvios no exercício do mandato que configurem, em tese, conduta indecorosa, será aberto procedimento investigatório para, ao final, decidir-se por sua absolvição ou condenação, e à conseqüente perda ou não do mandato (cassação). Esse procedimento e seu respectivo julgamento são feitos por seus pares, os demais deputados ou senadores, cuja decisão, prima facie, é de natureza política. Nesse rumo, cabe-nos agora defini-lo.

2.2.1 Conceito

O procedimento disciplinar instaurado em face dos congressistas, o qual apurará a prática de conduta incompatível com o decoro parlamentar, pode ser conceituado como o meio de que se vale o próprio Poder Legislativo para investigar e descobrir as eventuais faltas cometidas pelos seus membros, aplicando, através de procedimento formal próprio, e desde que assegurada ampla defesa, decisão pela cassação ou manutenção do mandato, conforme votação da maioria de seus componentes.

A Constituição Federal4 diz que a perda do mandato político, nos casos de conduta incompatível com o decoro parlamentar, será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, através do voto secreto da maioria de seus membros, mediante provocação da Mesa respectiva ou de agremiação política com representação no Congresso Nacional, assegurando-se ao processado a ampla defesa.

Segundo Alexandre de Moraes (2002, p. 416), a expressão decoro parlamentar pode ser compreendida como "o conjunto de regras legais e morais que devem reger a conduta dos parlamentares, no sentido de dignificação da nobre atividade legislativa". Por conseguinte, o procedimento disciplinar que visa à sua apuração buscará averiguar da ocorrência ou não de ofensa a tais regras de conduta.

2.2.2 As modalidades de condutas ofensivas ao decoro parlamentar

A definição de decoro parlamentar está contida, tanto na Constituição Federal, quanto no regimento interno e nos códigos de ética das casas legislativas (Câmara dos Deputados e Senado Federal). A primeira cuida do tema em seu art. 55, § 1º e, nesse mesmo dispositivo, confere ao Congresso Nacional, sem prejuízo das definições que traz, a possibilidade dele dispor sobre outras condutas que se afigurem como incompatíveis ao decoro parlamentar.

A aludida norma constitucional fora vazada nos seguintes termos:

Art. 55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador:

I – [...]

II – cujo procedimento for declarado incompatível com o decoro parlamentar;

[...]

§ 1°. É incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas. (grifo nosso)

Depreende-se do dispositivo que a Carta Magna elegeu como conduta parlamentar indecorosa, passível de ensejar a cassação do mandato, "o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional" e a "percepção de vantagens indevidas". O referido abuso de prerrogativas consiste no comportamento arbitrário praticado no exercício do mandato, na atuação com abuso de autoridade, ou seja, quando o congressista se vale das suas inviolabilidades civis e penais5 para praticar atos incompatíveis com o decoro parlamentar. Já a percepção de vantagens indevidas diz respeito a todo tipo de benesse que os congressistas auferem ilegitimamente.

Além dessas, o constituinte deu margem a que o próprio Poder Legislativo, no exercício de seu múnus constitucional, estabelecesse outros atos que também seriam considerados incompatíveis com o dever de decoro, o que haveria de ser feito por intermédio do seu regimento interno. Como o Poder Legislativo brasileiro é bicameral, tanto a Câmara dos Deputados, quanto o Senado Federal possuem seus respectivos regimentos, e neles podem traçar quais as normas de conduta as quais seus membros devem observar, sob pena de quebra do decoro.

No âmbito da Câmara dos Deputados, seu regimento interno está consubstanciado na resolução nº 17/1989, que, em seus artigos 231 e 244, tratam do dever de observância dos deputados às normas constitucionais e regimentais de natureza ética, fixando o que se entende por decoro parlamentar. Tais preceitos têm a seguinte redação:

Art. 231. No exercício do mandato, o Deputado atenderá às prescrições constitucionais e regimentais e às contidas no Código de Ética e Decoro Parlamentar, sujeitando-se às medidas disciplinares nelas previstas.

[...]

Art. 244. O deputado que praticar ato contrário ao decoro parlamentar ou que afete a dignidade do mandato estará sujeito às penalidades e ao processo disciplinar previstos no Código de Ética e Decoro Parlamentar, que definirá também as condutas puníveis. (grifo nosso)

Conforme se infere desses preceitos, eles fazem alusão à resolução nº 25/2001, que trata do código de ética e decoro parlamentar da Câmara dos Deputados, norma que também traz conceitos e definições acerca do instituto em exame e integra, por conseguinte, nosso objeto de estudo.

O referido código de ética traz disposições complementares às contidas na CF e no regimento interno da Câmara, estabelecendo em seus artigos 4º e 5º, detalhadamente, (tipificando) quais as condutas consideradas incompatíveis com o decoro parlamentar. Ei-los:

Art. 4° Constituem procedimentos incompatíveis com o decoro parlamentar, puníveis com a perda do mandato:

I – abusar das prerrogativas constitucionais asseguradas aos membros do Congresso Nacional (Constituição Federal, art. 55, § 1°);

II – perceber, a qualquer título, em proveito próprio ou de outrem, no exercício da atividade parlamentar, vantagens indevidas (Constituição Federal, art. 55, §1°);

III – celebrar acordo que tenha por objeto a posse do suplente, condicionando-a a contraprestação financeira ou à prática de atos contrários aos deveres éticos ou regimentais dos Deputados;

IV – fraudar, por qualquer meio ou forma, o regular andamento dos trabalhos legislativos para alterar o resultado de deliberação;

V – omitir intencionalmente informação relevante, ou, nas mesmas condições, prestar informação falsa nas declarações de que trata o art. 18.

Art. 5º Atentam, ainda, contra o decoro parlamentar as seguintes condutas, puníveis na forma deste Código:

I – perturbar a ordem das sessões da Câmara ou das reuniões de comissão;

II – praticar atos que infrinjam as regras de boa conduta nas dependências da Casa;

III – praticar ofensas físicas ou morais nas dependências da Câmara ou desacatar, por atos ou palavras, outro parlamentar, a Mesa ou comissão, ou os respectivos Presidentes;

IV – usar os poderes e prerrogativas do cargo para constranger ou aliciar servidor, colega ou qualquer pessoa sobre a qual exerça ascendência hierárquica, com o fim de obter qualquer espécie de favorecimento;

V – revelar conteúdo de debates ou deliberações que a Câmara ou comissão hajam resolvido devam ficar secretos;

VI – revelar informações e documentos oficiais de caráter reservado, de que tenha tido conhecimento na forma regimental;

VII – usar verbas de gabinete em desacordo com os princípios fixados no caput do art. 37 da Constituição Federal;

VIII – relatar matéria submetida à apreciação da Câmara, de interesse específico de pessoa física ou jurídica que tenha contribuído para o financiamento de sua campanha eleitoral;

IX – fraudar, por qualquer meio ou forma, o registro de presença às sessões, ou às reuniões de comissão.

Parágrafo único. As condutas puníveis neste artigo só serão objeto de apreciação mediante provas. (grifo nosso)

O Senado Federal, por sua vez, trata das condutas incompatíveis com o decoro parlamentar no art. 32 da resolução nº 93/1970, que dispõe sobre o seu regimento interno. Essa norma tem basicamente a mesma redação do art. 55, § 1º da CF, não apresentando maiores dificuldades quanto ao seu entendimento, senão vejamos:

Art. 32.

Perde o mandato o Senador (Const., art. 55):

I – [...]

II – cujo procedimento for declara do incompatível com o decoro parlamentar;

[...]

§ 1º. É incompatível com o decoro parlamentar o abuso das prerrogativas asseguradas ao Senador e a percepção de vantagens indevidas (Const., art. 55, § 1º). (grifo nosso)

Percebe-se que o regimento interno do Senado não traz, de forma esmiuçada, as condutas que configurem ato atentatório ao decoro parlamentar, como o faz o regimento interno da Câmara dos Deputados, acima citado. Ao contrário, ele se restringe a praticamente repetir o que já prevê a CF, como dito.

Assim, e pelo exposto, vemos que, tanto normas de hierarquia e natureza constitucional, quanto normas inferiores, de natureza regimental, tratam do decoro parlamentar, aquelas definindo-o de forma simples, aparentemente genérica, mas por si suficiente, e algumas destas escalonando as condutas faltosas detalhadamente, pontuando os comportamentos imorais e anti-ético dos parlamentares, os quais ensejarão punição bastante severa: a cassação do respectivo mandato eletivo.

2.2.3 Das conseqüências da conduta indecorosa

O dever de integridade e honradez deve acompanhar o congressista durante toda a sua jornada, pois o comportamento que se mostre incompatível com dever de manter o decoro acarreta necessariamente, por mandamento constitucional, a perda do mandato eletivo do parlamentar, dada a gravidade da falta cometida.

Sob esse aspecto não há meio termo: ou se cassa o mandato do parlamentar, caso reste comprovado a prática de conduta indecorosa, ou parlamento o absolve, caso se apure sua inocorrência. Assim, vê-se que a única punição cominável pela CF (art. 55), nesse caso, é a cassação do mandato.

José Afonso da Silva (2006, p. 539), apoiado nas lições de Hely Lopes Meirelles, ensina que a cassação "é a decretação da perda do mandato, por ter o seu titular incorrido em falta funcional, definida em lei e punida com esta sanção".

Nessa passagem, podemos compreender que a expressão "definida em lei" alude às várias condutas descritas nos regimentos das casas legislativas e no código de ética da Câmara dos Deputados, como mencionamos no presente capítulo.

Em seguida, e caso que haja indícios suficientes e plausíveis da prática de conduta incompatível com o exercício do mandato, o procedimento de cassação poderá ser iniciado mediante provocação da Mesa respectiva ou de partido político com representação no Congresso Nacional, desde que assegurado no processo o direito a ampla defesa.

Ao final, a decisão será tomada por seus pares, pelo voto secreto da maioria absoluta dos membros da Casa respectiva, tudo nos termos do art. 55 da CF e das normais regimentais, que traçam o rito do procedimento.

Enfim, após essas considerações acerca do processo disciplinar em face dos servidores públicos, por falta funcional, e dos congressistas, por quebra do decoro parlamentar, somada aos comentários sobre o controle jurisdicional e a Administração Pública, feitos inicialmente, passamos então a verificar a possibilidade do exercício do controle jurisdicional sobre referido processo, analisando seu cabimento num e noutro caso, conforme será detalhado no capítulo seguinte.

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Sobre o autor
Paulo César Morais Pinheiro

Procurador do Estado do Piauí e Advogado. Ex-Analista Processual do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. Pós-graduando em Direito Constitucional (Universidade Estácio de Sá) e em Direito Processual Civil (Universidade Anhanguera Uniderp/LFG)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PINHEIRO, Paulo César Morais. Controle jurisdicional do processo disciplinar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1878, 22 ago. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11622. Acesso em: 29 mar. 2024.

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