1.INTRODUÇÃO
Desde a antiguidade, o homem sempre teve necessidade de deslocar-se bem como de deslocar suas coisas. A invenção da roda abriu novo horizonte para os transportes, antes feito apenas com força própria ou auxílio de animais. Os barcos a vela, os motores a vapor, a revolução industrial, as estradas, as aeronaves, tudo foi se juntando à perspectiva dos transportes e hoje as pessoas e as mercadorias deslocam-se complexamente pelo globo terrestre por terra, mar e ar.
O transporte apresenta muitos problemas, por depender de vários fatores para que seja concretizado: rodovias, ferrovias, navios, aeronaves, além de condições logísticas, climáticas, de segurança, entre outras. [01]
Ademais, o estudo da responsabilidade civil deveu o seu desenvolvimento, em grande parte, ao avanço tecnológico no transporte de coisas e pessoas. Sem desconhecer outros motivos realmente fortes, pode-se afirmar que a influência dos novos riscos criados pelo automóvel na responsabilidade civil foi profunda e decisiva.
Na medida em que a sociedade experimentou um assustador avanço científico, especialmente no período pós-guerra, um dos setores da atividade humana que mais se beneficiou com esse esforço bélico foi, sem dúvida, o de transportes. [02]
Como ressalta Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho:
Os transportes terrestres e o aeronáutico, sem nos esquecermos do marítimo, evoluíram, nos últimos cem anos, mais do que em todos os séculos precedentes, desde quando o homem, em magnífico insight, criou a roda.
O século XX, sob essa perspectiva, traduziu em seus cem anos o que não se conseguiu em mais de mil. [03]
Contudo, o ponto negativo desse avanço tecnológico, tão importante para o bem estar dos homens de hoje, foi o aumento do risco e, conseqüentemente, o agravamento das situações de dano, inseridas no campo da responsabilidade civil.
Assim, diversos diplomas legais vieram dispor sobre a responsabilidade civil do transportador, que nem sempre será contratual, pois deverá ser analisada em três aspectos: em relação aos empregados, terceiros e passageiros.
Objetiva-se com esse estudo especificamente a análise da responsabilidade civil do transportador em relação aos passageiros, especialmente quanto aos danos causados ao viajante em virtude de arremesso de objetos contra o veículo de transporte terrestre.
Realizar-se-á, todavia, uma breve análise a respeito do contrato de transportes, as obrigações das partes, excludentes da responsabilidade do transportador, as controvérsias jurisprudenciais acerca do tema e a natureza jurídica do transporte gratuito.
2.O CONTRATO DE TRANSPORTE
Transportar, do latim transportare, significa, no sentido vulgar da palavra,
conduzir ou levar de um lugar para outro. [04]
Trata-se de contrato no qual uma pessoa ou empresa se obriga, mediante retribuição, a transportar, de um local para outro, pessoas ou coisas animadas ou inanimadas. Pode, ainda, ser definido como o negócio jurídico bilateral, consensual, oneroso e comutativo, pelo qual uma das partes (transportador ou condutor) se obriga a, mediante remuneração, transportar pessoa ou coisa a um destino previamente convencionado. [05] A obrigação do usuário restringe-se ao pagamento do preço e obediência ao regulamento do transporte ou às normas do contrato. [06]
O preço pago ao transportador recebe a denominação de "frete ou porte" no transporte de coisas, e de "valor da passagem" no transporte de passageiros.
O Código Civil hodierno, ao contrário do Codex anterior que não tratou do assunto [07], disciplina o contrato de transporte em seus arts. 730 a 756, os quais abrangem o transporte de pessoas (arts. 734 a 742) e o de coisas (arts. 743 a 754).
Tratar-se-á aqui, somente do transporte de pessoas.
De antemão, necessário esclarecer que a responsabilidade do transportador nem sempre é contratual, razão pela qual deve ser analisada em relação a três aspectos: empregados, terceiros e passageiros.
Em relação aos empregados, a responsabilidade do transportador fundamenta-se no acidente do trabalho. Neste caso, sendo o pedido de auxílio previdenciário em decorrência do acidente, deverá o pleito ser encaminhado ao INSS. Somente em caso de dolo ou culpa do empregador poderá ser pleiteada a indenização prevista no direito comum (CRFB, art. 7º, XXVIII).
No que tange a terceiros, a responsabilidade é aquiliana ou extracontratual e objetiva, já que o art. 37, § 6º, da Lei Maior estendeu a responsabilidade estatal, fundada no risco administrativo às pessoas jurídicas de direito privado que prestem serviços públicos, como é o caso do transporte.
Quanto aos terceiros, ainda, é de se mencionar a aplicabilidade dos dispositivos do Código de Defesa do Consumidor, tendo em vista que este, em seu art. 17, equipara à condição de consumidoras todas as vítimas do evento danoso, muito embora não haja relação contratual de consumo entre as partes. Fica, assim, superada a dicotomia entre a responsabilidade contratual e extracontratual, porque, em ambos os casos, o fundamento da responsabilidade é o mesmo, qual seja o defeito do produto ou serviço. [08]
Pois bem, o cerne do assunto é a responsabilidade em relação aos passageiros. Assim, faz-se indispensável citar as características do contrato de transporte: a desnecessidade de formalidade; sua condição de adesão, já que as cláusulas são previamente estipuladas pelo transportador e não discutidas livremente entre as partes; e a cláusula de incolumidade que lhe é implícita.
Essa última peculiaridade revela o dever que tem o transportador de conduzir o passageiro, são e salvo, até o local combinado. A obrigatoriedade da cláusula de incolumidade se deve ao fato de ter o transportador uma obrigação de resultado, o que quer dizer que ele não só deve agir de maneira diligente, como também garantir o êxito da diligência.
Como ensina Rui Stoco:
Como ficou exaustivamente afirmado, a responsabilidade do transportador é, de regra, contratual e se traduz como uma obrigação de resultado ou fim. Não basta proporcionar os melhores meios. Impõe-se que cumpra o objeto da avença.
Portanto, não só assume obrigação de transportar o usuário a partir de um local de origem por este escolhido, como de deixá-lo no destino convencionado.
Mas essa obrigação só se completa com a entrega do passageiro no local do destino são e salvo; incólume. Esse dever de incolumidade constitui cláusula implícita de garantia, é ínsita ao contrato de adesão e se presume sempre. Pode ser considerada verdadeira cláusula pétrea , posto imutável por vontade do transportador. [09]
Em decorrência dessa responsabilidade, o transportador deve responder tanto pelas lesões corporais que os passageiros vierem eventualmente a sofrer em acidentes de trânsito no trajeto da viagem, como por danos decorrentes de atrasos e de suspensões das viagens.
O Código Civil preceitua em seus arts. 734 e 737, respectivamente:
Art. 734. O transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade.
Parágrafo único. É lícito ao transportador exigir a declaração do valor da bagagem a fim de fixar o limite da indenização.
Art. 737. O transportador está sujeito aos horários e itinerários previstos, sob pena de responder por perdas e danos, salvo motivo de força maior.
Trata-se de normas abrangentes, havendo a responsabilidade do transportador sempre que os defeitos na prestação do serviço acarretarem danos aos passageiros. Maria Helena Diniz especifica a responsabilidade do transportador, afirmando que com a celebração do contrato de transporte de pessoas, este será responsabilizado civilmente se:
a) não transportar o passageiro de um local para outro, no tempo e no modo convencionados;
b) não efetuar o transporte com cuidado, exatidão e presteza;
c) houver danos causados aos viajantes, oriundos de desastres não provocados por força maior ou caso fortuito ou por culpa exclusiva do passageiro, caso em que deverá pagar uma indenização variável conforme a natureza ou a extensão do prejuízo;
d) Se atrasar, na saída ou na chegada, caso em que deverá pagar os danos acarretados aos passageiros em virtude desse atraso, desde que ele não tenha sido motivado por força maior (art. 24, do Decreto nº. 2681/12). São fatos que justificam o atraso ou alteração de rota: a queda da ponte que obrigou o condutor do coletivo a abandonar a rodovia principal e seguir viagem por uma estrada secundária; o acidente que fez o motorista do ônibus esperar a perícia da polícia rodoviária. [10]
e) causar dano ao passageiro, sem motivo de força maior, por ter suspendido ou interrompido o tráfego ou não lhe ter oferecido lugar no veículo, desde que ele tenha adquirido bilhete para o transporte ser feito em determinada hora (art. 25, do Decreto nº. 2681/12);
f) não cumprir o contrato, se o transporte for cumulativo, relativamente ao seu percurso, caso em que deverá responder pelos danos pessoais que nele se derem. Todavia, o dano, resultante de atraso ou de interrupção da viagem, será determinado em razão da totalidade do percurso (art. 733, § 1º, do CC). [11]
Em caso concreto, o Areópago Catarinense já decidiu:
AÇÃO DE INDENIZAÇÃO - TRANSPORTE COLETIVO - LESÃO EM PASSAGEIRO - DENUNCIAÇÃO DA SEGURADORA À LIDE - CULPA DO PREPOSTO - BOLETIM DE OCORRÊNCIA - PRESUNÇÃO DE VERACIDADE INABALADA - RESPONSABILIDADE DA TRANSPORTADORA E DA LITISDENUNCIADA - INSURGÊNCIA RECURSAL DE AMBAS AS VENCIDAS - INÉPCIA DA INICIAL AFASTADA - RODOVIA EM CONDIÇÕES PRECÁRIAS - PISTA MOLHADA - FALTA DE CAUTELA DO MOTORISTA - DEVER DA TRANSPORTADORA EM GARANTIR A INCOLUMIDADE DOS PASSAGEIROS DURANTE TODA A VIAGEM - RESPONSABILIDADE OBJETIVA - LESÃO PERMANENTE CONFERIDA PELA PERÍCIA - MEMBRO SUPERIOR ESQUERDO - TRABALHADOR BRAÇAL - INCAPACIDADE LABORAL - PENSÃO ALIMENTÍCIA - CONSTITUIÇÃO DE CAPITAL - DANOS MORAIS DEVIDOS -LUCROS CESSANTES NÃO DEMONSTRADOS - REDUÇÃO DA VERBA HONORÁRIA - RAZOABILIDADE. RECURSO DA SEGURADORA PARCIALMENTE PROVIDO E DA TRANSPORTADORA DESPROVIDO. (GRIFO NOSSO)
[...]
Comprovada a culpa do preposto da transportadora pelo acidente que resultou em lesões no passageiro, impõe-se a condenação desta na reparação dos danos e na responsabilização da seguradora denunciada pelo pagamento dos valores até o limite da apólice.
Contempla-se a responsabilidade civil fundada na teoria objetiva do risco, independente da culpa ou dolo, eis que, ocorrido o evento danoso e havendo o nexo de causalidade, resultante na lesão corporal do passageiro, exsurge o dever da transportadora de reparar os danos causados, cuja responsabilidade, embora presumida, só poderá ser afastada em casos extremos, quando restar cabalmente comprovada a ocorrência de força maior ou culpa exclusiva da vítima.[...] [12]
Da mesma Corte de Justiça, interessante o seguinte julgado:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. TRANSPORTE RODOVIÁRIO COLETIVO. FATO DE TERCEIRO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA NÃO ELIDIDA.
O transportador rodoviário de passageiros deve assegurar a incolumidade do contratante do início ao final da viagem. Destarte, envolvendo-se o ônibus em acidente acarretando lesões graves em passageira, a empresa de transporte deve suportar os danos advindos, não podendo ser elidida pela alegada culpa de terceiro, mas tão somente por caso fortuito, força maior ou por culpa exclusiva da vítima.
TRATAMENTO MÉDICO. CONDENAÇÃO ATÉ TOTAL RESTABELECIMENTO DA AUTORA. ADMISSIBILIDADE.
Clara é a interpretação do art. 1.538, do Código Civil ao ordenar que o ofensor indenize o ofendido nas despesas do tratamento até o fim da convalescença, bem como das seqüelas que poderá advir do acidente.
DANO MORAL. QUANTUM DA INDENIZAÇÃO. CRITÉRIO OBJETIVO. IMPOSSIBILIDADE. AFERIÇÃO POR ARBITRAMENTO E VALORAÇÃO DO JUIZ. VALOR FIXADO QUE NÃO CONDIZ COM A REALIDADE DOS AUTOS. MAJORAÇÃO.
A fixação da indenização por danos morais em 300 salários mínimos é insuficiente para a recomposição dos prejuízos causados, considerando-se a gravidade da lesão e das conseqüências advindas do ato lesivo. Assim, impõe-se ao magistrado, no manuseio e estudo dos autos, recompor os prejuízos causados, elevando-se a verba para 1000 salários mínimos. [13]
A responsabilidade civil objetiva do transportador requer que o dano ao passageiro ocorra durante a vigência do contrato, isto é, no transporte ferroviário, a partir do momento em que o indivíduo entra na estação de embarque até o momento em que deixa o veículo e atravessa o portão de saída da estação de desembarque. No transporte rodoviário (ônibus, táxi), inicia-se a responsabilidade a partir do ingresso do passageiro no veículo, e termina com sua saída do mesmo. Não se leva em conta o pagamento da passagem, mesmo porque, este se dá com freqüência no interior do veículo. Desse modo, se ao tentar adentrar no veículo, o motorista arranca repentinamente e ocasiona o acidente, o transportador será responsável. [14]
Ressalte-se, ainda, que referida responsabilidade pressupõe um contrato de transporte; logo, se o passageiro lesado for clandestino, afasta-se a responsabilidade do transportador.
Ocorrendo suspensão do transporte, por qualquer motivo, o transportador deverá providenciar a continuação em veículo idêntico ou de outra natureza, se o passageiro concordar (art. 741, do Código Civil).
Como já dito, em relação aos passageiros a obrigação será contratual. Em todo contrato de transporte existe uma cláusula de segurança ou incolumidade.
A quebra desta obrigação implícita de natureza contratual impõe o reconhecimento da responsabilidade objetiva do transportador, que deverá indenizar a vítima independentemente de ter atuado ou não com dolo ou culpa. [15]
Portanto, a responsabilidade do transportador é objetiva, não dependendo da ocorrência de culpa ou dolo, devendo reparar os danos sofridos pelo transportado durante a vigência do contrato, salvo se presente alguma das causas excludentes de responsabilidade legalmente previstas, as quais passaremos a analisar.
3. EXCLUDENTES DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO TRANSPORTADOR
A responsabilidade civil do transportador no transporte de pessoas, apesar de objetiva, não é absoluta, pois permite abrandamentos quando presentes as excludentes previstas em lei.
Desta forma, pode a responsabilidade do condutor ser afastada no caso de força maior, caso fortuito e culpa exclusiva do passageiro.
Sobre o tema, interessante fazer-se uma breve análise histórica.
O primeiro diploma brasileiro consagrador da responsabilidade civil objetiva foi precisamente o Decreto nº. 2681/12, referente às estradas de ferro. O art. 17, da Lei das Estradas de Ferro, estabelecia que:
Art. 17 – As estradas de ferro responderão pelos desastres que nas suas linhas sucederem aos viajantes e de que resulte a morte, ferimento ou lesão corpórea.
A culpa será sempre presumida, só se admitindo em contrário alguma das seguintes provas:
1ª - Caso fortuito ou força maior;
2ª - Culpa do viajante, não concorrendo culpa da estrada.
Esse diploma legal se referiu expressamente ao ônus da prova e à culpa presumida da estrada, mas, como ficou assente posteriormente na doutrina e na jurisprudência, estatuiu, na verdade, a responsabilidade objetiva das estradas de ferro, somente elidida se provada a culpa exclusiva da vítima, caso fortuito ou força maior.
Essa norma manteve-se sempre rejuvenescida pela jurisprudência que, por analogia, estendeu sua aplicação aos acidentes que causassem danos a passageiros, ocorridos em bondes elétricos, ônibus e até automóveis. [16] Ressalta Silvio de Salvo Venosa: "Em linhas gerais, assim como para o transporte coletivo de ônibus e veículos que lhes fazem as vezes, os princípios do velho Decreto nº 2.681/12 continuam aplicáveis a toda modalidade de transporte terrestre, inclusive táxi. Só não tem muito sentido estender a aplicação dessa lei para danos ocasionados por elevadores e escadas rolantes". [17]
O Código de Defesa do Consumidor que evidentemente também se aplica aos transportes, por força do previsto nos seus arts. 3º, § 2º e 22 [18], veio reforçar a responsabilidade objetiva do transportador, unificando o conceito de responsabilidade contratual e extracontratual sob o manto do defeito do serviço.
O Código Civil de 2002 trouxe expressamente em seu texto a disciplina do contrato de transporte, consolidando as mudanças ocorridas na matéria por força da legislação e da jurisprudência, determinando, em seu art. 734, caput:
Art. 734. O transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade. (GRIFO NOSSO)
A fria redação do mencionado dispositivo, levaria-nos à idéia de que a única excludente da responsabilidade civil do transportador prevista legalmente seria a força maior. Assim, indaga-se: as tradicionais excludentes do caso fortuito e culpa exclusiva da vítima, há tanto tempo consagradas na jurisprudência pátria não se aplicariam ao contrato de transporte? Seria intenção do legislador afastar tais excludentes?
A doutrina civilista é unânime em considerar que não foi intenção do legislador restringir as hipóteses de exculpação do transportador, no contrato de transporte [19]. Afirma Rui Stoco que a redação do preceito, bastante restrita, não significa que se tenha pretendido essa redução, que não se compadece com a doutrina assente, a jurisprudência consagrada e pacífica e com a legislação especial subjacente. E destaca: "Talvez o legislador tenha procurado ser absolutamente técnico em acolher as ponderações de parte da doutrina que entende inexistir diferença ontológica entre caso fortuito e força maior". [20]
Nesse diapasão, continuam a elidir a responsabilidade do transportador a força maior, o caso fortuito e a culpa exclusiva da vítima.
A diferença entre o caso fortuito e a força maior é matéria extremamente nebulosa e sobre a qual não se atingiu consenso, preferindo a doutrina diferenciar o fortuito interno do externo, sendo somente este último apto a excluir a responsabilidade do transportador.
O fortuito interno trata-se de evento imprevisível e inevitável, relacionado à organização daquele que desenvolve uma determinada atividade, como por exemplo, o estouro dos pneus, quebra da barra de direção, falta de freios e outros defeitos mecânicos que podem ocorrer em veículos. Tais ocorrências não excluem a responsabilidade do transportador. Nesse sentido:
APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS CAUSADOS EM ACIDENTE DE TRÂNSITO - PERDA DO FREIO - CASO FORTUITO NÃO CONFIGURADO - CUMULAÇÃO DE DANOS MORAIS E ESTÉTICOS - MANUTENÇÃO DOS VALORES - RECURSOS DESPROVIDOS
O caso fortuito cinge-se às situações absolutamente imprevisíveis e conseqüências inesperadas. A falta de freio em um veículo é um risco previsível na atividade automobilística, pelo qual é responsável o proprietário e usuário da máquina.
Os danos morais, que atingem o patrimônio anímico de um sujeito, sua intimidade, não têm relação alguma com os valores despendidos para a correção na aparência que foi desfigurada em qualquer tipo de sinistro.
A indenização por danos morais não pode de um lado, servir ao enriquecimento material do lesado, e de outro, levar a completa ruína o lesante. O valor deve ser tal, que amenize o sofrimento psíquico causado e sirva também de desestímulo a reiteração do ato. [21]
E ainda:
APELAÇÃO CÍVEL. REPARAÇÃO DE DANOS. QUEBRA DA BARRA DE DIREÇÃO. CASO FORTUITO INTERNO. RESPONSABILIDADE PELO DANO. RECURSO DESPROVIDO.
Somente o caso fortuito externo dá ensejo à exclusão da responsabilidade civil, por ser imprevisível. Considerando, a quebra da barra de direção, caso fortuito interno, portanto, previsível, enseja-se a reparação do dano pelo seu causador.
APRESENTAÇÃO DE TRÊS ORÇAMENTOS.DISPENSABILIDADE ANTE O CONJUNTO PROBATÓRIO.
Não basta simplesmente impugnar os orçamentos apresentados, há necessidade da produção de prova em contrário para elidi-lo, mormente quando ele vem corroborado nas demais provas existentes. [22]
Por sua vez, o fortuito externo, sendo igualmente imprevisível e inevitável, desvincula-se, todavia, da atividade desenvolvida, com a qual não tem qualquer relação. É o caso, por exemplo, dos fenômenos da natureza.
Em relação à culpa exclusiva da vítima, esta somente elide a responsabilidade se for a razão predominante do evento danoso. Observe-se que, ao contrário do disposto no Código de Defesa do Consumidor, o Código Civil, prevê, em seu art. 738:
Art. 738. A pessoa transportada deve sujeitar-se às normas estabelecidas pelo transportador, constantes no bilhete ou afixadas à vista dos usuários, abstendo-se de quaisquer atos que causem incômodo ou prejuízo aos passageiros, danifiquem o veículo, ou dificultem ou impeçam a execução normal do serviço.
Permite, inclusive, a minoração da responsabilidade do transportador em razão da culpa concorrente da vítima [23], em seu parágrafo único:
Parágrafo único. Se o prejuízo sofrido pela pessoa transportada for atribuível à transgressão de normas e instruções regulamentares, o juiz reduzirá eqüitativamente a indenização, na medida em que a vítima houver concorrido para a ocorrência do dano.
Sobre o tema, o ensinamento de Zeno Veloso é esclarecedor:
Pode ocorrer de o passageiro ter sofrido dano em decorrência da transgressão de normas e instruções regulamentares. A responsabilidade do transportador é objetiva (art. 734), mas, se o prejuízo ou dano sofrido pelo viajante decorreu de sua própria atitude, de seu comportamento anti-social, do descumprimento de normas e instruções regulamentares, há necessidade de avaliar a extensão, o grau de culpa do transportado, para que o juiz possa estabelecer o limite, fixar o valor da indenização. No caso de o evento danoso decorrer, inteira e exclusivamente, de culpa da vítima, não se deve levar o princípio da responsabilidade objetiva a extremos que cheguem à injustiça, e, no caso, o dano não é indenizável. [24]
Como exemplos de culpa exclusiva da vítima, citam-se os passageiros que praticam "surfe" em tetos de trens e ônibus, os que se penduram voluntariamente nas portas e saliências dos coletivos, ou se postam em suportes que estão abaixo dos veículos. [25] É da jurisprudência:
RESPONSABILIDADE CIVIL. "SURFISTA FERROVIÁRIO". CULPA EXCLUSIVA DA VÍTIMA.
- Risco assumido inteiramente pelo "surfista ferroviário", sendo inexigível e até mesmo impraticável nessa hipótese a fiscalizaçãopor parte da empresa. Recurso especial não conhecido. [26]
Com relação aos passageiros "pingentes", que viajam pendurados em janelas e portas em razão da superlotação do meio de transporte, a jurisprudência se encontra bastante controvertida. Alguns tribunais entendem ser culpa da própria vítima, outros responsabilizam a transportadora pelas más condições do transporte fornecido. Razão assiste a esta segunda posição, vez que, sendo permitido o transporte de pessoas em tais condições, resta demonstrada a deficiência do serviço ou a completa displicência do transportador, apta a gerar a sua responsabilização. Sobre o assunto, o Egrégio Superior Tribunal de Justiça já se manifestou:
Direito Civil. Responsabilidade civil. Ilícito contratual.
Indenização por morte. ´´Pingente´´. Queda de trem em movimento. Culpa presumida. Art. 17 da Lei (Decreto Legislativo) nº 2.681/12.
Doutrina. Precedentes. Recurso provido.
I - Falecendo passageiro, em razão de queda ocorrida quando em movimento o comboio, há culpa presumida da empresa ferroviária, somente elidida pela demonstração de caso fortuito, força maior ou culpa exclusiva da vítima (art. 17 do Decreto 2.681/12).
II - Nos casos de "pingente", e não de "surfista ferroviário", porque dever contratual da companhia transportadora impedir que as pessoas viajem com parte do corpo projetado para o lado de fora do veículo, afastada resta a possibilidade de culpa exclusiva da vítima. [27]
A culpa de terceiro, por sua vez, não elide a responsabilidade do transportador, sendo interpretada como risco inerente à atividade. Nesse sentido, é o teor do art. 735, do Código Civil, que reproduziu o entendimento anteriormente firmado na Súmula 187, do Supremo Tribunal Federal [28], in verbis:
Art. 735. A responsabilidade contratual do transportador por acidente com o passageiro não é elidida por culpa de terceiro, contra o qual tem ação regressiva.
Assim, se um outro veículo, por imperícia do condutor, desgovernou-se e atingiu o ônibus em que estava o passageiro, que sofreu fraturas e escoriações, a responsabilidade do transportador persiste, e ele terá de indenizar os danos sofridos pela vítima. Mas poderá acionar, regressivamente, o terceiro causador do acidente. [29]
Situação diversa é a do fato doloso de terceiro, que pode vir a eximir o transportador, não havendo relação com o contrato de transporte, caso reste caracterizado que o referido contrato não foi determinante para a conduta do ofensor. A jurisprudência tem equiparado o fato doloso de terceiro com o fortuito externo, como ocorre nos casos de assaltos no interior de ônibus, que nenhuma relação têm com o transporte, mas sim um recrudescimento da violência urbana, fruto do descaso dos governantes com a questão social que assola nosso país.
Como asseveram Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, seria por demais injusto impor à companhia transportadora o ônus de assumir a obrigação de indenizar os passageiros pelo roubo ocorrido, do qual também foi vítima, ainda mais em se considerando ser dever do Estado garantir a todos a segurança pública. [30]
Nesse sentido, recente decisão do Egrégio Superior Tribunal de Justiça:
RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. MORTE DECORRENTE DE ASSALTO À MÃO ARMADA. VIAGEM INTERESTADUAL. FORÇA MAIOR. CONFIGURAÇÃO.
A Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento no sentido de que assalto à mão armada ocorrido dentro de veículo coletivo constitui excludente de responsabilidade da empresa transportadora (REsp n. 435.865/RJ, Rel. Min. Barros Monteiro, DJ de 12.05.2003).
Recurso especial conhecido e provido. [31]
Não discrepa desse entendimento, a posição do Colendo Supremo Tribunal Federal:
CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO TRANSPORTADOR. ASSALTO A ÔNIBUS SUBURBANO. PASSAGEIRO QUE REAGE E É MORTALMENTE FERIDO. CULPA PRESUMIDA, AFASTADA. REGRA MORAL NAS OBRIGAÇÕES. RISCO NÃO COBERTO PELA TARIFA. FORÇA MAIOR. CAUSA ADEQUADA. SEGURANÇA FORA DO ALCANCE DO TRANSPORTADOR. AÇÃO DOS BENEFICIÁRIOS DA VÍTIMA, IMPROCEDENTE CONTRA A EMPRESA TRANSPORTADORA. [32]
A única ressalva da doutrina é o caso de a própria empresa transportadora contribuir para o evento, em virtude de atuação desidiosa ou negligente do seu preposto, como, por exemplo, o motorista que parou ou atracou o ônibus em local inseguro, onde freqüentemente ocorrem assaltos. [33] Nesse sentido, o Sodalício Fluminense já decidiu:
Segundo determina o art. 17 do Decreto 2.681, o art. 14 da Lei 8.078 (CDC) e o art. 175, parágrafo único, da CF, o transportador recorrente, por ser prestador de serviço público, de caráter essencial, transporte coletivo, responde, independentemente de existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por ocasião da prestação dos serviços. Face à responsabilidade objetiva da transportadora, só ficaria esta afastada se demonstrada culpa exclusiva da vítima – do que nem se cogita – ou a ocorrência de caso fortuito e força maior, hipóteses que, obrigatoriamente, só ocorrem se forem imprevisíveis, o que também não aconteceu, porquanto o motorista e o trocador do ônibus que depuseram foram unânimes em afirmar serem freqüentes os assaltos naquela linha. [34]
A mesma questão se aplica ao caso de passageiro que venha a sofrer, durante a viagem, danos decorrentes de tiro disparado do lado de fora do veículo, ou objetos arremessados contra o mesmo, havendo, nesse último caso, séria controvérsia jurisprudencial, como veremos no próximo tópico.
O ônus da prova das excludentes de responsabilidade cabe sempre ao transportador, que deverá demonstrar a sua ocorrência no caso concreto para eximir-se da obrigação de reparar os danos sofridos pelo passageiro.
Por fim, resta esclarecer a nulidade da cláusula de não indenizar nos contratos de transporte de pessoas, por disposição expressa do art. 734, caput, do vigente Código Civil, que estabelece ser "nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade". Nesse sentido, já enunciava a Súmula 161, do STF, agora incorporada à legislação. [35]
O que se admite é a cláusula limitativa do valor da indenização, desde que não seja expediente falacioso, para burlar a proibição da cláusula excludente da responsabilidade, quando a indenização, por exemplo, for fixada em valor ridículo, insignificante. [36] Referida cláusula, entretanto, não é aplicável nos casos de culpa grave ou dolo do transportador. [37]