4. A RESPONSABILIDADE CIVIL DO TRANSPORTADOR PELOS DANOS CAUSADOS AO PASSAGEIRO EM VIRTUDE DO ARREMESSO DE OBJETOS CONTRA O VEÍCULO DE TRANSPORTE
Ante o já explanado, verifica-se que a responsabilidade do transportador no transporte de pessoas é objetiva, devendo reparar os danos que o passageiro venha a sofrer no trajeto da viagem, independentemente de culpa, somente se eximindo nos casos de força maior, caso fortuito externo e culpa exclusiva da vítima.
Controvertido entendimento jurisprudencial existe quanto à responsabilidade da companhia transportadora em caso de arremesso de objeto por terceiro contra o veículo de transporte, durante a viagem, vindo a ferir passageiro. Como destacam Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, a questão é delicada, na medida em que a companhia nem sempre dispõe de meios para evitar acontecimentos deste jaez, proveniente da atuação de vândalos. [38]
Reforçando a controvérsia, Silvio de Salvo Venosa admite que em princípio o transportador não é responsável por acidente com passageiro de coletivo que é alvejado por projétil ou pedra disparados da via pública. Mas, em seguida, reconhece não ser essa posição homogênea, por força da Súmula 187, do Pretório Excelso, afirmando que o passageiro poderia responsabilizar o transportador, pois não restou cumprida a cláusula de incolumidade, noticiando ainda, que a jurisprudência mais recente equiparou esse fato ao fortuito externo, concluindo que o assunto ainda não é pacífico na jurisprudência. [39]
Nesses casos de arremessos de pedras conta o veículo, ou até mesmo de tiros disparados por terceiros vindo a atingir passageiro, teria o transportador obrigação de reparar os danos? Estariam tais danos abrangidos pela responsabilidade objetiva e pela cláusula de incolumidade? Ou seriam tais acontecimentos equiparados ao caso fortuito externo, excludente de responsabilidade? A jurisprudência se divide. Vejamos os argumentos das duas correntes.
No sentido da responsabilização do transportador, argumenta-se que o transporte é um contrato de resultado, devendo aquele entregar o passageiro no local de destino, incólume. A Súmula 187 do STF estabelece: "A responsabilidade contratual do transportador, pelo acidente com o passageiro, não é elidida por culpa de terceiro, contra o qual tem ação regressiva." Assim, a "culpa de terceiro" prevista nessa súmula, se refere à culpa lato sensu, incluindo também os casos de dolo. [40] Daí advindo a responsabilidade do transportador mesmo no fato doloso do terceiro que arremessou a pedra ou disparou o tiro contra o veículo. Argumenta-se também, que o Código de Defesa do Consumidor determina essa responsabilidade, ao prever em seu art. 14:
Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.
§ 1° O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais:
I - o modo de seu fornecimento;
II - o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam;
III - a época em que foi fornecido. (GRIFO NOSSO)
Nesse entendimento, o Egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul já decidiu:
RESPONSABILIDADE CIVIL. TRANSPORTE DE PASSAGEIROS. DANO CAUSADO POR TERCEIRO. SÚMULA 187 DO STF. NULIDADE DA SENTENCA INOCORRENTE. NÃO SE REVESTE DE VÍCIO A DECISÃO QUE NÃO APRECIA PEDIDO DE DEDUÇÃO DE SEGURO OBRIGATÓRIO, FORMULADO PELO RÉU EM CONTESTACÃO. NÃO EXCLUI A RESPONSABILIDADE DO TRANSPORTADOR PEDRA ARREMESSADA POR TERCEIRO, AO LONGO DO ITINERÁRIO DA EMPRESA, POIS ESTA ASSUME, COM O PASSAGEIRO E MEDIANTE CONTRATO, A OBRIGACÃO DE LEVÁ-LO INCÓLUME AO DESTINO. O EVENTO NÃO É IMPREVISÍVEL, ESTANDO ÍNSITO AO RISCO PRÓPRIO DA ATIVIDADE QUE, DIARIAMENTE, PERCORRE RUAS E RODOVIAS COM VEÍCULOS DE TRANSPORTE, PODENDO SER VÍTIMA DE DESASTRES. DEDUCÃO DA INDENIZAÇÃO DECORRENTE DO SEGURO OBRIGATÓRIO (DPVAT). RECURSOS DA RÉ PROVIDO, EM PARTE, E DESPROVIDO O DO AUTOR. [41]
EMBARGOS INFRINGENTES. RESPONSABILIDADE CIVIL EM ACIDENTE DE TRÂNSITO. PEDRA ATIRADA CONTRA VEÍCULO DE TRANSPORTE COLETIVO. Indiscutível que a responsabilidade da empresa requerida é objetiva por força do disposto no art. 37, §6º, da Constituição Federal e Súmula 161 do STF. Não configurada a excludente de fato exclusivo de terceiro no caso concreto. Os atos que culminaram com a produção de danos físicos irreversíveis à vítima - permissão do ingresso no carro de torcedores envolvidos em áspera discussão e que esses do interior do ônibus proferissem provocações à adversários na rua - sempre estiveram dentro da esfera de influência da empresa transportadora e não se configuram, assim, em fatos absolutamente alheios à atividade de transporte, quando sim são englobados no dever contratual de incolumidade. Acolhimento dos embargos para fazer prevalecer o voto minoritário e a sentença, determinando a responsabilização do transportador e o pagamento da indenização arbitrada em primeira instância. EMBARGOS INFRINGENTES ACOLHIDOS, POR MAIORIA DE VOTOS. [42]
Em sentido contrário, forte entendimento doutrinário e jurisprudencial existe ao classificar os danos oriundos do arremesso de objetos contra o veículo de transporte como caso fortuito externo, pois nenhuma relação de causalidade há com o contrato de transporte. Assim, restaria afastada a incidência da Súmula 187 do Supremo Tribunal Federal, pois a pedra arremessada ou o tiro disparado tratar-se-iam de fato doloso de terceiro, considerado fortuito externo. Cuidando-se de fortuito externo, resta ausente a responsabilidade do transportador.
Afirma Maria Helena Diniz: "Já se decidiu ser equiparável ao caso fortuito: a) disparos e pedras atiradas por terceiro contra veículo, ferindo passageiro[...]." [43]
Nesse sentido, opina Zeno Veloso:
Encontramos decisões judiciais afirmando que não responde a empresa transportadora [...] pelo fato de passageiro de ônibus ser atingido por estilhaço de vidro produzido por uma pedra atirada por terceiro, ato equiparado a caso fortuito, não havendo que falar em divergência com a Súmula 187 do STF (JB,141:182). [44]
Observa o professor Sérgio Cavalieri Filho, que a melhor doutrina caracteriza o fato doloso de terceiro, vale dizer, o fato exclusivo de terceiro, como fortuito externo. Ele exclui o próprio nexo causal, equiparável à força maior, e, por via de conseqüência, exonera de responsabilidade o transportador. O transporte, em casos tais é a causa do evento; é apenas a sua ocasião. "E mais: após a vigência do Código do Consumidor, esse entendimento passou a ter base legal, porquanto, entre as causas exonerativas da responsabilidade do prestador de serviços, o § 3º, II, do art. 14 daquele Código inclui o fato exclusivo de terceiro". [45]
Essa corrente vem avalizada pela moderna jurisprudência, como se verifica em decisão do Areópago Catarinense, adiante transcrita :
APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO - CONTRATO DE TRANSPORTE DE PESSOAS - PROJÉTIL DISPARADO POR TERCEIRO LOCALIZADO FORA DO VEÍCULO - NEXO DE CAUSALIDADE INEXISTENTE - CASO FORTUITO E FATO DE TERCEIRO - INDENIZAÇÃO INDEVIDA - SENTENÇA REFORMADA - RECURSO PROVIDO.
O passageiro de ônibus que é atingido por projétil disparado por terceiro localizado fora do veículo, causando-lhe ferimentos, não detém direito indenizatório frente à empresa transportadora, vez que a lesão não guarda relação direta com a atividade exercida, não restando demonstrado o nexo causal, mas, sim, caso fortuito e fato de terceiro. [46]
E ainda, afastando a incidência da Súmula 187 do STF, decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro:
"RESPONSABILIDADE CIVIL DE FERROVIA - VÍTIMA ATINGIDA POR PEDRADA FATAL - CULPA DE TERCEIRO - SÚMULA 187, DO STF - INAPLICABILIDADE - CASO FORTUITO - INDENIZAÇÃO - RECURSO IMPROVIDO - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO COM RITO SUMÁRIO - PASSAGEIRO DE TREM ATINGIDO POR UMA PEDRA ARREMESSADA POR TERCEIRO - Não aplicação da Súmula 187 do STF por tratar-se de fato de terceiro estranho ao contrato de transporte, equiparando-se, portanto, ao caso fortuito, para eximir a responsabilidade objetiva da transportadora. Correta a decisão de primeiro grau. Não provimento do recurso." [47]
A posição do Colendo Superior Tribunal de Justiça vem de encontro a este entendimento:
RESPONSABILIDADE CIVIL – TRANSPORTE DE PASSAGEIROS – ARREMESSO DE OBJETO PARA O INTERIOR DO VEÍCULO – LESÃO EM PASSAGEIRO – FATO DE TERCEIRO EXCLUDENTE DE RESPONSABILIDADE – PRECEDENTES.
I – A presunção de culpa da transportadora pode ser ilidida pela prova de ocorrência de fato de terceiro, comprovadas a atenção e cautela a que está obrigada no cumprimento do contrato de transporte a empresa.
II – O arremesso de objeto, de fora para dentro do veículo, não guarda conexidade com a atividade normal do transportador. Sendo ato de terceiro, exclui a responsabilidade do transportador pelo dano causado ao passageiro. Precedentes.
Recurso especial provido. [48]
DIREITO CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. TRANSPORTE COLETIVO. BALA PERDIDA. FATO DE TERCEIRO.
Bala perdida não é fato conexo aos riscos inerentes do deslocamento, mas constitui evento alheio ao contrato de transporte, não implicando responsabilidade da transportadora.
Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, provido. [49]
Razão assiste a essa segunda posição. A obrigação do transportador é conduzir o passageiro até o local de destino são e salvo. Para isso tem de tomar todas as cautelas no transporte, fazendo a manutenção regular dos veículos, treinando e qualificando seus motoristas, mecânicos, assistentes técnicos e demais funcionários cujo trabalho seja extremamente importante para o bom desempenho do serviço de transporte. Contudo, não seria justo que restasse a empresa responsabilizada por danos inevitáveis e imprevisíveis oriundos da conduta selvagem de terceiros que venham a arremessar objetos contra o veículo, sendo o próprio transportador uma das vítimas destes lamentáveis eventos.
Tais eventos, nenhuma relação guardam com o contrato de transporte, não estando abrangidos pela cláusula de incolumidade. Ressalvada a possibilidade de concorrência culposa do transportador com o evento danoso, em virtude de atuação desidiosa ou negligente do seu preposto, como, por exemplo, continuar trafegando por locais onde costumeiramente ocorrem ataques a ônibus. Todavia, este não é o objeto do presente estudo, mas sim, o dano causado em rodovia onde não sejam comuns tais agressões.
Assim, conclui-se que não há responsabilidade civil do transportador em relação aos danos causados a passageiros em virtude do arremesso de objetos contra o veículo, não tendo, conseqüentemente, obrigação em reparar tais danos, enquadrando-se referidos fatos na excludente do caso fortuito externo, causa legalmente prevista de exclusão da responsabilidade.
5. O TRANSPORTE GRATUITO
Não se poderia encerrar o presente artigo sem se tratar brevemente do transporte gratuito.
Em restrita acepção do termo, gratuito somente poderá ser considerado o transporte de mera cortesia, a carona desinteressada, por amizade ou outro sentimento pessoal. Dele o Código Civil cuidou em seu art. 736:
Art. 736. Não se subordina às normas do contrato de transporte o feito gratuitamente, por amizade ou cortesia.
Parágrafo único. Não se considera gratuito o transporte quando, embora feito sem remuneração, o transportador auferir vantagens indiretas.
Pela redação apresentada, podemos vislumbrar a existência de duas situações jurídicas distintas.
A primeira seria o transporte verdadeiramente gratuito, aquele feito exclusivamente no interesse do passageiro. Nesta hipótese, nem haverá contrato de transporte. Havendo acidente e dano ao tomador da carona, a jurisprudência entende que deve ser aplicada a Súmula 145 do STF, com a responsabilização do transportador somente se incorrer em dolo ou culpa grave. Nesse sentido:
RESPONSABILIDADE CIVIL - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO - ACIDENTE DE TRÂNSITO - TRANSPORTE GRATUITO - FUMAÇA NA PISTA DIFICULTANDO VISIBILIDADE - ABALROAMENTO INEVITÁVEL - AUSÊNCIA DE CULPABILIDADE DO CONDUTOR - STJ, SÚMULA N.º 145 - CULPA GRAVE OU DOLO NÃO DEMONSTRADOS.
1. Inexiste responsabilidade civil subjetiva por ato ilícito sem prova da culpa do agente (CC/16, art. 159).
2. Nos transportes puramente gratuitos, o condutor do veículo somente é responsável pelos danos causados ao passageiro quando demonstrada culpa grave ou dolo pelo evento: "No transporte desinteressado, de simples cortesia, o transportador só será civilmente responsável por danos causados ao transportado quando incorrer em dolo ou culpa grave" (STJ, Súmula n.º 145). [50]
Em sentido contrário, parte da doutrina entende deva ser aplicado o sistema de regras da responsabilidade aquiliana do Código Civil, o que significa dizer que o juiz, nos termos do art. 186, deverá perquirir a culpa (em sentido lato) do condutor para efeito de impor-lhe a obrigação de indenizar, e não apenas onde agiu com dolo ou culpa grave. [51] Entretanto, esse entendimento não prevalece na jurisprudência. [52]
A segunda hipótese seria a do transporte interessado, sem remuneração direta. É o caso, por exemplo, do representante de vendas que faz questão de levar o seu cliente até o seu stand (transporte interessado); ou o transporte gratuito aos maiores de 65 anos, cujo preço da passagem se encontra computado na passagem dos demais transportados. Nessa espécie de contrato, a responsabilidade do transportador não se altera, permanecendo objetiva, com a aplicação das normas pertinentes ao contrato de transporte. [53]
Ressaltam Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho que para descaracterizar o transporte gratuito o interesse do transportador não precisa ser econômico. Nessa linha de raciocínio:
uma carona motivada por interesse sexual, por exemplo, descaracterizaria a cortesia, fazendo incidir as regras do contrato de transporte, e, por conseguinte, da responsabilidade objetiva? Em nosso sentir, segundo uma interpretação teleológica, desde que não seja por amizade ou mera cortesia (art. 736, caput), o transporte motivado por qualquer interesse do condutor justificaria a descaracterização do transporte gratuito[..] Assim, uma carona dada apenas para fins sexuais (a famosa canta em ponto de ônibus) autorizaria, em nosso entendimento, a incidência das regras de contrato de transporte, por força da "vantagem indireta" experimentada pelo condutor, nos termos do mencionado parágrafo único do art. 736. [54]