Resumo
A teoria da empresa envolve o conhecimento das diversas peculiaridades da própria atividade empresarial e da evolução das formas de se pensar e se viver no mundo corporativo contemporâneo. Diante das inúmeras atribuições dos administradores, os grandes sistemas organizacionais têm implantado mecanismos de proteção e de segurança aos seus membros (diretores, gerentes, conselheiros etc.) cujos atos acarretem conseqüências danosas aos interesses de terceiros. A figura do contrato de indenidade, mais do que mero instrumento de proteção ao administrador, se revela verdadeiro benefício direto para àqueles que, dentro da legalidade e da boa-fé, tomam decisões que influenciam, de modo positivo ou negativo, no futuro dos negócios das empresas e dos próprios investidores.
Palavras-chave: contrato de indenidade, direito civil, direito societário, direito empresarial, atos de gestão, responsabilidade da gestão.
Abstract
The theory of the company involves the knowledge of the diverse peculiarities of the proper enterprise activity and the evolution of the forms of thinking and living in the contemporary corporative world, from which Brazil cannot be distant. Ahead of the innumerable attributions of the administrators, in the whole world the organizations systems have implanted mechanisms of protection and security to its members (directors, managers, company advisors, among others). The figure of the indemnity contract - more than a simple shield for the administrator whose acts cause third party damage - reveals itself as a truth benefit for those who, inside legality and good faith, take decisions that influence, positively or negatively, the future of the investors and the companies business.
Key-words: indemnity contract, civil law, company law, business law, acts of management, management''s responsibility.
1. Introdução
A literatura jurídica nacional carece de uma abordagem aprofundada sobre o tema proposto. Até a finalização do presente estudo não se teve notícia de nenhuma doutrina que abordasse os aspectos legais do pouco conhecido e utilizado contrato de indenidade.
Dentre as diversas inovações no cenário jurídico brasileiro com a entrada em vigor da Lei 10.406/2002 - que instituiu o novo Código Civil - destacam-se as modificações ocorridas no direito dos contratos e, em especial, as inovações do denominado direito de empresa.
Não de forma diversa, as alterações na Lei 6.404/76 (Lei das Sociedades Anônimas) notadas a partir da vigência da Lei 10.303/2001, contribuíram para o aprimoramento de figuras jurídicas que assegurem um mínimo de proteção ao administrador.
Como a Ciência Jurídica contempla uma infinidade de situações que podem ocorrer no cotidiano das pessoas físicas e jurídicas, é inafastável que o desenvolvimento das atividades e das idéias é uma constante que deve ser acompanhada pela evolução dos institutos jurídicos que regulam, balizam e norteiam a vida na sociedade, sendo certo que, quando as práticas válidas no passado deixam de atender às necessidades do presente e às expectativas do futuro, torna-se imperativo incorporar novos conceitos, a fim de se atender à nova realidade.
Nesse sentido, este artigo almeja apresentar o contrato de indenidade e iniciar um debate sobre a relevância de sua adoção pelas organizações empresariais.
2. Conceito
Apesar de nomenclaturas similares, os institutos jurídicos da indenização e da indenidade não se confundem.
A indenização é a reparação do dano causado a terceiros, independente da existência de dolo ou culpa do agente, ou seja, está associada ou não à idéia do ato ilícito, sendo a responsabilidade do agente, neste caso, objetiva ou subjetiva, já que são suficientes para gerar a obrigação de indenizar (ou de ressarcir): a) a configuração do dano (moral ou material) e; b) o nexo de causalidade.
O artigo 942 do Código Civil assim dispõe acerca da responsabilidade civil como pressuposto do dever de indenizar:
"Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts.186 a 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem."
Na lição de Sergio Cavalieri Filho "impera neste campo o princípio da restitutio in interum, isto é, tanto quanto possível, repõe-se a vítima à situação anterior à lesão. Isso se faz através de uma indenização fixada em proporção do dano." (FILHO, 1999, p. 24).
Diferentemente da indenização, cuja fonte é a própria lei (ex lege), a origem da indenidade é contratual, decorrente da vontade (voluntas). Assim, o contrato de indenidade tem por escopo instituir e regular a obrigação da empresa no que toca ao pagamento das despesas decorrentes de eventual inquérito civil, criminal e/ou administrativo, bem como de eventual processo judicial e/o administrativo em que o administrador figure como parte, em virtude de sua responsabilidade por determinado ato praticado sem dolo, com probidade e boa-fé, no exercício regular das suas funções e em observância à expressa orientação dos órgãos consultivos e/ou deliberativos da respectiva empresa.
3. Classificação
Apesar de ter um nomen iuris próprio, o contrato de indenidade carece de tipificação legal, já que não está previsto junto às demais espécies contratuais contempladas no rol compreendido entre os artigos 481 a 853 do Código Civil.
Para o Prof. Caio Mário da Silva Pereira, "...um contrato é típico (ou nominado) quando as suas regras disciplinares são deduzidas de maneira precisa nos Códigos ou nas leis." (PEREIRA, 2005, p. 60).
Assim, por não ter as suas regras disciplinares estampadas na legislação civil pátria, o contrato de indenidade é classificado como atípico. Os contratos atípicos estão assim traduzidos no Código Civil:
"Art. 425. É licito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código."
3.2 Quanto à forma
O contrato formal, também chamado de solene, é aquele que requer a satisfação de exigências externas e materiais para sua perfeição.
Chama-se contrato solene "aquele para cuja formação não basta o acordo das partes. Exige-se a observância de certas formalidades, em razão das quais o contrato se diz, também, formal". (PEREIRA, 2005, p. 62).
Como a lei civil não impõe, na constituição do contrato de indenidade, qualquer outro requisito – além da mera declaração de vontade das partes contratantes - diz-se que o mesmo é do tipo consensual ou não-solene.
3.3 Quanto ao conteúdo
Gratuito ou benéfico. É assim que o contrato de indenidade deve ser classificado, já que dele somente uma parte aufere a vantagem (o administrador), enquanto que a outra suporta o ônus ou o encargo.
3.4 Quanto aos efeitos
Como será visto no item 4 deste estudo, o contrato de indenidade não cria obrigações para somente um dos contratantes. Ao revés, é nítida a existência de obrigações mútuas no respectivo instrumento contratual, fazendo com que o mesmo seja classificado, sob tal aspecto, como bilateral.
A bilateralidade do contrato em exame, remete ao exame da subdivisão doutrinária condizente aos contratos bilaterais, no que toca à álea, no sentido de haver ou não conhecimento prévio da prestação de uma das partes.
Sob tal prisma, os contatos serão comutativos ou aleatórios. Os aleatórios são suscetíveis, como o próprio nome induz, à existência do fator sorte, porque versa sobre coisas futuras ou sobre acontecimentos atuais, porém sujeitos a riscos.
Os comutativos, por sua vez, são aqueles em que as prestações de ambas as partes são previamente conhecidas.
Neste sentido, tem-se que o contrato de indenidade é aleatório.
3.5 Quanto às partes
O contrato de indenidade não requer, na sua constituição, a declaração volitiva de um agrupamento de indivíduo considerado como um todo indivisível. Ele se forma, em verdade, pela manifestação da vontade individualmente considerada das partes contratantes.
Destarte, diz-se que tal contrato não é coletivo, mas sim, deve ser classificado como individual.
3.6.Quanto à execução
No contrato de indenidade, a prestação de uma das partes (no caso, da empresa) não se efetua de uma só vez e por prestação única.
Neste tipo de contrato, a prestação ocorre a termo e a obrigação somente se extingue no momento em se completar a solutio, permitindo classificá-lo como de execução diferida ou retardada.
4. Das obrigações mútuas
A fim de garantir o regular apoio ao administrador, a empresa deve custear todas as despesas judiciais e/ou administrativas, bem como contratar os serviços advocatícios de patrono ou de escritório de advocacia indicados pelo administrador ou escolhido diretamente pela empresa, com o expresso aval do mesmo.
4.2 Das obrigações do administrador
Conforme dispõe o artigo 1.011 do Código Civil:
"O administrador da sociedade deverá ter, no exercício de suas funções, o cuidado e a diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração de seus próprios negócios."
Além das imposições legais a que se sujeita o administrador, este deverá observar as condições abaixo indicadas, sem prejuízo de outras condições expressamente previstas no contrato a ser assinado com entre a empresa e o administrador:
a)no exercício das funções inerentes ao cargo, o administrador deverá manter fiel obediência às disposições constitucionais e legais, bem como às normas internas da empresa, em especial, o estatuto ou o contrato social e o regimento interno ou norma equivalente por ela adotada e de conhecimento incontestável por parte do administrador;
b)antes de tomar qualquer decisão de relevância para a empresa, o administrador deverá se valer da prévia orientação expressa dos departamentos ou órgãos competentes da empresa, como por exemplo, o conselho consultivo, o departamento jurídico e o conselho fiscal;
c)caso o administrador contrarie a orientação indicada no item anterior e seja considerado responsável - por força de decisão administrativa e/ou judicial irrecorrível - pela prática do ato danoso, no exercício das suas funções, deverá reembolsar à empresa o valor correspondente às despesas judiciais e/ou administrativas, além daquelas relativas à contratação dos serviços advocatícios;
5. Princípios da Probidade e da Boa-fé
Sem correspondência no Código Civil anterior, os princípios da probidade e da boa-fé foram prestigiados pelo legislador ordinário que os incluiu, expressamente, no artigo 422 do novel diploma legal de 2002:
"Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé".
Mesmo não tendo incluído os períodos pré e pós-contratual no artigo supra transcrito, o Código Civil vigente reparou a falha histórica ao consagrar, expressamente, os respectivos princípios na ordem interna.
Tanto a probidade quanto a boa-fé, devem ser vistos como cláusulas gerais incidentes sobre todas as relações jurídicas, em especial, as de índole contratual.
A probidade se caracteriza pela integridade de caráter e honradez com as quais deve agir as partes na execução de suas atividades.
Quanto à boa-fé, atualizando a imortal obra do Prof. Caio Mário, o jurista Regis Fichtner afirma, com propriedade, que
A boa-fé referida no art. 422 do Código Civil é a boa-fé objetiva, que á características das relações obrigacionais [...] O seu conteúdo consiste em um padrão de conduta, varianado as suas exigências de acordo com o tipo de relação existente entre as partes [...] Ela cria também deveres positivos, já que exige que as partes tudo façam para que o contrato seja cumprido conforme previsto e para que ambas obtenham o proveito objetivado. (PEREIRA, 2005, p.18).
6. Exceptio non adimpleti contractus e isenção de responsabilidade da empresa
Por fim, mas não menos importante, é o enfrentamento da questão sobre a possibilidade da aplicação da cláusula da exceção de contrato não cumprido, cuja previsão legal se encontra no artigo 476 do Código Civil:
"Art. 476. Nos contatos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro".
Como o contrato de indenidade impõe obrigações mútuas, é de se admitir a aplicação da cláusula exceptio non adimpleti contractus para isentar a empresa do cumprimento de sua prestação.
Assim, há de se observar que a companhia estará desobrigada a cumprir com a sua obrigação, na ocorrência das seguintes hipóteses:
a)se o ato danoso for praticado com dolo manifesto ou de fácil apuração;
b)se o administrador agir de forma ímproba ou negociar por conta própria ou alheia sem permissão da empresa ou de seus controladores;
c)se o administrador agir com desídia no desempenho das suas funções;
d)se o administrador violar segredo da empresa e/ou dos seus controladores;
e)em casos de indisciplina, insubordinação, abandono do cargo, ato lesivo à honra ou boa fama (sua própria ou da empresa);
f)em casos de condenação criminal do administrador, mediante decisão judicial transitada em julgado.
7. Conclusões
O contrato de indenidade é uma realidade mundial que, a cada dia, vem despertando o interesse das empresas nacionais, a fim de assegurar ao administrador a plena defesa em processos administrativos e/ou judiciais eventualmente abertos em virtude de atos de gestão por ele praticado que tenham causado prejuízos a terceiros.
Neste diapasão se insere o contrato de indenidade, tido como um contrato atípico, consensual, gratuito, bilateral, aleatório, individual e de execução diferida, revelando-se uma espécie negocial cuja construção que merece aprimorada, a fim de atender plenamente à realidade das empresas e das novas formas de organização das sociedades empresariais.
O fenômeno da globalização e a abertura do mercado interno às empresas internacionais proporcionaram uma efetiva troca de experiências entre os grupos econômicos, que passaram a adotar normas de conduta e conceitos já utilizados, em larga escala, nos países de origem.
Desta forma, esta abordagem sobre o contrato de indenidade teve por escopo contribuir para a apresentação do tema proposto, a fim de fomentar um necessário debate sobre o respectivo objeto que, em que pese sua inequívoca relevância, ainda é timidamente utilizado pelas corporações e inexplorado pela doutrina pátria.
Referências bibliográficas
BITTAR, Carlos Alberto. Reparação civil por danos morais. 3ª edição, 2ª tiragem, São Paulo: RT, 1999.
FILHO, Sergio Cavalieri. Programa de Responsabilidade Civil. 2ª edição, 2ª tiragem, São Paulo: Malheiros, 1999.
KECKLER, Charles et al. Seminário Internacional de Responsabilidade Civil. 1ª edição, Rio de Janeiro: Justiça & Cidadania, 2004.
PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. III. Contratos. Atualizado por Regis Fichtner. 12ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 2005.