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A tutela da boa-fé objetiva no Direito Administrativo

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Agenda 30/09/2008 às 00:00

Trazer para o Direito Administrativo a compreensão dada a esse instituto pelo Direito Civil, é primordial para a concretização de uma nova visão daquele ramo do Direito Público.

SUMÁRIO: 1.INTRODUÇÃO. 2. A COMPREENSÃO DA BOA-FÉ OBJETIVA. 2.1. Noções preliminares. A boa-fé como cláusula geral. 2.2. Boa-fé objetiva e subjetiva. Distinção. 2.3. Bases constitucionais. A boa-fé como princípio implícito. A força normativa dos princípios. . 2.3.1. Princípio da dignidade humana. . 2.3.2. Princípio da solidariedade. . 2.3.3. Princípio da moralidade. . 2.3.4. Princípio da segurança jurídica. . 2.4. As funções da boa-fé objetiva. . 2.4.1. Função interpretativa. A teoria da confiança. . 2.4.2. Função integrativa. Os deveres anexos. 2.4.3. Função limitativa. O abuso de direito. 3. A APLICAÇÃO DA BOA-FÉ OBJETIVA NO DIREITO ADMINISTRATIVO. 3.1. Os óbices apontados à aplicação da boa-fé objetiva no Direito Administrativo e sua superação. 3.2. O princípio da boa-fé objetiva e os atos administrativos. 3.2.1. A boa-fé e o dever de anulação dos atos ilícitos. 3.3. A boa-fé objetiva e o exercício dos poderes administrativos. 3.3.1. Venire contra factum proprium. 3.3.2. Supressio e surrectio. 3.3.3. Tu quoque. 3.4. As funções da boa-fé objetiva e os contratos administrativos. . 3.4.1. A violação positiva do contrato. 3.4.2. Responsabilidade pré e pós-contratual. 4. CONCLUSÃO. 5. BIBLIOGRAFIA.


1. INTRODUÇÃO

Encetou-se o presente trabalho com o propósito de apontar os lindes jurídico-normativos do princípio da boa-fé objetiva, no estágio atual da ciência jurídica, e demonstrar sua inexorável aplicação no campo do Direito Administrativo.

Deveras, o ordenamento jurídico-administrativo já traz disposições normativas suficientes para que esse postulado comece a fazer parte do cotidiano dos que lidam com esse importante ramo do conhecimento jurídico.

Nesse sentido, desponta a Lei nº 9.784/99, que tornou realidade, em nível infraconstitucional, a boa-fé objetiva, seja prevendo-a como regra de conduta para a Administração no processo administrativo (art. 2º, parágrafo único, IV), seja estipulando-a como dever de atuação dos administrados (art. 4º, II).

Imprescindível, porém, que se perceba a boa-fé objetiva a partir do próprio texto da Constituição Federal, especialmente do princípio da moralidade previsto no art. 37, caput, de modo a apontá-la e evidenciá-la como um dos mais importantes instrumentos jurídicos para a concretização dos objetivos da República Federativa do Brasil (arts. 1º e 3º da Constituição), especialmente a tutela e promoção da dignidade humana e da solidariedade social.

Deduzir a boa-fé objetiva do próprio texto constitucional tem, aliás, o especial objetivo de afirmar esse postulado jurídico como princípio constitucional geral de toda a Teoria do Direito, com repercussão inconteste, como se envidará esforços para demonstrar, no Direito Administrativo.

Não se olvidou, também, de percorrer a doutrina civilista sobre o tema, a fim de buscar-lhe os elementos e contornos atuais da boa-fé objetiva, tendo-se em conta que foi nessa órbita do Direito que mais se desenvolveu, em tempos recentes, a noção objetiva do princípio da boa-fé.

De fato, trazer para o Direito Administrativo a compreensão dada a esse instituto pelo Direito Civil, nomeadamente no que toca às funções interpretativa, integrativa e limitativa da boa-fé objetiva, releva-se de primordial importância para a concretização de uma nova visão daquele ramo do Direito Público, voltada para a concretização da solidariedade social e para a promoção da dignidade humana.

Contribuir, assim, dentro das limitações desse trabalho e de seu subscritor, para que a boa-fé objetiva passe a integrar as discussões rotineiras dos operadores do Direito Administrativo e, mais que isso, que ela passe a ser também diuturnamente aplicada nessa seara jurídica, é, certamente, o principal objetivo deste trabalho.


2. A COMPREENSÃO DA BOA-FÉ OBJETIVA.

Não existe, no Direito Civil e no Direito Administrativo, descrição normativa que aponte o exato conteúdo da boa-fé objetiva, possibilitando sua aplicação concreta pelas regras tradicionais da subsunção da moldura fática à norma abstrata.

Mas essa aparente lacuna nem de longe contribui para negar a esse instituto jurídico um espaço real de atuação e eficácia.

É preciso realçar, antes de mais nada, o relevante avanço verificado nos modelos jurídico-normativos, representado pelo abandono do monopólio e primazia do padrão formalista e positivista que impregnava os ordenamentos jurídicos do século XIX, com força até final da Segunda Guerra Mundial, e pela inauguração de um sistema aberto de produção legislativa.

No modelo preponderante em épocas passadas, buscava-se o esgotamento regulatório do ordenamento jurídico, de tal maneira que se tinha como único Direito a ser aplicado aquele descrito na lei emanada do órgão legislativo. Havia uma fé na codificação e na ciência pura do Direito e um realce no papel do Poder Legislativo, em contraponto a uma desconfiança do Poder Judiciário.

Essa última postura, é bom frisar, germinava do processo revolucionário que se desdobrou contra o ancient regime, no século XIX, em que conquistaram os revolucionários postos nos órgãos encarregados da feitura das leis, ao mesmo tempo em que a nobreza ainda preponderava nos lugares de decisão das cortes judiciais.

As leis e normas nesse contexto criadas eram caracterizadas como sistema fechado, de subsunção imediata, sem que se permitisse a interferência de valores filosóficos, sociais e econômicos. A função do Judiciário se resumia em declarar o Direito, configurando a "a boca da lei", no dizer de Montesquieu.

Toma espaço, então, especialmente a partir da Segunda Grande Guerra, o sistema aberto de produção legislativa, caracterizado pela crença na incompletude do sistema jurídico, pela abertura para influxos de ordem valorativa e pela preponderação da jurisprudência do caso concreto.

Nesse regime, tem especial lugar a técnica das cláusulas gerais. Estas se constituem em enunciados normativos de caráter intencionalmente vago, aberto ou fluido, de modo que sua aplicação no caso posto a exame se faz possível mediante invocação de conceitos integradores e valorativos da ordem jurídico-constitucional, como a dignidade humana, a solidariedade social e a igualdade substancial.

Nas palavras de GUSTAVO TEPEDINO, eminente civilista contemporâneo, as cláusulas gerais são "normas que não prescrevem uma certa conduta mas, simplesmente, definem valores e parâmetros hermenêuticos. Servem assim como ponto de referência interpretativo e oferecem ao intérprete os critérios axiológicos e os limites para aplicação das demais disposições normativas". [01]

Conforme, também, preleciona JUDITH MARTINS-COSTA, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, "as cláusulas gerais constituem o meio legislativamente hábil para permitir o ingresso, no ordenamento jurídico, de princípios valorativos, expressos ou ainda inexpressos legislativamente, de standards, máximas de condutas, arquétipos exemplares de comportamento, das normativas constitucionais e de diretivas econômicas, sociais e políticas, viabilizando a sua sistematização no ordenamento positivo". [02]

Assinala, ainda, a jurista gaúcha que, por veicularem as cláusulas gerais uma linguagem de tessitura intencionalmente aberta e fluida, elas conferem ao magistrado aptidão para desenvolver normas jurídicas "mediante o reenvio para elementos cuja concretização pode estar fora do sistema; esses elementos, contudo, fundamentarão a decisão, motivo pelo qual não só resta assegurado o controle racional da sentença, como, reiterados no tempo fundamentos idênticos, será viabilizada a ressistematização desses elementos no interior do ordenamento jurídico". [03]

CRISTIANO CHAVES DE FARIAS e NELSON ROSENVALD apontam o benefício da mobilidade do sistema decorrente das cláusulas gerais, por permitir a oxigenação do sistema jurídico sem a necessidade de uma produção legislativa exauriente, conforme se nota ipsis verbis:

"O verdadeiro significado das cláusulas gerais reside no domínio da técnica legislativa, pois, graças à sua generalidade, torna-se possível captar um vasto grupo de situações a uma conseqüência jurídica.

Critica-se a tipicidade que caracteriza a casuística, na medida em que a rigidez do sistema é fator de obsoletismo da norma e, por conseguinte, de inteira dependência da atuação do Poder Legislativo para a constante edição de novas previsões, o que acarreta uma inflação normativa e, muitas vezes, perda de eficácia social.

A vantagem da mobilidade da cláusula geral é fruto de sua grande abertura semântica, proporcionada pela intencional imprecisão dos termos da fattispecie – com emprego de expressões ou termos vagos -, afastando-se o risco do imobilismo, pela utilização em grau mínimo da tipicidade." [04]

Nessa exata medida, tem-se que as disposições contidas nos arts. 2º, p. único, inciso IV, e 4º, inciso II, da Lei nº 9.784, de 1999, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, e no art. 116, II, da Lei nº 8.112, de 1990, se constituem – e devem ser entendidas como - autênticas e lídimas cláusulas gerais de regência no Direito Administrativo brasileiro. Isso em decorrência de seu caráter fluido e vago que remonta a valores do sistema jurídico, conforme se confere do teor dos dispositivos retrocitados:

Art. 2º. A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.

Parágrafo único: Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de:

(...)

IV – atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé.

Art. 4º. São deveres do administrado perante a Administração, sem prejuízo de outros previstos em ato normativo:

(...)

II – proceder com lealdade, urbanidade e boa-fé;

Art. 116. São deveres do servidor: ....

(...)

II – ser leal às instituições a que servir; (negritado)

É preciso frisar que as cláusulas gerais, assim no Direito Público como no Direito Privado, detêm caráter de norma legal cogente, de eficácia vinculativa, cuja invocação para soluções concretas pode - e deve - ser feita ex-officio pelo juiz ou pela própria Administração, nas respectivas esferas de atribuições. A lição de NÉLSON NERY JÚNIOR, como a de tantos outros, deixa clara a força imperativa da boa-fé objetiva:

"Sendo normas de ordem pública, o juiz pode aplicar as cláusulas gerais em qualquer ação, independentemente de pedido da parte ou do interessado, pois deve agir ex officio. Com isso, ainda que, por exemplo, o autor da ação de revisão do contrato não haja pedido na petição inicial algo relativo a determinada cláusula geral, o juiz pode, de ofício, modificar cláusula de percentual de juros, caso entenda que assim deva agir para adequar o contrato. Assim agindo, o juiz poderá ajustar o contrato e dar-lhe a sua própria noção de equilíbrio, sem ser tachado de arbitrário" [05]

Nesses moldes, integrando a cláusula geral da boa-fé o conceito de legalidade, sob o aspecto da legitimidade e da juridicidade, deve a Administração dar-lhe aplicabilidade quando a realidade fática assim o requerer, sob pena de correção judicial ou do uso de seu poder de autotutela no que toca aos atos que pratica, anulando-os quando implicarem violação à boa-fé objetiva, conforme autorizam as Súmulas nºs 346 e 473 da STF, respectivamente:

"A Administração Pública pode declarar a nulidade de seus próprios atos"

"A Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos, ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial"

2.2. Boa-fé objetiva e subjetiva. Distinção.

É curial distinguir a boa-fé objetiva da subjetiva, até para o propósito de bem dimensionar o exato contéudo normativo da primeira delas, que mais interessa a este trabalho.

Entende-se a boa-fé subjetiva - instituto mais familiar aos operadores do Direito - como um estado psicológico do agente de estar agindo em conformidade com o Direito, ausente a consciência do caráter ilegal de seu comportamento. Trata-se de uma crença errônea e escusável, da realidade dos fatos, em suas reais características, e da lesão a direito alheio. Fala-se em boa-fé crença.

De sua parte, a boa-fé objetiva configura-se em um modelo ou regra de conduta, um standard jurídico, que se caracteriza pela atuação de acordo com determinados padrões de lisura, honestidade e correção, em que se protege a legítima confiança da outra parte envolvida na relação jurídica. Trata-se da boa-fé conduta.

Tem-se, assim, que a pessoa pode ignorar a ilicitude de sua conduta, agindo de boa-fé, e demonstrar comportamento despido da boa-fé objetiva. Diz-se, daí, que alguém pode estar agindo de boa-fé (subjetiva), mas não segundo a boa-fé (objetiva).

Esclarecem a respeito NELSON ROSENVALD e CRISTIANO CHAVES DE FARIAS:

"Esse dado distintivo é crucial: a boa-fé objetiva é examinada externamente, vale dizer, a aferição dirige-se à correção da conduta do indivíduo, pouco importando a sua convicção. Não devemos observar se a pessoa agiu de boa-fé, porém de acordo com a boa-fé. Ou seja: há de avaliar-se qualquer comportamento em conformidade com padrões sociais vigentes, pouco importando o sentimento que animou o agente. O contrário da boa-fé objetiva não é a má-fé, mas ausência da boa-fé. De fato, o princípio da boa-fé encontra sua justificativa no interesse coletivo de que as pessoas pautem seu agir pela cooperação e lealdade, incentivando-se o sentimento de justiça social, com repressão a todas as condutas que importem em desvio dos parâmetros de honestidade e retidão." [06]

Relevante gizar, nesse compasso, que a noção de boa-fé objetiva não se contrapõe à de má-fé, mas à de falta de boa-fé, sendo que a constatação de qualquer intenção maliciosa, por parte do agente, voltada para a burla da Lei e do Direito, mais se contrasta com o postulado da boa-fé subjetiva.

Cabe aludir, ademais do que se disse, às manifestações dos juristas EDILSON PEREIRA NOBRE JÚNIOR e JOSÉ GUILHERME GIACOMUZZI, que bem elucidam as diferentes concepções da boa-fé, especialmente no ponto em que explicitam a repercussão da boa-fé subjetiva para o Direito Administrativo Punitivo, respectivamente:

"Portanto, a boa-fé é valorada, também no direito administrativo, ora como padrão de conduta, a exigir dos sujeitos do vínculos jurídico atuação conforme à lealdade e à honestidade (boa-fé objetiva), ora como uma crença, errônea e escusável, de uma determinada situação (boa-fé subjetiva).

A primeira hipótese alcança maior influência no terreno aplicativo, sendo de grande valia no concernente aos atos e contratos administrativos, procedimento administrativo, serviços públicos, atividade reguladora e na responsabilidade estatal na intervenção sobre a ordem econômica. Diferentemente, a boa-fé em sua vertente psicológica é suscetível de um mais restrito emprego, sendo de valia quanto às sanções administrativas e em algumas relações entre o Estado e seus servidores." [07]

"... ajuda muito, na busca do conteúdo da norma, a distinção entre boa-fé objetiva e boa-fé subjetiva. É que, ao invocarmos aquela, algo de essencial à compreensão do tema exsurge: a desnecessidade de investigação de eventual elemento psicológico do agente; ou seja, a boa-fé objetiva prescinde de qualquer consideração subjetiva ou intencional do agente. O ato administrativo que fere a boa-fé objetiva é ato da Administração, pouco importando de quem partiu e quais suas intenções. O comportamento administrativo, despessoalizado, deve ser conforme a boa-fé objetiva. É com esse sentido que aceito a distinção "objetivo" x "subjetivo".

A "parte" subjetiva do conteúdo da moralidade administrativa é, como já se mencionou, o dever de probidade administrativa (cf. item t, infra). Da violação desse dever exsurge, como se verá no último item do trabalho, o ato ilícito (não-penal) de improbidade administrativa, entre nós regulado pela LIA (Lei 8.429, de 1992), a qual prevê, sempre, responsabilidade subjetiva ao agente – pessoa individuada, física, não mais o ente público Administração, pessoa jurídica – administrativo desonesto. Aqui, e em consonância com o § 6º do art. 37 da Constituição Federal de 1988, a responsabilidade pessoal e subjetiva do agente só se dá em caso de dolo ou culpa stricto sensu." [08]

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2.3. Bases constitucionais. A boa-fé como princípio implícito. A força normativa dos princípios.

A boa-fé constitui-se em princípio constitucional implícito, deduzido e entendido do sistema de valores adotado pela Carta Magna, particularmente dos postulados constitucionais da dignidade humana (art. 1º, III), da solidariedade social (art. 3º, I), da segurança jurídica (art. 5º, XXXVI) e, no que concerne particularmente ao Direito Administrativo, da moralidade (art. 37, caput).

Antes, porém, de palmilhar na investigação do texto constitucional para o fim de extrair-lhe o postulado da boa-fé objetiva, apresenta-se crucial traçar, de forma sucinta, a atual compreensão da Ciência Jurídica acerca da eficácia normativa dos princípios, de molde a apontar-lhe a força de atuação jurídica.

Na lição de Paulo Bonavides, a evolução dos princípios é notada em três fases de sua juridicidade [09]. Na primeira, observa-se a escola jusnaturalista para a qual os princípios eram destituídos de normatividade, haja vista terem sítio não no sistema jurídico mas fora dele – Deus ou outra fonte. Na fase positivista, da escola da Exegese, os princípios assumiam eficácia apenas integrativa ou subsidiária dos códigos de lei. Chegando ao pós-positivismo, os princípios "perdem sua condição meramente acessória e secundária de pautas programáticas – carentes de normatividade -, para converterem-se em pedestal normativo sobre o qual se assenta todo o edifício jurídico dos novos sistemas constitucionais. Os princípios devem ser tratados como direito, pois podem impor obrigações, assim com qualquer regra positivamente estabelecida". [10]

De fato, com o pós-positivismo, emerge uma nova hermenêutica constitucional, direcionada assim para as regras contidas no texto constitucional como para os valores e princípios incorporados, implícita ou explicitamente, no corpo da Carta Maior. Seu escopo primordial é de atribuir aos princípios uma eficácia normativa, com funções interpretativa, integrativa, diretiva e limitativa ou derrogatória da ordem jurídica.

O que sucede daí é uma reaproximação do Direito e da Ética, do Direito e da Moral, sem um abandono do ordenamento edificado sob os auspícios do conhecimento positivista. Assumem os princípios, nessa perspectiva, uma posição veiculadora ou sintetizadora dos valores fundamentais da ordem jurídica.

Para Luís Roberto Barroso, "a valorização dos princípios, sua incorporação, explícita ou implícita, pelos textos constitucionais e o reconhecimento pela ordem jurídica de sua normatividade fazem parte desse ambiente de reaproximação entre direito e Ética". [11]

Temos nos juristas Ronald DWORKIN e Robert ALEXY as personagens destacadas dessa novel hermenêutica.

Na obra deste último, observamos uma acurada investigação sobre a distinção entre princípios e regras, capaz de indicar sua eficácia jurídica. Para ALEXY, regras e princípios são normas por apontarem aquilo que deve ser. Não apenas uma diferença gradual de generalidade e abstração os distingue, mas também uma diferença qualitativa, pois os princípios consistem em mandados de otimização, cuja colisão é resolvida mediante a ponderação que se estabelece através de uma relação de precedência condicionada entre princípios opostos. Já as regras são normas que devem ser cumpridas ou não, ou seja, são razões definitivas do dever-ser, que se caracterizam por conterem determinações no âmbito do fático e juridicamente possível. O conflito entre regras é resolvido pela inserção de uma cláusula de exceção ou de invalidade de, pelo menos, uma das regras, tendo em vista a impossibilidade fática ou jurídica. [12]

Nessa linha hermenêutica, DWORKIN afirma que existe distinção lógica entre regras e princípios, posto que obedecem a diferentes dimensões, de forma que "ambos os conjuntos de standards apontam a decisões particulares referentes à obrigação jurídica em determinadas circunstâncias, diferindo, contudo, no caráter de orientação que dão. As regras são aplicáveis à maneira das disjuntivas", enquanto que os princípios, "nem sequer os que mais se assemelham a regras, estabelecem conseqüências jurídicas que se seguem automaticamente, quando satisfeitas as condições previstas."

Sendo assim, infere DWORKIN que os princípios atuam numa dimensão estranha à das regras, que é a dimensão do peso ou da importância. Isto significa que o intérprete, ao aplicar a norma que consigna um princípio, deve ter em conta o seu peso, podendo um mesmo princípio ser ou não aplicado num determinado caso sem perder sua validade no sistema. [13]

Exsurge da lição desses renomados juristas a técnica da ponderação de valores, princípios ou interesses, a exercer especial papel na aplicação do princípio da boa-fé objetiva, quando em conflito com outros princípios constitucionais invocados para a resolução da situação administrativa concreta.

É, pois, sob a perspectiva normativa dos princípios constitucionais, implícitos ou explícitos, com eficácia interpretativa, integrativa e diretiva da ordem jurídica, e de sua aplicação com base na técnica de ponderação dos interesses, que se passa a analisar os princípios constitucionais que afirmam e confirmam o mandamento nuclear da boa-fé objetiva.

2.3.1. Princípio da dignidade humana.

A dignidade da pessoa humana é princípio fundamental da República Federativa do Brasil, consoante o art. 1º, incisos I e III, da Constituição Federal de 1988. Em verdade, a Carta Magna brasileira, no contexto do sistema de valores e princípios nela ela incorporados, acabou por elevar a dignidade humana à condição de mais precioso bem da ordem jurídica brasileira.

Em outros termos, o reconhecimento do ser humano como postulado fundamental da ordem constitucional o colocou no centro do sistema jurídico, de tal sorte que todo o arcabouço legislativo do Estado Brasileiro, inclusive de ordem administrativa, se destina ao ser humano e à sua realização e promoção.

Recorre-se, uma vez mais, a GUSTAVO TEPEDINO para externar, em conformidade com as disposições constitucionais, a configuração da dignidade humana para a ordem jurídica:

"A prioridade conferida à cidadania e à dignidade da pessoa humana (art. 1º, I e III, CF), fundamentos da República, e adoção do princípio da igualdade substancial (art. 3º, III), ao lado da isonomia formal do art. 5º, bem como a garantia residual estipulada pelo art. 5º, § 2º, CF, condicionou o intérprete e o legislador ordinário, modelando todo o tecido normativo infraconstitucional com a tábua axiológica eleita pelo constituinte.

Com efeito, a escolha da dignidade da pessoa humana como fundamento da República, associada ao objetivo fundamental de erradicação da pobreza e da marginalização, e de redução das desigualdades sociais, juntamente com a previsão do § 2º do art. 5º, no sentido da não exclusão de quaisquer direitos e garantais, mesmo que não expressos, desde que decorrentes dos princípios adotados pelo texto maior, configuram uma verdadeira cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana, tomada como valor máximo pelo ordenamento.

Sublinhe-se a técnica legislativa – não por acaso – empregada pelo constituinte, fixando, no Título I, princípios fundamentais que, ali situados, impõem específica função aos demais direitos constitucionais, permeando todo o sistema jurídico com os valores ali indicados, expressos nos fundamentos e objetivos da República." [14]

Em outro passo, a significação da dignidade humana é apontada, de maneira sintética e elucidativa, por INGO WOLFGANG SARLET como a "qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos." [15]

Necessário dizer, na circunstância, que a ciência jurídico-administrativa há de ser revista e repensada em seus postulados fundamentais, até o ponto em que todos os demais princípios que regem esse ramo do saber jurídico, notadamente os da legalidade e da supremacia do interesse público, venham a render homenagem ao princípio fundamental da dignidade humana, e a reconhecer-lhe, ademais, a primazia no sistema normativo.

Para esse desiderato, a boa-fé objetiva, por suas nuanças jurídicas deduzidas e defendidas pela atual Ciência do Direito, desempenha precioso e irrefutável papel, posto que direcionada para a concretização da dignidade humana nas relações jurídicas efetivadas entre as pessoas, físicas ou jurídicas, incluindo-se a Administração.

NELSON ROSENVALD e CRISTIANO CHAVES DE FARIAS ensinam que, ao se tratar das relações jurídicas, é possível defini-las em dois níveis: relações afetivas e relações negociais. Naquelas, a dignidade humana da pessoa humana é concretizada no Direito Civil pela cláusula geral da comunhão plena de vida (art. 1.511 do CC). Já nas relações obrigacionais, o supremo princípio constitucional é concretizado pelas especificações da boa-fé objetiva. [16]

De fato, segundo esses autores, o princípio da boa-fé "atuará como modo de enquadramento constitucional do Direito das Obrigações, na medida em que a consideração pelos interesses que a parte contrária espera obter de uma dada relação contratual, mais não é que o respeito à dignidade da pessoa humana em atuação no âmbito negocial". [17]

Trazendo esses ensinamentos para o Direito Administrativo, não há dúvida de que a Administração Pública deve agir, no exercício de seus poderes e prerrogativas ou nas relações negociais que ela mesmo trava, com respeito à pessoa humana e o reconhecimento da necessidade de seu desenvolvimento e crescimento existencial.

Tem-se, a partir daí, que a cláusula geral da boa-fé, inserida no ordenamento administrativo, ao prever e preconizar deveres relacionados à retidão, à lealdade, ao respeito e à cooperação no trato com o outro, é tida como um importante veículo do princípio da dignidade humana.

2.3.2. Princípio da solidariedade.

Pelo inciso I de seu art. 3º., a Carta Magna de 1988 indica e prioriza, como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Além disso, convoca os destinatários das normas constitucionais, Sociedade e o Estado, à fraternidade ao perseguir a erradicação da pobreza e a marginalização, e a redução de desigualdades sociais e regionais (art. 3º., III).

Com essa premissa, a solidariedade se evidencia como fundamento da boa-fé objetiva desde quando impõe um cenário de ajuda mútua entre os atores sociais, exigindo respeito e consideração aos interesses de terceiros e impedindo comportamentos egoísticos. No Direito Administrativo, a ética solidarista substitui a idéia de sujeição à supremacia da Administração Pública por uma visão de cooperação, sendo todos, particulares e Poder Público, vistos como co-responsáveis na consecução das finalidades públicas e do bem comum.

Conforme alude NELSON ROSENVALD, o "direito de solidariedade se desvincula, então, de uma mera referência a valores éticos transcendentes, adquirindo fundamentação e a legitimidade política nas relações sociais concretas, nas quais se articula uma convivência entre o individual e o coletivo, à procura do bem comum" [18].

Ao referir-se à tarefa de conciliação dos princípios da boa-fé, da solidariedade e da dignidade humana, salienta esse renomado civilista que "o vetor axiológico da dignidade, como princípio unificante do Estado Democrático, não incide imediatamente sobre a boa-fé, mas, antes, é mediatizado pela diretriz da solidariedade, que se aproxima da boa-fé objetiva em seu grau mais próximo" [19].

Assim, é irreprochável pronunciar que a diretriz da solidariedade confirma o princípio da boa-fé, de maneira mais imediata, e se convola, ao mesmo tempo, em finalidade primordial do Estado Brasileiro e em critério interpretativo e integrativo de todo o sistema jurídico, sem exclusão do regime jurídico-administrativo.

2.3.3. Princípio da moralidade administrativa.

A incidência da boa-fé objetiva no Direito Administrativo é mais facilmente notada a partir de uma exata compreensão do conceito da moralidade administrativa.

Em verdade, as prescrições que decorrem de um e outro princípio são de tal maneira idênticas que a doutrina mais abalizada é unânime em afirmar que a boa-fé se constitui, deveras, na noção objetiva do princípio da moralidade, sendo este de espectro mais amplo.

Modernamente, entende-se que a idéia de moralidade administrativa se bifurca em duas dimensões correlatas: a primeira, de ordem subjetiva, consiste no dever de probidade e honestidade no agir administrativo; a segunda, de caráter objetivo, refere-se aos deveres de boa-fé e lealdade nas condutas públicas. Assim, segundo a doutrina corrente, o binômio probidade-honestidade insere-se no campo subjetivo da moralidade administrativa, ao passo que a idéia de boa-fé-lealdade está contida no seu âmbito objetivo.

JUAREZ FREITAS explicita que o dever de probidade e honestidade, referido em primeiro lugar, é tido como espécie ou subprincípio do princípio da moralidade administrativa, e que sua inobservância faz sujeitar o administrador às sanções da lei de improbidade administrativa:

"...consiste na proibição de atos desonestos ou desleais para com a Administração Pública, praticados por agentes seus ou por terceiros, com os mecanismos sancionatórios inscritos na Lei nº. 8.429/92. Sob a ótica da lei, ainda quando não se verifique o enriquecimento ilícito ou o dano material, a violação ao princípio da moralidade pode e deve ser considerada em si mesma, apta a caracterizar a ofensa ao subprincípio da probidade administrativa." [20]

ODETE MEDAUAR também realça o aspecto subjetivo da moralidade, ao asseverar que a probidade administrativa decorre do princípio da moralidade e se revela como um "dever de retidão, honradez e integridade de caráter que deve caracterizar a conduta e atos da Administração Pública." [21]

O Superior Tribunal de Justiça, em diversos julgados, veio corroborar essa nuança subjetiva e psicológica da moralidade administrativa, e sua vinculação com os deveres de honestidade e probidade, ao exigir a indicação da má-fé do agente público para a consubstanciação da improbidade administrativa:

"É cediço que a má-fé é premissa do ato ilegal e ímprobo. Consectariamente, a ilegalidade só adquire o status de improbidade quando a conduta antijurídica fere os princípios constitucionais da Administração Pública coadjuvados pela má-fé do administrador. A improbidade administrativa, mais que um ato ilegal, deve traduzir, necessariamente, a falta de boa-fé, a desonestidade..."

Mas a compreensão da moralidade administrativa não se limita a exigir uma postura psicológica de lisura e a honestidade no trato com a coisa pública, sendo verdadeiro, também, que esse princípio determina um conduzir dos agentes públicos e das pessoas que tratam com o Poder Público em acordo com a boa-fé e a lealdade.

Nesse entendimento, o jurista CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELO aponta, de há muito, o alcance objetivo do postulado da moralidade, ínsito no art. 37, caput, do Diploma Constitucional: "Compreendem-se em seu âmbito, como é evidente, os chamados princípios da lealdade e da boa fé, tão oportunamente encarecidos pelo mestre espanhol Jesús Gonzáles Péres em monografia preciosa." [22]

CARMEM LÚCIA ANTUNES ROCHA, ao comentar o princípio da moralidade administrativa, segue a mesma trilha do retrocitado autor: "A virtude que se pretende ver obtida com a prática administrativa moral fundamenta-se no valor da honestidade do comportamento, da boa-fé, da lealdade dos agentes públicos, e todos estes elementos estão na moralidade, como integrantes de sua essência e sem os quais não se há dela cogitar" [23].

EDÍLSON PEREIRA NOBRE JÚNIOR igualmente afirma que a boa-fé é facilmente extraída do standard da moralidade, inscrito no art. 37, caput, da Lei Máxima. Ressalta que a boa-fé, vista principalmente sob sua faceta objetiva, "timbra em exigir de ambos os partícipes da relação jurídica (de direito privado ou de direito público) comportamento leais, honestos, eqüitativos e racionais". [24]

A concluir sua monografia específica sobre o tema, JOSÉ GUILHERME GIACOMUZZI distingue, de forma precisa e acurada, as duas vertentes do princípio da moralidade, afirmando, outrossim, o esteio que esse importante postulado confere ao alcance da boa-fé objetiva no Direito Administrativo:

"Enquanto princípio jurídico, a moralidade também contém um aspecto objetivo (pouco explorado) e outro subjetivo.

No primeiro, que é em verdade o mais fecundo campo de aplicação da moralidade, ela veicula a boa-fé objetiva no campo do direito público-administrativo, exigindo um comportamento positivo da Administração e impondo a ela deveres de conduta transparente e leal. A inação administrativa pode, examinado o caso concreto, gerar ao cidadão direito subjetivo público a prestações do Poder Público ou a indenizações. A proteção à confiança legítima dos administrados é seu principal desdobramento, não havendo, em princípio, óbice para o aproveitamento dos institutos decorrentes da boa-fé objetiva desenvolvida no campo jurídico-privado aos domínios do direito público-administrativo.

No segundo aspecto (subjetivo) impõe um dever de honestidade ao administrador público, podendo-se falar em um dever de probidade, estando o ilícito – civil lato sensu – de improbidade previsto na LIA (lei de improbidade administrativo). Aqui, uma interpretação do ilícito administrativo exige formulação de princípios próprios, os quais vêm sendo tomados de empréstimo do direito penal, mas que precisam ser melhor examinados. Não obstante ter deixado de lado o enfrentamento desta questão dos princípios do ilícito de improbidade, seu caráter subjetivo é incontestável, bem como a aplicação conjunta e não-disjuntiva das sanções previstas pela LIA é corolário da correta interpretação e melhor compreensão do ilícito, sempre normativo, havendo arbítrio inconstitucional, e não discricionariedade judicial, em caso de aplicação disjunta das sanções legalmente previstas." [25]

2.3.4. Princípio da segurança jurídica.

Assim como ocorre com o princípio da moralidade, o princípio da segurança jurídica é concebido, também, em razão das dimensões de ordem objetiva e subjetiva que comportam o seu conteúdo.

O aspecto objetivo de sua natureza normativa tem implicação com os limites à retroatividade dos atos do Estado, guardando vínculo com a proteção ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada. Já sua característica de cunho subjetivo concerne à proteção à confiança das pessoas em relação ao proceder do Estado em todas as esferas de sua atuação.

Nessa senda, ALMIRO DO COUTO E SILVA, no excerto que se segue, extraído de ensaio que produziu sobre a temática em tela, põe em relevo as duas partes que integram o princípio da segurança jurídica:

"A segurança jurídica é entendida como sendo um conceito ou um princípio jurídico que se ramifica em duas partes, uma de natureza objetiva e outra de natureza subjetiva.

A primeira, de natureza objetiva, é aquela que envolve a questão dos limites à retroatividade dos atos do Estado até mesmo quando estes se qualifiquem como atos legislativos. Diz respeito, portanto, à proteção ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada. Diferentemente do que acontece em outros países cujos ordenamentos jurídicos frequentemente têm servido de inspiração ao direito brasileiro, tal proteção está há muito incorporada à nossa tradição constitucional e dela expressamente cogita a Constituição de 1988, no art. 5º., inciso XXXVI.

A outra, de natureza subjetiva, concerne à proteção à confiança das pessoas no pertinente aos atos, procedimentos e condutas do Estado, nos mais diferentes aspectos de sua atuação." [26]

Na mesma oportunidade, o ilustre doutrinador releva a posição quase unânime da doutrina em favor do entendimento de que a proteção da confiança se constitui em subprincípio do postulado da segurança jurídica. Nesse sentido, é expresso o magistério de GOMES CANOTILHO, referenciado no ensaio de que se fala:

"O homem necessita de segurança para conduzir, planificar e conformar autônoma e responsavelmente a sua vida. Por isso, desde cedo se consideravam os princípios da segurança jurídica e da proteção à confiança como elementos constitutivos do Estado de Direito. Estes dois princípios – segurança jurídica e proteção da confiança – andam estreitamente associados, a ponto de alguns autores considerarem o princípio da proteção da confiança como um subprincípio ou como uma dimensão específica da segurança jurídica. Em geral, considera-se que a segurança jurídica está conexionada como elementos objetivos da ordem pública – garantia de estabilidade jurídica, segurança de orientação e realização do direito – enquanto a proteção da confiança se prende mais com as componentes subjetivas da segurança, designadamente a calculabilidade e previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos actos." [27]

A dimensão objetiva do princípio da segurança jurídica é, de fato, sentida no ordenamento jurídico brasileiro, assim no texto constitucional como em normas infraconstitucionais que o consagram em caráter formal e explícito.

Institutos como o do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada, admitidos no art. 5º., inciso XXXVI, da Constituição, e o da prescrição, reconhecido no art. 37, § 5º, e incisos XLII e XLIV do art. 5º., acabam por confirmar, ao lado de outros, a existência do princípio em questão em nosso meio normativo.

No plano infraconstitucional, merecem destaque os artigos 2º, p. único, XIII, e 54 da Lei no. 9.784, de 1999. O primeiro, por vedar a aplicação retroativa de nova interpretação jurídica; o segundo, por estipular a decadência do direito de anular atos administrativos eivados de vícios de ilegalidade de que decorram situações favoráveis aos administrados.

Sobre ponto em exame, aduz CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO que o princípio a segurança jurídica é da essência do Estado Democrático de Direito, embora não expresso em qualquer dispositivo constitucional específico. É uma decorrência do quadro normativo avistado, eis que o Direito se propõe a ensejar uma certa estabilidade, garantindo, assim, um mínimo de certeza na regência da vida social. [28]

O aspecto subjetivo, noutro giro, muito interessa para o postulado da boa-fé objetiva e para a dedução acerca de sua imanência com o princípio constitucional da segurança jurídica. Com efeito, a garantia da manutenção das situações jurídicas consumadas, face aos atos estatais, vincula-se, em grande medida, à necessidade de respeito à confiança e à crença no comportamento assumido pela Administração, o que, em essência, está abrangido pela idéia da boa-fé objetiva.

De acordo com ANA CLÁUDIA FINGER, na dimensão da segurança jurídica a que concerne o princípio da proteção da confiança, "impõe-se ao Estado limitações na liberdade de alterar sua conduta e de modificar atos que tenham produzido vantagens para os destinatários, ainda que eivados de vícios. Atribui-se ao Estado conseqüências patrimoniais, em razão dessas alterações, em virtude da crença gerada nos beneficiários de que tais atos eram legítimos. A proteção da confiança do cidadão resulta da presunção de legitimidade que gozam os atos expedidos pelo Poder Público, impondo-se a este o dever de exarar atos em conformidade com a lei e com a Constituição" [29].

A maioria dos autores advoga a coincidência teórico-normativa entre a proteção da confiança, banda subjetiva do princípio da segurança jurídica, e o postulado da boa-fé objetiva. CRISTIANO CHAVES DE FARIAS e NELSON ROSENVALD asseveram que a boa-fé significa "a mais próxima tradução da confiança, que é o esteio de todas as formas de convivência" [30]. Por sua vez, JUDITH MARTINS-COSTA verbera que "a confiança (cum fides) adjetiva-se na boa-fé (bona fides)" [31]. De sua parte, os doutrinadores administrativistas também fazem coro em admitir a identidade entre os institutos. Consulte-se, nessa linha, em primeiro lugar, os ensinamentos de JOSÉ GUILHERME GIACOMUZZI:

"Irrefutável, no entanto, é que a proteção da confiança é um dos principais elementos materiais decorrentes da boa-fé, transcendendo, por evidente, o campo civil, e merecendo especial atenção.

(....)

Um das funções que me parece mais relevante atribuir-se à boa-fé como princípio veiculado pela moralidade do art. 37 da Constituição Federal de 1988 é justamente o mandamento de proteção à confiança enquanto elemento componente do Estado de Direito Social. A confiança, que adquirira no âmbito privado especial relevância, tem-na, na órbita pública, redobrada" [32]

Outrossim, EDÍLSON PEREIRA NOBRE JÚNIOR declara a base da boa-fé no princípio da segurança jurídica, cuja face subjetiva é a proteção da confiança:

"Não olvidar – e isto é sobremodo importante – que a exigência de boa-fé no tratamento entre Administração e administrados recolhe abrigo no princípio da segurança jurídica, do qual decorre a exigência de confiança mútua no comportamento das partes, estando consagrada, entre nós, no art. 5º., XXXVI, da CF. Essa nota bem prestigia toda uma formação histórica do princípio da boa-fé." [33]

A jurista ANA CLÁUDIA FINGER coloca a boa-fé objetiva como derivada, em uma banda, do princípio da moralidade e, na outra, do princípio da segurança:

"A boa-fé constitui, em verdade, uma parte da moralidade e uma parte da segurança jurídica; embora em alguns momentos se interpenetrem, são distintos entre si e todos guardam autonomia em face do princípio da legalidade.

Moralidade e segurança jurídica apresentam-se como círculos interconexos, sendo que a boa-fé se insere na zona de confluência dessas duas esferas. Assim, nem todo ato que afronta a moralidade afronta a boa-fé e nem todo ato que afronta a segurança jurídica afronta a boa-fé. Não obstante, ter-se-á ofensa à boa-fé ora atingindo a moralidade, ora atingindo a segurança jurídica" [34]

Colhe-se na doutrina estrangeira de JESUS GONZÁLES PÉREZ uma posição a respeito da igualdade de natureza entre a boa-fé e o princípio da confiança. Em livro de citação recorrente entre os autores nacionais que se debruçaram sobre a boa-fé no Direito Administrativo, ele afirma que "Y así lo pone de manifiesto el resumen que se ofrece a continuación del régimen jurídico del principio de la confianza legítima. Los requisitos para que opera el principio y los efectos no difieren substancialmente de los que constituyen el régimen jurídico del principio de la buena fé". [35]

Também KARL LARENZ refere-se à boa-fé como dever de não fraudar ou abusar da confiança:

"El principio de la "buena fe" significa que cada uno debe guardar "fidelidade" a la palabra dada y no defraudar la confianza o abusar de ella, ya que ésta forma la base indispensable de todas as relaciones humanas; suppone el conducirse como cabia esperar de cuantos com pensamiento honrado intervienen em el tráfico como contratantes o participado en él em virtud de otros vínculos jurídicos." [36]

Afirma-se que a confiança legítima é intrínseca à idéia de boa-fé objetiva, a ponto de consubstanciar a justificativa de incidência do dever de lealdade, motriz desta última. Só haverá o dever de lealdade onde houver confiança, seja qual for o vínculo estabelecido, de direito público ou de direito privado. A idéia de segurança jurídica, em que está inserido o mote da confiança, é abrangida, então, pelo princípio da boa-fé objetiva, que estipula a lealdade em face de uma situação estabelecida. Há que se proteger a confiança depositada no tráfego jurídico, fincando lugar, nesse quadrante, a boa-fé objetiva por preconizar o dever de não voltar-se qualquer das partes contra a situação perfeita e acaba, de que participaram, onde a fidelidade mútua se mostrou presente.

De inferir-se, portanto, que também pela via do princípio da segurança jurídica, adotado no seio da Constituição, a boa-fé objetiva se encontra fundada na nossa ordem jurídico-constitucional, o que contribui, decisivamente, para colocá-la ao lado dos demais princípios constitucionais implícitos e explícitos.

2.4. As funções da boa-fé objetiva: interpretativa, integrativa e limitativa.

As funções da boa-fé objetiva, como delineadas pela moderna ciência jurídica, nas vozes de destacados cientistas jurídicos, exercem o imprescindível papel de conferir eficácia aos vetores da lealdade e da confiança.

De uma parte, elas concorrem para que o seu conceito, pela sua fluidez e abstração, não seja posto ao esquecimento na solução das contendas e discussões jurídicas que deságuam no Poder Judiciário, ou que se colocam perante o poder de decisão da Administração Pública. De outra banda, servem para conferir maior segurança aos destinatários dos serviços judicial e administrativo, que poderão, com sua contínua aplicação, antever a postura dos órgãos estatais quanto às exigências da cláusula geral da boa-fé objetiva.

Não se olvide, igualmente, que a construção jurisprudencial do princípio da boa-fé, a partir da tríplice função que está apto a exercer, será capaz de dotá-la de sentido técnico, tornando-o menos fluido, a fim de que não sobeje apenas como referência ética e metajurídica sem qualquer concretização no plano operacional.

Dito isso, enceta-se a explanar sobre as finalidades ou funções da boa-fé objetiva.

2.4.1. Função interpretativa. A teoria da confiança.

A função interpretativa da boa-fé revela-se na necessidade de extrair das normas contratuais um significado que mais se aproxime à idéia de lealdade, confiança e cooperação esperada e exigida das partes que se relacionam juridicamente. De conseqüência, a atividade hermenêutica há que privilegiar sempre o sentido mais consentâneo com a lealdade e a honestidade entre as partes, evitando-se construir interpretações que configurem malícia ou prejuízo a uma em benefício da outra.

Tal ótica interpretativa da boa-fé se aproxima - até o ponto de se confundir - da teoria da confiança erigida para a compreensão das cláusulas contratuais.

De acordo com o art. 112 do Código Civil, a interpretação dos negócios jurídicos deve atender à intenção consubstanciada na declaração e não ao pensamento íntimo do declarante. Daí é que a doutrina mais autorizada advoga que a teoria adotada na codificação não foi a teoria da vontade, que enfoca a intenção interna das partes, nem a teoria da declaração, voltada o conteúdo expresso das declarações, mas a teoria da confiança, que se constitui num misto das duas anteriores.

A seguir a lição de NELSON ROSENVALD e CRISTIANO CHAVES DE FARIAS relativamente à questão:

"... afasta-se da teoria da vontade (em que predominava a vontade interna das partes sobre a declaração) e a teoria da declaração (pela qual prevalecia o texto do contrato, ignorando-se o aspecto psíquico das partes). A interpretação pela boa-fé prestigia a teoria da confiança, que é de certa forma um ecletismo entre as duas teorias que a precederam. O magistrado verificará a vontade objetiva do contrato, ou seja, a vontade aparente do negócio jurídico, de acordo com o que pessoas honestas e leais – do mesmo meio cultural dos contratantes – entenderiam a respeito do significado das cláusulas posta em divergência" [37]

O alcance da teoria da confiança na interpretação dos negócios jurídicos celebrados pela Administração Pública é inconteste, eis que preconiza o art. 54 da Lei nº 8.666/93 o socorro subsidiário das normas comuns do Direito Contratual para os contratos regidos pela aludida legislação. Além disso, o art. 7º, caput, da Lei da Concessões Públicas (Lei nº 8.987, de 1995), invoca a utilização do Código de Defesa do Consumidor, impregnado da idéia de boa-fé objetiva, nas relações por ela regidas.

Nada obstante, o que se defende é que a teoria da confiança há que ser também utilizada para a interpretação de todo o arcabouço normativo da Administração Pública, em seus diversos níveis, incluindo-se as leis e atos regulamentares. Ela deve ter lugar seguro entre as demais técnicas de interpretação dos atos normativos do Poder Público.

Não se pode mais conceber a hermenêutica do Direito Administrativo sob a ótica estrita da supremacia do interesse público sobre o particular e da indisponibilidade do interesse público, utilizadas de há muito na compreensão das normas de caráter administrativo. É que o dever de proteção da confiança e da boa-fé tem sede constitucional nos princípios da dignidade humana, da solidariedade, da moralidade e da segurança jurídica, sendo certo que as leis e atos normativos do Poder Públicos devem ser lidos, também, em conformidade com esses princípios, obedecida a técnica da ponderação axiológica ou de valores.

É consabido, conforme examinado, que os princípios constitucionais não se prestam apenas a orientar o legislador na feitura das leis, mas também a nortear o administrador público e o juiz nas atividades de aplicação delas, em face da consagração, em tempos atuais, de sua eficácia normativa.

EDÍLSON PEREIRA NOBRE JÚNIOR destaca, entre as funções que exercem os princípios na ordem jurídica, a de orientação do labor interpretativo:

"... os princípios auxiliam o intérprete, quando este se encontra jungido a prover de conteúdo uma regra legal, suscetível de mais de uma significação, obrigando-o a preferir o desfecho que resulta mais conforme àqueles, rechaçando a solução que menor fidelidade guarde ao seu sentido. Interessante, no particular, o que precisa Luis Prieto Sanchís: "Isso significa que entre duas interpretações, diferentes e possíveis, de uma mesma disposição, deve preferir-se aquela que resulte mais acorde com a Constituição e, sobretudo, com os princípios pela recolhidos, que, por sua generalidade, gravitam sobre o conjunto do ordenamento e resultam mais suscetíveis de projetar-se sobre quaisquer normas". [38]

No campo da legislação infraconstitucional, um importante passo para o reconhecimento da proteção da confiança como critério hermenêutico no Direito Administrativo foi dado pela Lei nº 9.784/99, ao vedar a aplicação retroativa de novo entendimento sobre as normas jurídicas que regem sua atuação (art. 2º, p. único, XIII).

Tal estipulação se funda, à toda evidência, no valor constitucional da confiança, incutida na consciência do cidadão que se beneficiou de determinado juízo defendido e aplicado pela Administração acerca das normas jurídicas regedoras da situação verificada. Voltar-se ela contra uma situação com que consentiu, sob o argumento de que o novo entendimento jurídico mais atende ao interesse público, é quebrar o dever de lealdade que deve informar as relações travadas assim pelo Poder Público como por qualquer um.

Destarte, não há dúvida de que a técnica da proteção à confiança legítima deve ser utilizada como critério hermenêutico, entre outros, dos atos, contratos, normas legais e regulamentares de cunho administrativo ou de aplicação na seara administrativa.

2.4.2. Função integrativa. Os deveres anexos.

No campo obrigacional do Direito Civil, o objeto das relações jurídicas negociais não se restringe mais à obrigação principal traduzida numa prestação de dar, fazer ou não fazer, definida pela vontade comum das partes intervenientes no tráfego jurídico.

A relação obrigacional, em sua ótica contemporânea, tem natureza complexa, envolvendo não só os deveres e prestações derivados da vontade das partes, consubstanciados no termo do contrato, mas os deveres anexos ao vínculo principal que emergem da boa-fé objetiva, sem necessária previsão no instrumento do ajuste. A obrigação é vista como um processo e seu escopo é o adimplemento das obrigações recíprocas e o bem comum das partes, segundo a ética solidarista preconizada pela Constituição da República.

Nessa análise da obrigação em uma perspectiva sistêmica, a doutrina vem prescrevendo diversos deveres de conduta, dos mais variados tipos, também chamados de deveres instrumentais, deveres laterais, deveres acessórios, deveres de proteção ou, ainda, deveres de tutela, todos calcados no ideal de lealdade e confiança no cumprimento das avenças.

Tais deveres são resumidos, pela doutrina, em três grupos distintos mas interligados pela noção de boa-fé: os deveres de proteção e segurança, os deveres de informação e transparência e os deveres de lealdade e cooperação.

Os deveres de proteção e segurança se prestam à proteção de ambas as partes contra riscos de danos à pessoa e ao patrimônio de cada qual, enquanto vigente o vínculo obrigacional (e nas tratativas preliminares e, ademais, na fase pós-contratual).

A violação a esses deveres, em muitas ocasiões, redunda em lesão a direitos da personalidade, como a integridade física e moral do contraente, caracterizando dano extrapatrimonial. Um exemplo que se levanta é o do consumidor acusado injustamente de furto em loja de departamento, por falha no sistema de alerta instalado na saída do estabelecimento. Outro exemplo é o do cliente da loja vítima de acidente com mercadorias postas em prateleiras, que desmoronaram bem ao seu lado, causando-lhe lesões corporais.

No âmbito administrativo, imagine-se a proposta de abertura de processo disciplinar contra determinado servidor, feita pelo chefe imediato sem a devida averiguação da idoneidade da notícia de irregularidade administrativa.

No campo do dano patrimonial, a jurisprudência vem entendendo que os prejuízos causados em veículos em estacionamentos oferecidos pelos estabelecimentos comerciais derivam da violação do dever de proteção e segurança com os consumidores. Tal hipótese igualmente ocorre quando o órgão público a que presta serviço determinado servidor lhe oferece o estacionamento para facilitar-lhe o acesso ao local de trabalho. Qualquer dano havido em seu veículo há que ser indenizado pela Administração, haja vista o dever de cuidar do patrimônio do servidor enquanto este executa seus serviços em prol do Poder Público.

Já os deveres de cooperação preconizam a omissão das partes da prática de atos que possam prejudicar o cumprimento da prestação que incumbe à outra. Prevêem, também, um agir pró-ativo de ambos os lados de modo a facilitar a execução de seus deveres e a assegurar seus legítimos interesses no vínculo negocial entabulado.

Conforme NELSON ROSENVALD, os deveres de lealdade e de cooperação se constituem no "mais imediato dever decorrente da boa-fé – mandamento de cooperação recíproca – impondo às partes a abstenção sobre qualquer conduta capaz de falsear o objetivo do negócio ou desequilibrar o jogo das prestações por elas consignado". [39]

Uma situação de violação ao dever de lealdade se vê em caso de requisição de servidor público para servir em outro órgão, com a garantia de que nenhum desfalque ocorreria em sua remuneração. Após certo tempo de exercício na nova repartição, a Administração vem alertar o servidor sobre desconto em seus vencimentos de quantia recebida a maior, haja vista divergência de critério normativo de cálculo do salário entre o órgão cedente e o órgão cedido. Nessas circunstâncias, não pode a Administração, sob pena de violar o dever de lealdade, concretizar a cobrança, por conta da confiança despertada no servidor quando de sua cessão, ainda que se venha a invocar o primado da legalidade.

Em outro giro, o dever de informação e esclarecimento envolve uma conduta ativa das partes de trazer para o contexto do vínculo jurídico travado todos os dados e informações que possam interessar ao fiel cumprimento daquilo que restou convencionado. Tem-se, do lado de uma das partes, a necessidade da informação e, do lado da contraparte, o acesso a essa mesma informação, de sorte que o dado guardado muito interessa para o pacto celebrado e para as legítimas expectativas dos sujeitos vinculados. Há que existir um interesse objetivamente justificado na obtenção da informação, que a diligência ordinária da parte não alcançaria.

O art. 4º, inciso IV, da Lei nº 9.784/99, traz manifestação, em sede legislativa, do dever de informação no âmbito do processo administrativo. Estipula esse inciso o dever do administrado de colaborar para o esclarecimento dos fatos objeto do feito. É certo que, embora não haja previsão expressa, também a Administração há de colaborar na elucidação da matéria fática, inclusive no que beneficie exclusivamente o administrado, tendo em conta o dever de informação originado da boa-fé.

Por óbvio, o dever de informar não alcança situações notórias, de conhecimento geral, nem aquelas que só interessam a vida privada da contraparte (ou à rotina interna do órgão público), ou, ainda, que nenhuma utilidade social ou econômica para o contrato ou vínculo jurídico pode ser antevista.

No campo do Direito Administrativo, desempenham os deveres anexos valoroso papel na persecução das finalidades e objetivos de que são incumbidos os órgãos e agentes públicos no desempenho de seu mister. Se no Direito das Obrigações a boa-fé exsurge ao lado da autonomia da vontade - esta fixadora dos deveres principais - como fonte de deveres de condutas leais, transparentes e seguras, no Direito Administrativo ela se coloca como um importante veículo de concretização do princípio da moralidade administrativa, ao lado do princípio da legalidade, que cuida de definir a vontade do administrador público.

Em outras palavras, se o princípio da legalidade vai delinear a vontade concreta da Administração e do administrador, estipulando as obrigações e direitos principais da relação jurídico-administrativa, a moralidade administrativa e seu consectário da boa-fé se encarregarão de preconizar deveres anexos de cooperação, informação e proteção independente de cominação expressa na lei, no contrato, no regulamento ou em qualquer outra fonte normativa regedora da situação apresentada.

2.4.3. Função limitativa. O abuso do direito.

A boa-fé objetiva também se presta a controlar e a limitar o exercício dos direitos subjetivos.

Recorrendo mais uma vez ao Direito Privado, temos no art. 187 do Código Civil a noção de ato abusivo quando existir violação ao primado da boa-fé. Conforme esse dispositivo, quem exerce um direito reconhecido pelo ordenamento para além dos limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes, ou em desacordo com os fins sociais e econômicos a que se destinam, também estará cometendo ato antijurídico.

Destarte, tem-se uma nova forma de antijuridicidade, distinta do ato ilícito de que cuida o art. 186 da Codificação Civil, que é baseado na idéia de culpa e na confrontação formal da conduta com o ordenamento jurídico. Ao reverso disso, para se configurar o ato contrário ao Direito a que alude o art. 187 do Código Civil, basta a inobservância de limites impostos pelos valores nele referenciados, entre eles a boa-fé, sem se indagar da intenção do agente.

Cuida-se de exercício abusivo de direitos subjetivos e demais situações jurídicas subjetivas, tais como as faculdades, ônus, deveres, poderes e prerrogativas, atuando a boa-fé como máxima de conduta ético-jurídica.

Num dos mais citados ensaios sobre o tema do abuso de direito, HELOÍSA CARPENA bem diferencia o ato abusivo do ato ilícito, de acordo com os limites violados em cada um dos casos:

"O que diferencia as duas espécies de atos é a natureza da violação a que eles se referem. No ato ilícito, o sujeito viola diretamente o comando legal, pressupondo-se então que este contenha previsão expressa daquela conduta. No abuso, o sujeito aparentemente age no exercício de seu direito, todavia, há uma violação dos valores que justificam o reconhecimento deste mesmo direito pelo ordenamento. Diz-se, portanto, que no primeiro, há inobservância de limites lógico-formais e, no segundo, axiológico-materiais. Em ambos, o agente se encontra no plano da antijuridicidade: no ilícito, esta resulta da violação da forma, no abuso, do sentido valorativo. Em síntese, o ato abusivo está situado no plano da ilicitude, mas com o ato ilícito não se confunde, tratando-se de categoria autônoma da antijuridicidade." [40]

Nessa linha de pensamento, a idéia de abuso de direito construída pela ciência do Direito Civil em muito contribui para um ideal de compreensão do Direito Administrativo sob enfoque da confluência e harmonia entre os princípios da legalidade, tão invocado na solução das contendas de Direito Administrativo, e da moralidade e boa-fé, referenciados em menor monta nessa seara.

De fato, não se pode mais conceber a prática administrativa sob o prisma estrito e preponderante da legalidade, sendo certo que, em muitas situações, tal postulado há que ceder espaço para o princípio da boa-fé e da confiança, segundo a técnica da ponderação dos interesses.

Mais adiante, em tópico específico, será procedida investigação sobre o alcance da teoria do abuso de direito no exercício das prerrogativas e poderes estatais, ocasião em que se cuidará de analisar figuras jurídicas de relevo para o Direito Administrativo, emanadas da boa-fé objetiva, como a regra do venire contra factum proprium, a surrectio, a supressio, e o tu quoque.

Sobre o autor
José Ricardo Teixeira Alves

Promotor de Justiça do Estado de Goiás, titular da 8ª Promotoria de Justiça de Luziânia-GO, com atribuições na tutela do meio ambiente e da ordem urbanística. Pós-graduado pela Universidade Cândido Mendes-RJ e pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES, José Ricardo Teixeira. A tutela da boa-fé objetiva no Direito Administrativo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1917, 30 set. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11783. Acesso em: 23 dez. 2024.

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