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Da (in)constitucionalidade da "lei seca" em dias de eleição

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Agenda 05/10/2008 às 00:00

3 DA INCONSTITUCIONALIDADE DAS RESOLUÇÕES E PORTARIAS PROIBITIVAS PRODUZIDAS POR JUÍZES DE DIREITO, SECRETARIAS DE ESTADO, CHEFES E DELEGADOS DE POLÍCIA E DA INCOMPETÊNCIA DE TAIS AGENTES.

Tomado o Estado de Minas Gerais como referência e objeto de estudo da proibição da comercialização e do consumo de bebidas alcoólicas, em locais públicos, nos dias de eleições, constata-se que o instrumento perpetuador da imposição estatal são as Resoluções baixadas pelo Chefe de Polícia do Estado, por ocasião das eleições.

No último pleito, realizado em outubro de 2006, o Chefe de Polícia do Estado de Minas Gerais baixou a Resolução n° 6928 da Polícia Civil do Estado de Minas Gerais, de 18.09.2006, que dispunha:

Resolução n° 6928 da Polícia Civil do Estado de Minas Gerais, de 18.9.2006.

Proíbe venda ou distribuição de bebidas alcoólicas e regulamenta a queima de fogos por ocasião das eleições de 2006.

O Chefe de Polícia do Estado de Minas Gerais, no uso de suas atribuições que lhe conferem o artigo 17 da Lei delegada nº 49, de 2 de janeiro de 2003, artigos 3 e 4 da Lei delegada nº 10, de 29 de janeiro de 2003 e,

Considerando a realização de eleições em 1 de outubro de 2006, em 1 turno, e em 29 de outubro de 2006, em caso de 2 turno;

Considerando a necessidade de serem adotadas medidas que concorram para a preservação da ordem pública, incolumidade das pessoas, do patrimônio e tranqüilidade do pleito;

Resolve:

Art. 1 Proibir, em todo o território estadual a venda ou distribuição, a qualquer título, de bebidas alcoólicas, desde às 04 (quatro) horas até às 21 (vinte e uma) horas do dia 1 de outubro de 2006.

Parágrafo único – Na ocorrência de eleições em segundo turno, ficam estendidas as proibições contidas no "caput" deste artigo desde às 04 (quatro) horas até às 21 (vinte e uma) horas do dia 29 de outubro de 2006.

[...] (MINAS GERAIS, 2006).

Destaca-se que o órgão "Polícia Civil do Estado de Minas Gerais" é integrante da Secretaria de Estado de Defesa Social do Estado de Minas Gerais.

Como agente impositor da proibição externada na Resolução nº 6928 da Polícia Civil do Estado de Minas Gerais, encontra-se o Chefe de Polícia, cargo hoje regido pela Lei Delegada Estadual nº101/2003 (MINAS GERAIS, 2003), que dispõe sobre a Polícia Civil, a Procuradoria Geral do estado e a Ouvidoria da Polícia. No que se refere a tal cargo, estatui o art. 1º desta lei:

Art. 1º. O "caput" do artigo 17 da Lei Delegada nº 49, de 2 de janeiro de 2003, passa a vigorar com a seguinte redação:

"Art. 17. Fica criado o cargo de Chefe da Polícia Civil, a ser provido pelo Governador do Estado, na forma do disposto no artigo 141 da Constituição do Estado, com a atribuição de dirigir o órgão autônomo Polícia Civil". (MINAS GERAIS, 2003).

De fato, o artigo 141 da Constituição do Estado de Minas Gerais (MINAS GERAIS, 1989), autoriza a criação do Cargo de Chefe da Polícia Civil, dispondo:

Art. 141. O Chefe da Polícia Civil é livremente nomeado pelo Governador do Estado dentre os integrantes, em atividade, da classe final da carreira de Delegado de Polícia. (MINAS GERAIS, 1989).

O art. 3º da Lei Delegada Estadual nº101/2003, atribuindo competências ao Chefe da Polícia Civil do Estado de Minas Gerais, estabelece que:

Art. 3º. Compete ao Chefe da Polícia Civil as atribuições cominadas ao Secretário de Estado da Segurança Pública na Lei nº 5.406, de 16 de dezembro de 1969 e legislação pertinente. (MINAS GERAIS, 2003).

O caput do art. 4º da Lei Delegada Estadual nº101, por sua vez, também prevê que:

Art. 4º. Aplica-se ao Chefe da Polícia Civil o disposto no art. 7 da Lei n° 9089, de 13 de dezembro de 1985. (MINAS GERAIS, 2003).

O mencionado art. 7º da Lei 9089/1985 estabelece:

Art. 7º. O Comandante-Geral da Polícia Militar e o Chefe do Gabinete Militar do Governador do Estado terão prerrogativas e representação de Secretário de Estado. (MINAS GERAIS, 1985).

Isto posto, conclui-se que o Chefe de Polícia é dotado das prerrogativas de Secretário de Estado. Assim sendo, competem ao detentor deste cargo as atribuições de Secretário de Estado externadas pelo art. 93 da Constituição do Estado de Minas Gerais, quais sejam:

Art. 93. O Secretário de Estado será escolhido dentre brasileiros maiores de vinte e um anos de idade no exercício dos direitos políticos.

§1º - Compete ao Secretário de Estado, além de outras atribuições conferidas em lei:

I – exercer a orientação, coordenação e supervisão dos órgãos de sua Secretaria e da entidades da administração indireta a ela vinculadas;

II – referendar ato e decreto do Governador;

III – expedir instruções para a execução de lei, decreto e regulamento;

IV – apresentar ao Governador do Estado relatório anual de sua gestão, que será publicado no órgão oficial do Estado;

V – comparecer à Assembléia Legislativa, nos casos e para os fins indicados nesta Constituição;

VI – praticar os atos pertinentes às atribuições que lhe forem outorgadas ou delegadas pelo Governador do Estado.

§2º - Nos crimes comuns e nos de responsabilidade, o Secretário será processado e julgado pelo Tribunal de Justiça e, nos de responsabilidade conexos com os do Governador do Estado, pela Assembléia Legislativa.

§3º - O Secretário de Estado está sujeito aos mesmos impedimentos do Deputado Estadual, ressalvado o exercício de um cargo de magistério. (MINAS GERAIS, 1989).

Dentre as atribuições dos Secretários de Estado e, consequentemente, do Chefe da Polícia Civil, encontra-se no inciso III a competência para expedir instruções para a execução de lei, decreto ou regulamento. Tal atribuição é decorrente do Poder Regulamentar da Administração, à qual compete criar atos normativos de natureza derivada com vistas à complementação da lei. Não é lícito ao Chefe de Polícia criar, restringir, modificar ou extinguir direitos e obrigações, somente incumbindo a ele, como detentor do Poder regulamentar, complementar lei preexistente e que o autorize a tanto.

Conforme a Lei Delegada Estadual nº112/2007 (MINAS GERAIS, 2007), a Polícia Civil do Estado de Minas Gerais é órgão integrante da Secretaria de Estado de Defesa Social, que por sua vez é integrante do Poder Executivo Estadual. Portanto, a conduta proibitória disposta na Resolução nº 6928 da Polícia Civil do Estado de Minas Gerais tem sido perpetrada pelo Poder Executivo através de atos normativos de natureza derivada, em ação contrária às bases do Estado Democrático de Direito, haja vista o fato de que:

Só por meio das espécies normativas devidamente elaboradas conforme as regras do processo legislativo constitucional, podem-se criar obrigações para o indivíduo, pois são expressão da vontade geral. (MORAES, 2004, p.71).

As resoluções administrativas não se encontram no rol das espécies normativas constitucionais, já tratado, nem se apresentam entre as espécies normativas previstas na Constituição Estadual de Minas Gerais (logicamente, derivadas que são da Constituição da República). Entretanto, tais atos administrativos prosseguem atuando como se lei fossem. Não bastasse a incompetência formal, evidencia-se a incompetência do agente produtor da proibição.

Não obstante, o descumprimento das resoluções administrativas tem ensejado o errôneo entendimento de transgressão ao art. 330 do Código Penal, qual seja:

Art. 330. Desobedecer a ordem legal de funcionário público:

Pena – detenção de 15 (quinze) dias a 6 (seis) meses, e multa. (BRASIL, 1940).

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A referida sanção não encontra justa aplicação, uma vez que funcionário público, seja ele Secretário de Segurança Pública ou da Defesa Social, Chefe da Polícia Civil ou Delegado de Polícia não é competente para tipificar determinado ato como crime. Além disso, a ordem deve ser legal, ou seja, a ordem dirigida a outrem, para que obedeça, deve ter o respaldo da lei e de lei preexistente. Pressuposto do crime previsto no art. 330 do Código Penal Brasileiro é a legalidade do ato a ser praticado pelo funcionário público. O agente que exara a ordem deve ter competência para tal definida por lei, sob pena, logicamente, de ilegalidade e invalidade de seu ato. A proibição do comércio e consumo em locais públicos de bebidas alcoólicas em ocasião de pleito eleitoral não tem previsão legal e, como tratado anteriormente, as Constituições, Federal e Estadual, não atribuíram competência aos Secretários de Estado, Chefes de Polícia e Delegados de Polícia para criar modalidades criminosas.

Situação análoga, mas em sentido inverso, ocorre com as Portarias produzidas por Juízes Eleitorais, que pautados no exercício do Poder Regulamentar e baseados na atribuição de "cumprir e fazer cumprir as decisões e determinações do Tribunal Superior e do Regional" e "fazer as diligências que julgar necessárias à ordem e presteza do serviço eleitoral", previstas, respectivamente, nos incisos I e IV do art. 35 do Código Eleitoral (BRASIL, 1965), baixam determinações em forma de Portaria com conteúdo típico de lei. Os descumpridores das determinações estariam sujeitos às penas do art. 347 do Código Eleitoral Brasileiro (BRASIL, 1965), o qual dispõe:

Art. 347. Recusar alguém cumprimento ou obediência a diligência, ordens ou instruções da Justiça Eleitoral ou pôr embargos à sua execução:

Pena – detenção de 3 (três) meses a 1 (um) ano e pagamento de 10 (dez) a 20 (vinte) dias-multa. (BRASIL, 1965).

Ao relacionar a pena prevista no art. 347 do Código Eleitoral Brasileiro às condutas de comercialização e consumo, em locais públicos, de bebidas alcoólicas em dias de eleição, encontra-se o Juiz Eleitoral legislando sob o pretexto de usufruto de competência a ele designada pela legislação eleitoral, bem como pelo Poder Regulamentar, ou seja, procede, o Juiz, à criação de uma norma penal. Considera, com isso, a comercialização de bebidas alcoólicas e seu consumo em locais públicos durante a realização do pleito como uma conduta típica, ilícita e culpável. Usurpa, desta forma, o Juiz Eleitoral, competência privativa da União, uma vez que, segundo o entendimento do art. 22 da Constituição da República:

Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:

I – direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho.

[...]. (BRASIL, 2006).

Tendo em vista que não há no Código Penal nem no Código Eleitoral norma incriminadora da conduta descrita como "comercializar ou consumir, em locais públicos, bebidas alcoólicas em dias de eleição", não há que se falar em possibilidade de regulamentação da medida pelo Juiz Eleitoral através de Portaria, uma vez que a regulamentação exige a preexistência da Lei e, em se tratando de direito material de âmbito penal e eleitoral, tal medida só poderia ter sido instituída pela União, por meio do devido processo legislativo, culminando em criação de Lei proibitória da conduta em questão. Evidente o caráter penal da determinação baixada pelo Juiz Eleitoral, insubsistente é a conexão da conduta com o art. 347 do Código Eleitoral, haja vista não serem admitidas no Direito Penal Brasileiro analogia e interpretação extensiva da norma, conforme entendimento de Zaffaroni e Pierangeli:

Se por analogia, em direito penal, entende-se completar o texto legal de maneira a estendê-lo para proibir o que a lei não proíbe, considerando antijurídico o que a lei justifica, ou reprovável o que ela não reprova ou, em geral, punível o que não é por ela penalizado, baseando a conclusão em que proíbe, não justifica ou reprova condutas similares, este procedimento de interpretação é absolutamente vedado no campo da elaboração científico-jurídica do direito penal. E assim é porque somente a lei do Estado pode resolver em que casos este tem ingerência ressocializadora afetando com a pena os bens jurídicos do criminalizado, sendo vedado ao juiz "completar" as hipóteses legais. Como o direito penal é um sistema descontínuo, a própria segurança jurídica, que determina ao juiz o recurso à analogia no direito civil, exige aqui que se abstenha de semelhante procedimento. (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2002, p.173).

a) em princípio rejeitamos a "interpretação extensiva", se por ela se entende a inclusão de hipóteses punitivas que não são toleradas pelo limite máximo da resistência semântica da letra da lei, porque isso seria analogia. (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2002, p.176).

À luz destas considerações, as ordens expedidas pelos Juízes Eleitorais com o conteúdo da proibição da venda e consumo de bebidas alcoólicas em dias de pleito extrapolam o Poder Regulamentar e as atribuições das Portarias.

Em suma, as atribuições conferidas pelo inciso I e IV do art. 35 do Código Eleitoral Brasileiro não permitem ao Juiz Eleitoral a criação de modalidade criminosa e a intervenção na esfera de direitos dos indivíduos sob pretexto de manter a ordem social com fulcro no Poder Regulamentar, uma vez que inexiste dispositivo estritamente legal instituidor da proibição da comercialização e do consumo de bebidas alcoólicas, em locais públicos, nos dias de realização de pleito. Tampouco pode o Juiz Eleitoral estender sua interpretação e julgar que o descumprimento da ordem externalizada em Portaria caracteriza o crime previsto no art. 347 do Código Eleitoral, haja vista o fato de que os Princípios constitucionais da Legalidade e da Segurança Jurídica inadmitem, em matéria penal, o uso da analogia e da "interpretação extensiva" para a caracterização de delito.

Inconstitucionais, desta forma, as disposições proibitivas impostas nos dias de eleições, referentes ao comércio e consumo, nos locais de uso público, de bebidas alcoólicas, via Portarias e/ou Resoluções. Tal caráter discrepante da Constituição se visualiza tanto quanto aos agentes impositores, que não são legitimados para criar modalidades delituosas, uma vez que só à lei cabe esta função, através do devido processo legislativo e através do Poder Legislativo. Diante da incompetência dos Chefes de Polícia, dos Juízes Eleitorais, dos Delegados de Polícia e dos Secretários de Estado para expedir Leis, ao editarem resoluções e portarias com o conteúdo proibitório em estudo agem além de suas atribuições legais, usurpam competência conferida ao Poder Legislativo pela Constituição, ignoram a competência exclusiva da União para legislar sobre matéria penal e extrapolam os limites do Poder Regulamentar da Administração.


4.A PROIBIÇÃO DA COMECIALIZAÇÃO E CONSUMO, EM LOCAIS PÚBLICOS, DE BEBIDAS ALCOÓLICAS EM DIAS DE ELEIÇÃO E O EXERCÍCIO DO PODER DE POLÍCIA.

Tem se justificado a proibição da comercialização e consumo, em locais públicos, de bebidas alcoólicas em dias de eleição por meio de Resoluções e Portarias, como exercício do Poder de Polícia.

Conforme ditames do art. 78 do Código Tributário Nacional (Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966), o Poder de Polícia consiste em:

Atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividade econômicas dependentes de concessão ou autorização do poder público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.

Parágrafo único. Considera-se regular o exercício do poder de polícia quando desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com observância do processo legal e, tratando-se de atividade que a lei tenha como discricionária, sem abuso ou desvio de poder (BRASIL, 1966).

No que concerne a este Poder da Administração, José dos Santos Carvalho Filho entende que:

A expressão poder de polícia comporta dois sentidos, um amplo e um restrito. Em sentido amplo, poder de polícia significa toda e qualquer ação restritiva do Estado em relação aos direitos individuais. Sobreleva nesse enfoque a função do Poder Legislativo, incumbido da criação do ius novum, e isso porque apenas as leis, organicamente consideradas, podem delinear o perfil dos direitos, elastecendo ou reduzindo o seu conteúdo. É princípio constitucional o de que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei" (art. 5, II, CF).

Em sentido estrito, o poder de polícia se configura como atividade administrativa que consubstancia, como vimos, verdadeira prerrogativa conferida aos agentes da Administração, consistente no poder de restringir e condicionar a liberdade e a propriedade.

[...].

Aqui se trata, pois, de atividade tipicamente administrativa e como tal, subjacente à lei, de forma que esta já preexiste quando os administradores impõem a disciplina e as restrições aos direitos. (CARVALHO FILHO, 2006, p. 64).

Acerca dos Limites do Poder de Polícia, José dos Santos Carvalho Filho afirma que:

Bem averba CRETELLA JR. que a faculdade repressiva não é, entretanto, ilimitada, estando sujeita a limites jurídicos: direitos do cidadão, prerrogativas individuais e liberdades públicas asseguradas na Constituição e nas leis. (CARVALHO FILHO, 2006, p. 73).

Em estudo sobre as características que individualizam o Poder de Polícia, José dos Santos Carvalho Filho aponta limites à Discricionariedade deste atributo da Administração:

Quando tem a lei diante de si, a Administração pode levar em consideração a área de atividade em que vai impor a restrição em favor do interesse público e, depois de escolhê-la, o conteúdo e a dimensão das limitações. (CARVALHO FILHO, 2006, p. 73).

Ainda quanto à Discricionariedade do Poder de Polícia, Hely Lopes Meirelles afirma:

Ao conceituarmos o poder de polícia como a faculdade discricionária não estamos reconhecendo à Administração qualquer poder arbitrário. Discricionariedade não se confunde com arbitrariedade. Discricionariedade é liberdade de agir dentro dos limites legais; arbitrariedade é ação fora ou excedente da lei, com abuso ou desvio de poder. O ato discricionário, quando se atém aos critérios legais, é legítimo e válido; o ato arbitrário é sempre ilegítimo e inválido; nulo, portanto. (MEIRELLES, 1995, p.163).

Observa-se (diante das citações supra) que embora dotada de discricionariedade para exercer o poder de polícia, a Administração não é soberana para tomar as medidas que julgar cabíveis para a consecução das atribuições conferidas ao exercício deste poder. Todas as medidas restritivas da liberdade e da propriedade não podem ter por base a valoração subjetiva de oportunidade e/ou conveniência da adoção destas medidas restritivas pelo eventual titular da Administração. Para que seja legítimo o Poder de Polícia, a restrição e o condicionamento das liberdades e garantias individuais devem encontrar seus fundamentos na lei.

A auto-executoriedade dos seus atos também é característica do Poder de Polícia exercido pela Administração e conforme José dos Santos Carvalho Filho:

A prerrogativa de praticar atos e colocá-los em imediata execução, sem dependência à manifestação judicial, é que representa a auto-executoriedade.

[...]

Verificada a presença dos pressupostos legais do ato, a Administração pratica-o imediatamente e o executa de forma integral. Esse o sentido da auto-executoriedade.

Outro ponto a considerar é o de que a auto-executoriedade não depende de autorização de qualquer outro Poder, desde que a lei autorize o administrador a praticar o ato de forma imediata.

[...]

Quando a lei autoriza o exercício do poder de polícia com auto-executoriedade, é porque se faz necessária a proteção de determinado interesse coletivo.(CARVALHO FILHO, 2006, p. 74).

A coercibilidade também se mostra como característica do poder de polícia e representa a imperatividade de que se revestem os atos de polícia. Quanto à coercibilidade como atributo do poder de polícia, afirma José dos Santos Carvalho Filho:

Diga-se, por oportuno, que é intrínseco a essa característica o poder que tem a Administração de usar a força, caso necessária para vencer eventual recalcitrância. É o que sucede, por exemplo, quando, em regime de greve, operários se apoderam manu militari da fábrica e se recusam a desocupá-la na forma da lei. (CARVALHO FILHO, 2006, p. 74).

Marcante é a constatação de que, conforme os teóricos mencionados, a Lei é fato gerador e limitador do exercício do poder de polícia. Disso decorre que qualquer ato que restrinja ou condicione as liberdades e garantias individuais, que não esteja calcado na lei, constitui abuso ou desvio de poder. Conforme Celso Antônio Bandeira de Mello, os atos típicos do poder de polícia têm lugar em três diferentes hipóteses:

a) quando a lei expressamente autorizar;

b) quando a adoção da medida for urgente para a defesa do interesse público e não comportar as delongas naturais do pronunciamento judicial sem sacrifício ou risco para a coletividade;

c) quando inexistir outra via de direito capaz de assegurar a satisfação do interesse público que a Administração está obrigada a defender em cumprimento à medida de polícia. (MELLO, 1999, p.572).

José dos Santos Carvalho Filho, dissertando acerca da atuação da Administração, afirma que no exercício do Poder de Polícia, esta:

Pode editar atos normativos, que têm como característica o seu conteúdo genérico, abstrato e impessoal, qualificando-se, por conseguinte, como atos dotados de amplo círculo de abrangência. Nesse caso, as restrições são perpetradas por meio de decretos, regulamentos, portarias, resoluções, instruções e outros de idêntico conteúdo. (CARVALHO FILHO, 2006, p.71).

No entanto, os atos normativos da Administração são frutos do Poder Regulamentar, e, como outrora mencionado, tal poder é:

Prerrogativa conferida à Administração Pública de editar atos gerais para complementar as leis e permitir a sua efetiva aplicação. A prerrogativa, registre-se, é apenas para complementar a lei; não pode, pois, a Administração alterá-la a pretexto de estar regulamentando. Se o fizer, cometerá abuso de poder regulamentar, invadindo a competência do Legislativo. Por essa razão, o art. 49, V, da CF, autoriza o Congresso Nacional a sustar atos normativos que extrapolem os limites do poder de regulamentação. (CARVALHO FILHO, 2006, p.44).

A restrição de direitos por meio dos atos normativos da Administração, somente se processa nos limites legais se a lei, em sua acepção estrita, objeto da resolução ou portaria, previr a possibilidade da restrição. Além disso, não pode o ato normativo derivado extrapolar os limites impostos pela lei. A função do ato normativo administrativo se restringe às disposições que a lei ensejadora de sua criação dispuser.

No que diz respeito à justificativa legal da edição das portarias e resoluções administrativas proibitórias da comercialização e consumo, em locais públicos, de bebidas alcoólicas em dias de eleição, como o exercício legítimo do poder de polícia da Administração, tal não ocorre. O exercício do Poder de Polícia tem que estar calcado na Lei, bem como a edição de atos normativos de natureza derivada, como são as portarias e resoluções administrativas, sob pena de incorrer a Administração em abuso de poder e usurpação de competência. No caso, não há lei anterior que autorize a Administração a proceder a esta restrição.

Observa-se que apesar de lógica e clara a invalidade das proposições proibitivas perpetradas pela "Lei Seca", a sociedade pouco se questiona acerca da forma como é feita a proibição e acerca da competência dos agentes elaboradores da proibição. Segue-se a determinação sem questionar sua legalidade e legitimidade. Tal se dá em virtude da dimensão cultural dominante no país, autoritária, centralizadora e antidemocrática. Atos originados de autoridades administrativas, que incidem diretamente na esfera de direitos do indivíduo, são impostos e outorgados como legítimos e válidos. Por outro lado, por temor às autoridades policiais e judiciárias ou por induzimento à errônea consciência de que o domínio dos direitos e garantias dos indivíduos encontra-se entre as atribuições destas autoridades, tais imposições arbitrárias ou são seguidas ou os "dissidentes" são injustamente apenados.

Uma resolução baixada por um delegado de polícia ou uma portaria editada por um juiz de direito coagem moralmente os indivíduos, que desconhecem os princípios nos quais se funda o Estado Democrático de Direito. Fato é que além de ilegítimas, estas determinações são autoritárias. Lançam sobre os administrados sanções e ameaças à integridade moral e física, exigindo cumprimento de uma ordem inexigível. Com a perpetração de tais práticas por parte do Poder Público, princípios basilares do Estado de Direito são desrespeitados e são negados, inconstitucionalmente, direitos e garantias individuais e coletivos.

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VERDIN, Thiago Aurelio Lomas. Da (in)constitucionalidade da "lei seca" em dias de eleição. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1922, 5 out. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11814. Acesso em: 22 dez. 2024.

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