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A paz social e os frutos da árvore envenenada

Agenda 08/10/2008 às 00:00

Em breves linhas, a teoria dos frutos da árvore envenenada surgiu como corolário da teoria das provas ilícitas, consagrada no direito penal norte-americano a partir do caso Weeks versus Estados Unidos da América (1914). De fato, a "fruits of the poisonous tree" apontava para o não-aproveitamento das provas obtidas de forma ilícita, ainda que para um fim lícito, isto é, a obtenção de prova cuja produção ocorreu em desacordo com as normas constitucionais.

Assim, a Suprema Corte entendeu pela aplicabilidade do princípio a todas as provas obtidas de forma ilícita, cuja produção restaria "contaminada", devendo ser repudiadas – nas palavras do Ministro Celso de Melo – "por mais relevantes que sejam os fatos por ela apurados, uma vez que se subsume ela ao conceito de inconstitucionalidade" (Supremo Tribunal Federal, Ação Penal nº 307, Diário da Justiça de 13/10/1995).

O Direito Penal subsidiou-se da metáfora da árvore que, estando contaminada, contaminados também estarão os seus frutos. Analisando detidamente esse raciocínio, passo a vislumbrar a aplicabilidade dessa teoria, observada através de um novo prisma, na ciência do Direito do Trabalho. Minha inspiração surgiu de uma aula-palestra, irretocável, do Juiz do Trabalho Jorge Luiz Souto Maior.

Pois bem.

Com o surgimento do modelo de Estado Social, o Estado se propôs a contrapor o antigo modelo liberal, que quase "sacralizava" princípios como o da autonomia da vontade privada e do pacta sunt servanda. Como muito bem pontua Teresa Negreiros, em um livro incomum de Direito Civil (Teoria do Contrato: novos paradigmas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006), no que batizou de "paradigma da essencialidade", "os contratos que versem sobre a aquisição ou a utilização de bens que, considerando sua destinação, são tidos como essenciais estão sujeitos a um regime tutelar, justificado pela necessidade de proteção da parte vulnerável", legitimando as intervenções estatais na autonomia privada.

Sem querer, a autora acabou por descrever, com perfeição, o contrato de trabalho que comumente vislumbramos no seio das relações sociais. Com efeito, o que percebemos é que uma das partes – o trabalhador, sujeito hipossuficiente – tem no objeto do contrato – o salário, em troca de sua força de trabalho – a única possibilidade de existência digna. Diante disso, sua vontade passa a ser viciada, ou seja, se o salário é, talvez, o único meio de sobrevivência digna do trabalhador, que opção este tem, no mundo do "capitalismo selvagem"? Trabalhar ou optar pelo desemprego e, talvez, morrer de fome? Aliado a isso, não obstante o curto espaço de tempo entre a abolição da escravatura (1888) e os dias atuais, ainda hoje persiste o trabalho escravo, como uma das chagas da sociedade moderna. Daí Ingo Wolfgang Sarlet (A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008) reafirmar "a dignidade como qualidade intrínseca da pessoa humana, irrenunciável e inalienável, constituindo elemento que qualifica o ser humano como tal e dele não pode ser destacado".

Assim, o Estado passa a adotar um modelo intervencionista e participativo, cuja finalidade maior é a de assegurar a paz social, que apenas pode ser alcançada se as condições sociais forem minimamente aceitáveis. Somado a isso, o Direito Constitucional contemporâneo, imantado pela Carta Cidadã de 1988, repousa na necessidade premente da máxima eficácia dos direitos fundamentais.

De fato, a atividade de interpretação constitucional não é atividade mecânica. Para isso – pontua com maestria o Ministro do Supremo Tribunal Federal Eros Roberto Grau – "bastaria ao intérprete ser alfabetizado". E os princípios constitucionais, em sua perspectiva e força normativa, consagram a eficácia dos direitos sociais e a vedação do retrocesso, salvaguardado no artigo 7º, "caput", da Lei Maior.

Porém, o que se vê hoje, em contraponto ao próprio Direito Civil que, contrariando postura milenar, está tornando-se humanizado, tratando temas nunca pensados naquela seara, como a mitigação da autonomia da vontade, a mitigação do pacta sunt servanda, a função social dos contratos, o princípio da boa-fé e da lealdade, etc., o Direito do Trabalho caminha em sentido diverso, preconizando aspirações liberais como a flexibilização, a terceirização, a pejotização e outras aberrações jurídicas. Muito se faz, hoje, pela inversão dos valores tradicionalmente defendidos pela ciência trabalhista, mormente a dignidade da pessoa humana do trabalhador.

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O atual presidente da ANAMATRA – Associação Nacional dos Magistrados Trabalhistas, Juiz Cláudio José Montesso, ao tratar sobre o projeto da "nova CLT" (Consolidação das Leis Materiais do Trabalho), em tramitação no Congresso Nacional, demonstra o caminhar inverso do Direito do Trabalho: "No momento em que o país passa por um dos seus maiores períodos de crescimento econômico sustentado e que representou a criação de mais de sete milhões de empregos formais, número que supera de forma abissal aqueles criados nos dez anos anteriores, causa imensa preocupação que esteja a caminhar, de forma inexplicavelmente célere, projeto de nova consolidação das leis do trabalho que, mesmo tendo como fundamento Lei Complementar que veda qualquer alteração do conteúdo das normas de proteção ao trabalho, incorpora conceitos e definições arcaicas e há muito superados pela doutrina e jurisprudência. Seus valores são os mesmos do período pré-revolução industrial, restaurando o princípio da autonomia das vontades, que nem mesmo o Código Civil admite mais. A prevalecer a nova Consolidação o que veremos será um enorme retrocesso na tutela de proteção ao trabalho em face do capital e a ruptura de toda uma jurisprudência construída em mais de meio século."

Na esteira desse raciocínio, mentalizo a teoria da árvore dos frutos envenenados no Direito do Trabalho – claro, como já disse, de prisma diverso da ciência penal. Penso, como nas palavras de Arthur Kaufmann (Rechtsphilosophie, "Filosofia do Direito". München: C. H. Bech, 1997), que "o processo tem de servir não somente à verdade e à Justiça, mas também e principalmente à paz jurídica".

E por assim pensar, entendo que qualquer violação aos direitos trabalhistas, ainda que dentro de um contrato de individual de trabalho, afeta toda a sociedade. Com efeito, o Direito do Trabalho não visa regular situações individuais, personalíssimas, mas perfaz um modelo de sociedade, de coletividade e é exatamente por isso que as violações em sede de contratação individual de trabalho atingem todo o coletivo, maculam a idéia maior de paz social e produzem ineficácia normativa e ineficácia do ordenamento jurídico – essa é a lógica do descumprimento das normas trabalhistas.

A sociedade é a própria árvore, é a raiz de tudo, é o palco onde atuam os atores sociais. E as violações trabalhistas causam impacto, destroem as próprias relações na sociedade. A partir daí, tudo fica "envenenado": a irresponsabilidade trabalhista dá azo ao caos social.

O poeta Gonzaguinha já traduzia em versos tudo o que está sendo dito: "Um homem se humilha, se castram seus sonhos/ Seu sonho é sua vida e vida é o trabalho/ E sem o seu trabalho, um homem não tem honra/ E sem a sua honra, se morre, se mata". Lembrando saudoso discurso de Hermes Lima (1946), "devemo-nos influenciar por que a Justiça do Trabalho possa vir a ser elemento indispensável da paz social de que o país precisa, de que todas as nações necessitam, neste momento de profundas transformações econômicas; se não se tiver capacidade para resolver os graves problemas de transformação da ordem econômica, existentes no mundo, não haverá dúvida de que esses problemas virão a ser solucionados pela violência; sem decisão é que eles não ficarão".

Nesse contexto, todos nós somos culpados. É dever do Estado, na lógica da dimensão objetiva dos direitos fundamentais, criar e gerar políticas públicas que viabilizem o progresso social; os juízes têm responsabilidade social e dever – porque juraram cumprir e fazer cumprir a Constituição da República – em dar máxima efetividade aos direitos sociais fundamentais, rechaçando o retrocesso social; os servidores públicos, que têm na Lei nº 7.347/1985 (Lei da Ação Civil Pública) o dever (e não a faculdade) de provocar a iniciativa do Ministério Público, ministrando-lhe informações sobre fatos que constituam objeto da ação civil e indicando-lhe os elementos de convicção (José dos Santos Carvalho Filho chega a falar em responsabilização do servidor omisso, nos termos da Lei nº 8.429/1992).

Assim, ganha a teoria da árvore dos frutos envenenados maior intimidade com a idéia de paz social, instando a sociedade brasileira a, verdadeiramente, viver uma revolução. Uma revolução como nunca houve. Uma revolução legítima, legal, democrática, de inserção social, onde cada um de nós passa a exercer, verdadeiramente, o papel que se espera de um cidadão digno e sensível com os problemas sociais.

Enquanto não houver uma total restruturação dos papéis que cada um de nós desempenha na sociedade, abandonando-se a aparência e abraçando a idéia de verdadeira efetividade, nada mais poderá ser feito. Aliás, poderá sim: o retrocesso social, a perda da dignidade da pessoa humana do trabalhador, a prática desumana do trabalho escravo e outras chagas que insistem em permanecer entre nós.

Nada mais apropriado que encerrar com palavras as quais dão guisa à conclusão que penso a respeito do assunto, no dizer abalizado de Gustav Radbruch (Einführung in die Rechtswissenschaft, "Introdução à Ciência do Direito". Stuttgart: K. F. Koehler Verlag, 1952), com precisão única: "Mais importante do que o litígio é a organização da paz jurídica. Até agora consideramos a jurisdição muito mais como solução de conflitos do que como prevenção de litígios. Fizemos muita cirurgia e pouca higiene jurídicas".

Sobre o autor
Igor Zwicker Martins

Servidor Público Federal do Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região, Assistente da Excelentíssima Desembargadora Federal do Trabalho Odete de Almeida Alves. Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho (UCAM), Economia do Trabalho e Sindicalismo (Unicamp) e Gestão de Serviços Públicos (Unama).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINS, Igor Zwicker. A paz social e os frutos da árvore envenenada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1925, 8 out. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11829. Acesso em: 2 nov. 2024.

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