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Rui Barbosa: o triunfo do direito na luta pela democracia

Agenda 15/11/2008 às 00:00

Eleito pela revista Época como a maior personalidade brasileira de todos os tempos [01], e alguns atrás pela revista Isto É como o maior jurista do século XX [02], mas, graças à desatenção de muitos, conhecido mais como político e jornalista, o baiano Rui Barbosa, nascido em 1849, merece o respeito não só de todo cidadão brasileiro, mas, obrigatoriamente, do acadêmico de Direito e do advogado, pois sua combatividade, vigorosa, mas nunca desleal, traduzem a altivez, o denodo e a proficiência que devem ser inerentes a quem pretende ser defensor de interesses alheios. E se existe uma fase da vida em que somos mais suscetíveis de adotarmos modelos, como Rui o é, esta, por excelência, é a juventude.

Apesar dos oitenta e cinco anos de sua morte, seu legado, mesmo sendo ainda pouco difundido, suplanta as passagens mais desabonadoras de sua vida, como o Encilhamento (alcunha pela qual ficou conhecido o plano econômico de sua autoria que desestabilizou as finanças da República recém-criada) e as campanhas contra a vacinação obrigatória de Oswaldo Cruz e pela destruição dos registros da escravidão. Obra viva, talvez contemporânea, gerada ainda na incongruência da Monarquia, e que avançou pela conturbada e oligárquica República Velha, temos em Rui uma cultura universal, que suplanta os tecnicismos jurídicos frios e insensíveis, e que redundaram sempre em análises ricas sobre os problemas do Brasil, suas instituições e realidade social, com o olhar de quem não só aponta as falhas, mas também propõe soluções.

Defensor do Federalismo e do Constitucionalismo, Rui Barbosa foi buscar nos Estados Unidos [03] o mais acabado e perfeito modelo republicano então em vigor no mundo, e que serviu como base para os trabalhos constitucionais que redundaram na Carta Magna de 1891, da qual foi principal revisor [04]. Entretanto, sua visão não conseguiu superar os conchavos e os caudilhos, sempre denunciados na imprensa e nas tribunas como os grandes algozes da nação, subjugando as instituições públicas aos seus interesses, cerceando as garantias civis, transformando a República, ao final, de bandeira de liberdade em estátua rígida, insensível e manipuladora da ditadura. Nosso "federalismo centralizador" [05], herança deste século passado de agitações políticas muitas vezes insidiosas, permanece ainda no aguardo de quem compreenda a lição de Rui quanto à necessidade de um Judiciário pleno e independente como princípio de governabilidade e respeitos recíprocos entre governantes e governados.

Mas Rui Barbosa não foi apenas gigante na defesa da correta observância da Constituição pelas instituições republicanas. Contemporâneo de um período em que o poder era constantemente ferramenta de opressão e arbítrio, Rui lutou arduamente contra o desrespeito aos direitos políticos de personalidades distintas e contra o abuso das liberdades individuais dos mais simples. Conforme discorre Ovídio A. Baptista da Silva [06], citando Castro Nunes, a partir do trabalho de Rui Barbosa, valendo-se dos interditos proibitórios para combater os tão comuns abusos de autoridade, luta continuada pela extensão conferida pelo Supremo Tribunal Federal ao Habeas Corpus em idênticas situações [07], desenvolveu-se a figura do Mandado de Segurança, instituto genuinamente brasileiro, cuja relevância dispensa maiores comentários.

O relevo de sua militância no Direito Internacional, mesmo considerando a consagrada participação no Congresso de Haia, em 1907, quando foi voz das nações subdesenvolvidas, também deve ser destacada, inclusive com a por poucos conhecida colaboração, junto com outros nomes de relevo, na formalização do Tratado de Petrópolis (aquisição, pelo Brasil, em 1902, junto à Bolívia, do território do atual Estado do Acre) [08], um dos grandes feitos do Barão de Rio Branco, nosso maior diplomata. Dentro de suas obras completas, diversos estudos se dedicam a analisar sistemas jurídicos estrangeiros, bem como questões atinentes. Considerando que o interesse pelo Direito Internacional é recente, pelo menos na maioria das Faculdades de Direito, colidindo com sua importância prática nestes dias de globalização, digno de nota registrar que há um século Rui Barbosa tratava este ramo com a seriedade e o esmero que muitos, até os dias de hoje, ainda recusam em lhe emprestar [09].

Saindo da seara do Direito Público e ingressando na do Direito Privado, nenhum estudo sobre o Código Civil de 1916 pode deixar de mencionar a persistente crítica do Senador Rui Barbosa sobre o projeto do professor cearense Clóvis Beviláqua, durante sua tramitação no Congresso, por quase duas décadas. Em que pese certas vozes terem desde cedo levantado hipóteses de que o despeito pela escolha do quase desconhecido jurista para a tarefa de elaborar tão importante codificação o tenha inspirado em sua missão legislativa, não se pode desmerecer sua contribuição, leia-se a apaixonada defesa da correição de linguagem, o que apenas serviu para consolidar a obra de um dos nossos maiores civilistas.

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Nenhuma de todas as personalidades de Rui foi mais apaixonada que o advogado, conforme já adiantamos acima, na defesa das causas que angariavam sua simpatia. E mesmo nas contrárias: uma das mais marcantes passagens da História da Advocacia, em especial da ética profissional, se encontra na resposta formulada ao grande Evaristo de Moraes, em 1911, onde este o consultava sobre o dilema de defender um militar partidário do Marechal Hermes da Fonseca (rival de Rui e do grupo de Moraes na Campanha Civilista de 1910), em um infamante crime passional. Publicada posteriormente sob o título de "O Dever do Advogado" , a correspondência de Rui Barbosa endereçada àquele que foi um dos maiores advogados criminalistas que o Brasil já teve, traduziu de maneira tão determinante qual o princípio de atuação do advogado criminalista que até hoje o preceito esta inserido em nosso Código de Ética e Disciplina, em seu art. 21: deve o advogado se prestar à defesa de seu cliente independentemente de seu juízo pessoal sobre o caso. O militar, personagem principal do crime que foi noticia corrente no Rio de Janeiro naquele longínquo ano, acabou absolvido.

Depois de longos anos dedicados à luta por causas tão dependentes entre si, como o abolicionismo, a democracia, o federalismo e a liberdade, já antevendo sua partida desta vida, Rui escreve seu "testamento", na forma de discurso para os formandos da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, turma de 1920, a conhecida "Oração aos Moços". Impossibilitado, devido a seu estado de saúde, de proferir pessoalmente suas palavras àquela geração que deixava os bancos das Arcadas, a leitura, pelos alunos, do emocionado texto do grande mito da advocacia e do civismo, marcou para sempre não só os presentes, mas todos das gerações vindouras que enxergam, no trabalho forense, o cumprimento de uma missão destinada a espíritos elevados, e que somente pode ser alcançado com persistente e sincero trabalho. A lição ficou, e muitos são os que a cumprem, todos os dias, nos corredores das faculdades, nos escritórios de advocacia e nos edifícios do Judiciário.

Em síntese geral, poucas foram as grandes questões políticas e jurídicas das décadas que antecederam a morte de Rui Barbosa, ocorrida em 1923, que não contaram com sua preciosa participação ou opinião. Muitos são os juristas e filósofos cuja obra merecem a atenção dos profissionais e estudiosos da área jurídica, mas Rui, sem demérito a ninguém, possui um conjunto de palavras e atitudes que aborda, na teoria e na prática, todos os grandes temas aos quais se expõe o operador das ciências jurídicas, razão pela qual o advogado de qualquer idade, especialmente o jovem, e o estudante de Direito, devem lhe homenagear, não só dizendo que foi um grande brasileiro, quando passante por logradouro batizado com seu nome, mas sim lendo e refletindo a partir de seus discursos, artigos e livros, bandeiras permanentemente desfraldadas contra o arbítrio e a intolerância.


Referências Bibliográficas:

Curso de Processo Civil. Vol. 2. 3ª ed. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo. 1998.

Barbosa, Rui. O Congresso e a Justiça no Regime Federal, in Pensamento e Ação. Edição Eletrônica da Fundação Casa de Rui Barbosa. Rio de Janeiro. P. 419/442. Endereço Eletrônico: www.casaruibarbosa.gov.br.

___________. O Supremo Tribunal Federal na Constituição Brasileira, in Pensamento e Ação. Edição Eletrônica da Fundação Casa de Rui Barbosa. Rio de Janeiro. Pg. 157/193. Endereço Eletrônico: www.casaruibarbosa.gov.br.

Boechat Rodrigues, Lêda. História do Supremo Tribunal Federal. Tomo III/1910-1926. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1991, p. 110.

Leal, Hamilton. História das Instituições Políticas do Brasil. Edição do Ministério da Justiça, a partir da última edição de 1962. Brasília. 1994.


Notas

  1. Revista Época, n.º 434, 11.09.2006, p. 58.
  2. http://www.terra.com.br/istoe/biblioteca/brasileiro/. Acesso em 13 de novembro de 2008.
  3. Eis a palavra do próprio sobre a inspiração americana para seu trabalho na Carta Magna de 1891, oração que sintetiza toda nossa moderna identidade constitucional, in Obras Completas de Rui Barbosa, V. 47, t. 3, 1920. p. 73, extraído do site www.casaruibarbosa.gov.br : "Todo o nosso regime, este regime que transplantamos dos Estados Unidos, tem como primordial o princípio da santidade suprema da Constituição, considerada como a lei a que todas as outras leis obedecem. Nessa Constituição existe uma Declaração de Direitos. São os que o art. 72 um a um particulariza. Esses direitos capitais, formulados nessas definições, são os que santificam a consciência religiosa, a expressão do pensamento, as liberdades individuais, a propriedade, a vida humana. Cada uma dessas disposições é uma lei, uma lei constitucional, inviolável a todos os poderes, estaduais ou nacionais."
  4. Em sua História das Instituições Políticas do Brasil, Edição do Ministério da Justiça, 1994, p. 372 e segs., Hamilton Leal expõe com detalhes os bastidores em torno da elaboração da primeira Constituição republicana, que veio a ser aprovada pelo Congresso em fevereiro de 1891, a partir do projeto final revisado por Rui Barbosa, concluindo o trabalho da Comissão nomeada por Decreto em 03 de dezembro de 1889, especialmente incumbida para este fim, composta por Saldanha Marinho, Américo Brasiliense, Santos Werneck, Rangel Pestana e Magalhães Castro. As influências do constitucionalismo norte-americano na Constituição evidentemente se chocariam com as idéias pouco democráticas dos presidentes representantes da "República da Espada", leia-se Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, mas lograram, ao menos na letra do texto final, suplantar impositivos ditatoriais disfarçados de lei, em que pese as críticas a institutos como o Estado de Sítio.
  5. Hamilton Leal, op. cit., pg. 390, destaca o caráter mediador de Rui Barbosa, ao lado de nomes como Campos Salles, futuro presidente (1898-1902), no intento de impedir que dois principais grupos antagônicos no Congresso Constituinte (federalistas de um lado e partidários de uma União mais forte), radicalizassem, comprometendo a governabilidade da jovem República, razão pela qual pode ser identificado um sistema constitucional híbrido, e que, apesar de suas mazelas, está profundamente assimilado em nosso país.
  6. Curso de Processo Civil, Vol. 2, Ed. RT, 3ª ed., 1998, pg. 362.
  7. Lêda Boechat Rodrigues, História do Supremo Tribunal Federal, Tomo III/1910-1926, Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1991, p. 110.
  8. Apesar de ter solicitado sua retirada da Comissão pouco antes da finalização do Tratado de Petrópolis, as reverências feitas pelo Ministro Rio Branco destacam seu trabalho ao lado de Assis Brasil, outro grande expoente da época que prestou valiosa colaboração deste litígio fronteiriço que livrou o Brasil de uma guerra inútil com a Bolívia no extremo setentrional do país.
  9. Além da aclamada passagem pela Conferência de 1907, Rui Barbosa foi nomeado Juiz da Suprema Corte de Haia em 192, recusando, porém, a incumbência; também exerceu legação diplomática de destaque por ocasião do centenário da independência da Argentina, em 1916. Tornou-se famosa sua conferência intitulada "O Dever dos Neutros", realizada na Faculdade de Direito de Buenos Aires, em julho de 1916.
Sobre o autor
Orlando Guimaro Junior

Membro consultor da Comissão de Acompanhamento Legislativo da OAB/SP. Presidente da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB/Piracicaba. Pós-graduado em Direito Contratual (PUC/SP). Sócio da Borges Neto e Barbosa de Barros – Sociedade de Advogados.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUIMARO JUNIOR, Orlando. Rui Barbosa: o triunfo do direito na luta pela democracia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1963, 15 nov. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11973. Acesso em: 15 nov. 2024.

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