DEMOCRACIA E ESPORTES. QUAL O MODELO CORRETO?
Abordamos anteriormente um famoso comercial de tênis e, nele, o homocentrismo ocidental. Um homocentrismo que será enfrentado a partir de esportes e a consideração de democracia que este permitir inferir.
Quero falar de esportes e democracia porque tenho observado que, sempre que o modelo americano de vitória é posto em xeque, surgem vozes americanizadas para dizer: entre os países democráticos, nós vencemos.
O que é democracia, afinal? Democracia se impõe? Penso que não. Como penso que não, quero analisar dois fenômenos do esporte mundial a partir da liberdade democrática. De um lado, ocidente; do outro, oriente. Em ambos os lados atletas de ponta. O que os difere? Será mesmo a democracia? Caso seja a democracia, que democracia? Dá para dizer que a democracia cíclica, do oriente, é pior que a democracia linear do ocidente?
No mundo ocidental se laureia o projeto de Michael Phelps de bater Mark Sptiz e seu recorde, datado de Munique, em 1972. A história é vista sob o prisma da superação, como na doutrina que defende as gerações de direitos fundamentais [26] em detrimento de dimensão [27]. Há quem fala de geração, e não é sem motivo. Talvez por ato falho (valeu Freud). Talvez por vaidade, pois tudo é vaidade, não é mesmo, Salomão? Estou mais para a visão da vaidade, já vez que a expressão geração evoque titularidade, que é ocidental na gênese e se coaduna com Darwin e sua visão de aptidão e adaptabilidade: só os mais aptos sobreviverão.
Uma vez consumado o projeto de Phelps, Spitz já era. As oito medalhas são de Phelps e se somarão às seis ganhadas nos jogos gregos. Na verdade ele ganhou oito medalhas em 2004, mas o bronze não contaria. Ele terá, então, 14 medalhas. Com isto Phelps será o homem a ser batido e a história terá começado com ele. Não por acaso a intenção (ou seria pretensão?!) de divisor da história assolar a muito de nós, ocidentais evoluídos.
Phelps bate recorde sozinho? Penso que não. Ele bate recordes porque há uma confluência de fatores objetivos. Ninguém se torna o melhor a partir do nada. Ninguém nasceu há 10.000 mil anos atrás [28]. As condições objetivas são necessárias para que as potencialidades brotem e se desenvolvam. Por estas não nascem Mozarts nas favelas. Por estas, também, nascem MCs, e bons. Por outras não posso impor o que vivencio.
É claro que podem nascer Mozarts nas favelas. Isto possível, mas, excepcional: estado de exceção. Sendo assim, o fato não pode receber o tratamento de regra, já que isto não seria um Estado Democrático, tal como na propaganda que laureia o espírito brasileiro com o EU NÃO DESISTO NUNCA:
"A Maria José sempre quis ser professora.
Ela lutou contra o pai violento.
Lutou contra a cegueira de um olho.
Lutou contra a falta de recursos.
Nada disso, porém, impediu que ela continuasse sonhando.
Quando ela se formou o destino de novo não deu trégua.
Ela passou a lutar contra uma doença que não tem cura, mas devolveu na mesma moeda, dizendo para si mesma: vou fazer mestrado, e fez.
Agora ela inventou de fazer doutorado.
E o destino?
Bom, o destino é que desistiu, porque a Maria José é brasileira.
Essa não desiste nunca" [29].
Existem Marias como a do comercial? Quantas? Poderia, então, pautar uma democracia pela exceção? Isto não seria a negação axiológica da democracia?
Do que se expõe, é preciso se reconhecer que MCs e pagodeiros em Viena são raros como Mozarts no Complexo do Alemão. Existem e são raros como pintinhos com quatro patas, aberração que presenciei enquanto menino.
O pintinho de quatro patas foi uma aparição breve. Breve, porque a mãe natureza tratou de eliminar o estranho com o próprio bico. Breve, mas demorada o bastante para que se chegasse ao local o Jornal de Caratinga, chamado em Santa Bárbara (na ocasião um distrito) às pressas. Às pressas porque o Show da Xuxa não acreditou na história e julgou ser trote. Coitada da Dona Filinha do Claudiomiro. A pobre senhora foi ignorada pela produção do programa global na sua ida ao posto telefônico (não havia telefones nas casas) com a intenção de levar a nova do pintinho à rainha dos baixinhos. Que saudade do bucolismo dos rincões deste Brasilzão!
Digressões feitas, volta-se a Phelps para dizer que, uma vez consumado o intento do nadador americano, ele será o maior atleta da história. O cara é fenomenal, mas até quando?
Phelps é um atleta fenomenal porque assimilou vários fenômenos físicos: disciplina, estatura, envergadura, alimentação e treinamento específicos, roupa adequada etc. É fenomenal e, por isto mesmo, quero citar o funk carioca e sua pérola ontológica: "cada um no seu quadrado".
Phelps pode ser o maior nadador da história (até quando!), mas como compara-lo com Jordan, Pelé, Prost ou Schumacher? Isto não é possível, porque, ontologicamente, é "cada um no seu quadrado". Se ontologicamente é assim, teleologicamente deve ser também.
Em meados de 2007 ouvi, pela primeira vez, a dança do quadrado. Não sei quais foram as intenções da autora, a exuberante Sharon, do Axé Moi. Não sei quais foram suas intenções, mas sei que a palavra falada e a flecha lançada não voltam atrás. Assim, quero extrair da Dança do Quadrado tantos elementos de democracia quanto possível. Muitos serão extraídos? Não sei. Mas de antemão vejo elementos para valorar as dimensões de direitos fundamentais clássicas. Digo isto porque liberdade, igualdade e fraternidade se apresentam agraciadas por um discurso de tolerância sui generis. Como percebo isto? Vendo que há quadrados para todos: "cada um no seu quadrado".
Abstraindo o interminável refrão, tem-se o supra-sumo da lição de Sharon: "Claudinho e Buchecha no seu quadrado; Cowboy no seu quadrado; Matrix, Robinho, Polichinelo, Flexão, Bíceps, 100 metros rasos, Natação, Paquito, Macaquinho, Gaivota, Siri, Cicarelli, Sol e Patinete, todos nos seus quadrados."
Ainda no trabalho de abstração, Sharon nos apresenta uma lição definitiva de tolerância: "Agora prestem atenção, o quadrado do lado é o quadrado do inimigo! Zidane no seu quadrado..."
Não quero dar uma de Marco Materazzi para levar uma cabeçada de Zidane. Por esta razão entendo que ao se dizer "cada um no seu quadrado", está sendo dito: HÁ QUADRADO PARA TODO MUNDO. Se é assim, de onde surge a minha pretensão de levar o outro para um quadrado diferente? Quem foi que disse que o meu quadrado é melhor que o dele? Quem assegura que iraquiano quer o modelo de democracia americano? Quem foi que disse que o povo do Camboja é infeliz e o sueco é feliz?
O sueco (com)partilha valores – em especial o hedonismo de sua indústria de filme de romance com ação – e se mata muito mais que o cambojano. Então, se suicídio fosse medida de evolução, o Camboja estaria muito melhor. Será que não é? Talvez devesse dizer à Marcinho: "nem melhor, nem pior; apenas diferente". Não posso saber porque posso saber apenas o texto (neste caso de Lei) da Suécia e do Camboja, mas para entender pretexto e contexto teria de estar lá. Como não estou, reconheço as diferenças.
Eu não sei quem autorizou Bush democratizar o Iraque, mas não me sub-rogo de seus direitos. Se fizer isto, estarei me colocando no mesmo barco de Sadam, Bush, Bin Laden e outros aiatolás. Tudo bem que tenho o poder de nominação (obrigado Bourdieu pelo seu melhor vinho), mas, como tenho razão, devo entender que democracia imposta não é democracia. É ditadura da força (no mundo fático), ainda que eu dê o sonoro nome de Direitos Humanos Fundamentais Universais.
Não partilho do universalismo, porque para tanto deveria chamar o medievo de idade da luz, e não das trevas. Por quê? Porque na Idade Média a Igreja se avocava deste mesmo poder para queimar os hereges: bruxas, maçons, astrônomos e companhia. Então, Galileu não deu uma de herói por Darwin e Descartes: se mantivesse a terra fora do centro, morria e retrocedia; se bancasse o que sabia, queimaria.
Abstraio o universalismo. Sabe por quê? Porque não há uma linha segura a partir da qual possa se dizer: aqui é bom; lá é ruim. Algo pode ser verdadeiro (numa escala de valor), como não ser, se eu mudar de escala. Então, como parto da premissa de que o núcleo duro não é ponderável, à Sarmento, não abro mão de minha liberdade: nem da minha; nem da do outro. Por isto digo: LIBERDADE, PARA MIM, NÃO SE PONDERA: ou aceito racionalidade e autonomia do outro, ou assumo que ele pode subjugar a minha.
Algo pode ser verdadeiro para mim? Pode. É verdadeiro para mim e para os meus valores, mas não para os valores do outro. Por isto mesmo, nada como a velha sabedoria popular: "em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher". Assim, se há soberania para o casal (no sentido mais puro das Teorias do Estado), deve haver soberania para um Estado Soberano. Está autorizada a barbárie? Desde Talião que não, mas se o caminho do outro for algo visto por mim como barbárie, problema do outro. O que fazer? ARRUMAR MINHA CASA ANTES DE ESPERAR QUE A RUA FIQUE LIMPA. Falar dos Direitos Humanos do morador da favela brasileira antes de me meter (no bom sentido, é claro) na genitália da sudanesa. Do brasileiro poderei, porque sei (posso saber!) de texto, contexto e pretexto.
No dia em que eu for capaz de resolver o caso Sudam, talvez eu possa falar de Sudão. Enquanto isto, parece mais inteligente esquecer teorias e assumir que cada povo pode fazer seu destino. Assumo, enquanto, cada um faz da vida o seu destino e, o meu, é problematizar. Haverá um núcleo essencial a ser partilhado? Para mim, sim, e este núcleo está na leitura de Kant da Dignidade da Pessoa Humana: racionalidade e autonomia. Tudo o que passar disto é vaidade. Tudo o que passar disto é achismo, terrorismo, revanchismo e outras modalidades de xiistismo democráticos que o mundo ocidental, do auto de sua evolução, cria, recria e copia.
Eu não meto a minha colher com ânimo onipotente (em briga de marido e mulher ou na questão de Ruanda) por uma questão simples. Para fazê-lo, preciso saber de texto, contexto e pretexto. Às vezes dá para se equilibrar por sobre este tripé hermenêutico, mas, às vezes, não. Portanto, é muita pretensão julgar que terei sempre a resposta correta. Posso ter a resposta correta? Sim, pelo menos para o meu modelo. Agora, posso sempre ter a resposta correta? Não, a menos que eu seja o Deus que o hebreu concebeu há 5.000 anos.
OLIMPÍADAS. ORIENTE E OCIDENTE NA ARENA ROMANA MODERNA.
Quando paises como Cuba e China se saem bem nos jogos olímpicos, nós, e nossos Direitos Humanos Fundamentais Universais, dizemos: "A que preço? À custa de democracia? Vale a pena tantas medalhas se eles não têm liberdade?" O senso comum diz que não vale a pena ter medalhas se não se tem liberdade. Curioso!
Que atleta de verdade (não me refiro a bons amadores, ainda comuns no futebol!) tem a liberdade que o modelo Tio Sam apregoa? Comer 12.000 calorias por dia, treinar de 7 a 8 horas durante seis dias da semana para ganhar oito medalhas de ouro é liberdade? Sim.
No ocidente somos livres para competir, desde que ganhemos. Ácido? Talvez. Possibilidade que vira certeza até se observar um ouro é melhor que mil pratas. Por quê? Porque o importante é competir. Piada? Não. Este é o espírito olímpico da anulação e superação. Bom, pelo menos até a ditadura chinesa ter mais ouros, ERA assim...
O que difere a privação do Phelps da privação de Liu Xiang, o primeiro amarelo a vencer uma prova de atletismo: 110 metros com barreiras em Atenas. Onde se assegura que é mais nobre Phelps ganhar as medalhas em nome do eu, e isto virar dinheiro através de salário, bônus e patrocínios? De onde provém a certeza do homocentrismo hedonista? Onde está escrito que o homocentrismo é o único modo de se superar o medievo e o teocentrismo que o marca? Quem assegura que o homocentrismo é evolução, e não mera mudança? Darwin?
Talvez se possa dizer, a partir de Darwin, que o teocentrismo precisa ser enterrado de vez, já que a evolução nos apresenta, sempre, algo de melhor. Isto pode ser verdadeiro, mas também pode não ser. Por quê? Porque chimpanzés são semelhantes a nós em 98,5% [30] dos genes. Se a ciência prova isto pelo genoma, a diferença entre mim e o fundamentalista islâmico deve ser menor. A diferença entre a mulher feia e Ana Hickmann é insignificante, embora todos nós saibamos da beleza de Ana. Nesta quadra, a diferença entre mim e um serial killer deve ser desprezível. Portanto, em que eu sou melhor?
Phelps, assim como todo grande atleta, passa por privações. Phelps não sai de casa, não namora e treina de domingo a domingo. Porque, então, ele é livre? Liu Xiang, que passa pelo mesmo processo, não seria também? Qual o erro do projeto chinês? Eu não sei. Não sou americano nem chinês, portanto, não sei o que se passa na casa deles...
Não pretendo oferecer respostas acabadas para as indagações propostas. O que quero é apontar que não dá para se criar certo e errado universal. Há mais adequado e menos adequado para o momento histórico e para o contexto histórico. Pretender a verdade, então, é querer mais que nossa inteligência alcança, a menos que eu me dê o lugar de onisciente no sentido mais puro: conhecedor de todas as ciências.
Pretender sempre a verdade, desfazendo do consenso, é ignorar, em muitos casos, que o consenso é necessário para a manutenção do grupamento social, como ocorre com o chamado financiamento da casa própria, visto no tópico seguinte, recobrando a questão existencial de Shakespeare: ser ou não ser? Eis a questão...