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Subordinação estrutural-reticular.

Uma perspectiva sobre a segurança jurídica

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4. A Velha e a Nova Empresa: O Mesmo Trabalho Subordinado na Estrutura da Rede Empreendedora

O novo quadro de acumulação flexível da produção faz ressurgir figuras de trabalhador que precederam à formação do sistema industrial tradicional [25]. A execução de uma atividade econômica, pouco importando a sua destinação, necessita semprede organização do trabalho e de subordinação jurídica dos detentores de liberdade formal, para a consecução dos objetivos empresários, pouco importando o locus da execução do trabalho. Afinal, nos albores do capitalismo era o detentor dos insumos, às vezes dos rudimentares teares, e do capital circulante que os levava até o trabalho, impedidos que estavam os seres humanos de abandonar suas paróquias anglicanas, sem a autorização do poder eclesiástico.

O teletrabalho contemporâneo sofisticou-se quanto aos instrumentos de comunicação e logística, é fato. Mas definitivamente não é uma rerum novarum que veio ao mundo no século XX, juntamente com a indústria da moda. As cidades de costureiras unem chinesas, brasileiras e indianas do século XXI, às inglesas do século XV na prática secular conhecida no jargão econômico como "putting out".

As supostamente novas figuras jurídicas de trabalhadores na Europa - parasubordinato, na Itália; economically dependent worker ou quasi-subordinate worker na Inglaterra; arbeitnehmeränliche Person na Alemanha [26]; autónomo-dependiente na Espanha [27], ressucitam a antiga busca de subordinação do capital urbano sobre a mão-de-obra atrelada à paróquia; impossibilitados de exercer o mando direto, contratavam o trabalho por peça, modo de subsunção formal do trabalho ao capital [28]. Hoje, em não sendo mais estratégica a subsunção material [29] (ou subsunção real) [30] em algumas atividades econômicas, enseja-se o ressurgimento do trabalhador não-diretamente subordinado, quando há em verdade autêntica subsunção formal.

O transbordamento dessas figuras para a regulação desses países por iniciativa legislativa tem como pressuposto a ausência de identidade entre tais fenômenos jurídico-econômicos e o conceito interno de empregado. Com menor ou maior grau de proteção, tais conceituações buscam estender ao trabalho tipificado nesses (supostamente) novos conceitos a proteção social característica dos modelos de welfare state.

Todavia, à míngua de regulação própria, a análise dos próprios signos contidos na Consolidação das Leis do Trabalho do Brasil nos permite sustentar que as significações dos conceitos de empregado e empregador ainda não foram exauridas pelo sistema jurídico nacional, notadamente pela jurisprudência [31].

Desse modo, embora não sustentemos a possibilidade de que um texto, juridico ou não, comporte interpretações infinitas, já que integram um sistema de comunicação, as possibilidades semânticas do conceito de subordinação jurídica não nos parece tenham sido esgotadas. Mais do que isso, o que vislumbramos é que o conceito de subordinação permite ainda dar ao sistema jurídico-laboral brasileiro uma interpretação que seja, ao mesmo tempo, desmercantilizadora do trabalho e promotora da segurança jurídica dos agentes (Estado, trabalho e capital) envolvidos.

O seccionamento das atividades da empresa conduz a uma necessária adequação do próprio conceito de empregador, como já se contempla na figura do consórcio de empregadores. Mas é imperioso ir além. Contemporaneamente o EM (é quem contrata) PRE (quem remunera) GA (quem dirige) DOR (é quem assume os riscos) pode ser um feixe de entidades, empresas ou pessoas, a depender dos instrumentos jurídicos que amalgamam as relações jurídicas entre aqueles a quem interessa a contratação do trabalho.

Ainda que intuitivamente e aspirando flexibilizar o regime de contratação de trabalho no Brasil, a súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho expressamente admitiu o seccionamento do conceito de empregador e assimilou parcialmente o que aqui se pretende nominar de subordinação estrutural-reticular [32].

A referida súmula, contudo, enuncia duas condicionantes para se elidir a formação de vínculo de emprego com o tomador do serviço: (i) a inexistência de pessoalidade e de (ii) subordinação direta. Parece-nos, todavia, que a expressão subordinação direta seja, em se tratando da nova realidade produtiva, termo equívoco, decorrente da verificação empírica de que na maioria esmagadora dos contratos de empregos há coincidência entre a emanação de ordens relacionadas com a organização e a execução do trabalho e a existência de uma pessoa humana integrante do quadro de empregados da empresa, encarregada da transmissão direta dessas ordens. Trata-se de evidente confusão entre espécie (ordem) e gênero (poder empregatício).

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Afinal, é possível seccionar as atividades empresariais interna ou externamente. FoiDedecca [33], a partir do texto clássico de Chandler, quem dissecou com mais rigor a combinação de elementos dos modelos organizacionais de conglomeração e divisão internas, de origem americana e que se espraioupelas economias desenvolvidas e sub-desenvolvidas duranteo século XX, com os elementos horizontalizados prevalentes a partir dos anos 1980 e nitidamente inspirados no sistema industrial japonês.Três são os vetores das alteraçõesintroduzidas nas empresas: o aumento da concorrência em escala global com a emergência de concorrentes europeus e asiáticos; a perda da dinâmicas das economias centrais nos anos 1970 e a necessidade de redução de custos de modo sistemático.

As estratégias para o reposicionamento das empresas frente a seus concorrentes combinam a intensificação do uso de tecnologia; a gestão do trabalho adotando estratégias nipônicas sem a correspondente garantia de emprego do país do sol nascente; e a pressão pela alteração da regulação pública do mercado de trabalho. Ao longo do tempo, esses elementos vão se mesclando, ante o grau de instabilidade do processo produtivo quando as alterações fundam-se apenas na intensificação da automação industrial. Daí a importância das formas jurídicas no processo de externalização das atividades das empresas.


5. A Reorganização Produtiva e Segurança Jurídica

Essas novas formas jurídicas que dão corpo às coalizões empresariais, quer cooperativas e coordenadas, quer hierarquizadas abalaram a estrutura das relações jurídicas empregatícias. Se numa primeira análise e sob um prisma estritamente formal é possível dizer que tais mutações encarnam o próprio espírito empreendedor e o princípio da livre iniciativa, uma análise mais acurada revela-nos a ameaça à segurança jurídica, aqui tomada na perspectiva de direito a ter direitos, e neste sentido transmutar-se numa pedra angular do sistema de proteção dos direitos humanos.

Com efeito, se os sistemas constitucionais contemporâneos representam o compromisso social e politico envolvendo todos os seus estratos, e vigendo neles uma economia de mercado, é de se convir que as relações jurídicas mais comuns nestes sistemas são relações jurídicas assimétricas, e neste aspecto resta esmaecida a visão estrita de que a segurança jurídica estabeleça cânones de certeza para os privados em face do Estado. Essa noção emergiu das revoluções burguesas e pode ser sintetizada no princípio da não-surpresa, e representa um dos mecanismos de proteção da propriedade e do livre comércio. Em última razão, traduz-se nos mecanismos de segurança econômica dos proprietários em face da organização política, o Estado.

Assim, às noções de legalidade, devido processo legal e intangibilidade do ato jurídico perfeito, dos direitos adquiridos e da coisa julgada – prescrições relevantes acerca do agir do Estado e de seus deveres de abstenção - somam-se o dever de promover direitos à segurança econômica e ao bem-estar dos não-proprietários [34]. Haveria então um conflito potencial e sistêmico entre a livre iniciativa e suas prerrogativas de segurança em face do Estado, e a segurança jurídica mais espraiada e democrática dos demais cidadãos, que envolve diversas regras de conduta, tanto positiva quanto negativa, do Estado e da base econômica das sociedades contemporâneas.

Nesta perspectiva, chancelar às coalizões empresariais a possibilidade infinita de contornar a regulação do mercado de trabalho pela via contratual, importaria secundar a vida social política ao contratualismo. Ora, as sociedades contemporâneas são fundadas na concentração organizacional e institucional, de modo que a assimetria entre organizações e indivíduos é a premissa básica para a análise do conteúdo das relações jurídicas, mormente quando se pretende avaliar a distribuição da carga de deveres os sujeitos da relação. Dito de outro modo, a segurança jurídica pressupõe algum nível de segurança sócio-econômica, mas como compatibilizar isso, numa sociedade fundada na inovação e na competição econômicas? A seara a ser percorrida parece estar na identificação e imputação da responsabilidade imediata sobre as organizações participantes dessa própria sociabilidade competitiva.

Como se vê, nessa abordagem ampliada do direito à segurança jurídica, o mercado de trabalho assume uma feição de bem público, sobre o qual convergem a regulação pública e a regulação privada, numa interação fundada na prevalência do direito a ter direitos ou, para resgatar a expressão consagrada por Delgado, num "patamar civilizatório mínimo" [35]. Essa premissa representa a conexão entre a indisponibilidade dos direitos humanos e sua universalidade, de modo que o léxico "direito ao trabalho", por exemplo, não se traduza em direito a qualquer trabalho, pois segurança jurídica só tem relevância para os sistemas jurídicos se estiver atrelada à proteção à vida digna. [36]

Trata-se, pois, de estabelecer uma conexão entre atividade, risco e responsabilidade, de modo a evitar que aqueles que desenvolvem a atividade olvidem de atrair para o âmbito de suas relações jurídicas a responsabilidade sobre os riscos inerentes a esta atividade. Essa tendência evanescente da responsabilidade pela atividade econômica serve de fundamento a lei uruguaia de 18.099/2007, como assinalam Rosenbaum e Castello [37] ao esclarecer que no processo legislativo uruguayo "Los legisladores de la bancada oficialista parten de la constatación que los fenômenos de tercerización constituyen instrumentos válidos de gestión empresarial, pero señalandose que la diversidade de sujetos que aparecen como empleadores (uno contrata e paga el salário; el outro ejerce el poder de dirijir el trabajo e se beneficia del mismo), lo que provoca que el trabajador se vea sometido a un juego confuso de relaciones laborales, que as veces tien incluso un exclusivo carácter de elusión o evasión de las responsabilidades laborales e provisionales" [38]

É interessante, a respeito, chamar à colação o debate que se trava no constitucionalismo contemporâneo acerca da mudança paradigmática dos princípios liberais – igualdade, liberdade e fraternidade – cristalizados a partir dos ideais kant-rousseaunianos da Revolução Francesa, para a chamada tríade de Denninger – segurança jurídica, diferença e solidariedade [39]

Nesse debate, travado à luz da Lei Fundamental Alemã, e das novas constituições do leste alemão – Bundesländer [40]– a segurança suplementa a idéia de liberdade negativa e clássica, em permanente articulação com a idéia de solidariedade, a fim de reconstruir o Estado e a Constituição como garantes do cidadão contra todos as esfera da noção de risco e sobretudo contra os riscos sociais, que são mais iminentes que os riscos bélicos, por exemplo.

Flagra-se aqui uma relação dinâmica entre direito, economia e, sobretudo, o caracter expectacional da segurança jurídica, que pode e deve ser um compromisso do sistema jurídico, mas num contexto espraiado e universal, onde a mutabilidade da vida social não se traduza em simples refúgio da irresponsabilidade jurídica e social dos agentes sociais, mormente os agentes econômicos.


6. A Subordinação Estrutural-reticular.

Embora as relações jurídicas, assim como todas as demais dimensões da civilização humana, sejam sempre dinâmicas e a própria concorrência entre os agentes econômicos seja travada inclusive através do uso instrumental dos marcos regulatórios dos diversos estados nacionais, é inegável que a regulação que mais se submete as estratégias de flexibilização, quando não de simples elisão, é aquela relacionada com o uso do trabalho, onde a híbrida presença de regras de ordem pública e regras de origem privada permite um maior espaço de atuação. Ademais, a dinâmica da inovação entre os agentes econômicos envolve o trinômio tecnologia, organização produtiva e regime jurídico-trabalhista.

Como o nosso escopo é analisar os efeitos sobre o fenômeno jurídico e não tecer juízos de valor sobre as características da concorrência intercapitalista na contemporaneidade, e buscar a validação do conceito reelaborado de subordinação jurídica, temos que nos debruçar sobre a alteração do locus de influência da produção de bens e serviços nesta etapa da história. A reestruturação produtiva contemporânea processou intensa redução da porosidade do trabalho, com o completo domínio do processo produtivo – sistema SMED [41] – o que permitiu a flexibilização da rigidez da hierarquia e disciplina taylorista. Essa flexibilização disciplinária passou, inclusive, a ser pressuposto do aumento da produtividade nos setores de grande concorrência, inclusive global. Na externalização dos ajustes internos – sistema SMED – o modelo de produção ordem-subordinação é substituído pelo modelo colaboração-dependência.

A liberdade formal dos trabalhadores passou a corresponder a demanda do sistema produtivo por trabalho humano abstrato, cuja concretude dependeria das necessidades conjunturais do tomador, a serem executadas no restrito espaço geográfico da unidade fabril, embora nos seus albores, o capitalismo (ou o mercantilismo) recrutasse o trabalho e os serviços eram executados sob a forma de "teletrabalho", ante a ausência do direito de se afastar da sua paróquia, o que talvez seja uma das razões instrumentais do direito de ir, vir e permanecer, consagrados pelos textos constitucionais da modernidade: a transposição da subsunção formal do trabalho para a subsunção material decorrente da parcialização do trabalho.

Mas será que o seccionamento da hierarquia - ou dos elementos originários que definiam o empregador, são suficientes para afastar a incidência da relação de emprego?

Teria, então, a relativização do exercício do poder em seu aspecto subjetivo, com a criação de comandos abstratos presentes no regulamento, no treinamento ou mesmo nos contratos, criado um tertius até então desconhecido pela história do direito ou pela trajetória do trabalho?

Por fim, seria ainda a relativização do aspecto objetivo do poder, decorrentes da expressiva remuneração ou execução do trabalho em local distante da estrutura central que esmaeceria o conceito de subordinação jurídica e o próprio conceito jurídico de empregador, como concebido pelo direito brasileiro?

Embora fosse um crítico acerbo da definição de empregador jurisdicizada pela Consolidação das Leis do Trabalho, Evaristo de Moraes Filho, não deixou de assinalar que a regulação brasileira ao imputar à empresa a condição de sujeito de direitos e deveres, absorveu parcialmente o conceito oriundo da sociologia e da economia em seu caput, e para não deixar larga margem de interpretação aos agentes do mundo do trabalho, cuidou de acrescer o § 1º ao citado artigo consolidado [42]. Não obstante a dicção da lei mencione os elementos integrantes do conceito de empregador no singular, é evidente que se trata de técnica legislativa e não de restrição da possibilidade de multiplicidade de sujeitos empregadores. Com efeito, a própria definição de empresa, oriunda do direito alemão e citada na nota precedente, consagra a possibilidade de concentração e de coordenação da atividade empresarial, de modo a absorver e moldar-se aos diversos instrumentos jurídicos destinados à coalizão empresarial.

Sobre os autores
Marcus Menezes Barberino Mendes

Juiz do Trabalho Substituto do Trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, mestre em Economia Social do Trabalho, pelo Instituto de Economia da UNICAMP e doutorando em Desenvolvimento Econômico pela mesma Universidade

José Eduardo de Resende Chaves Júnior

doutor em Direitos Fundamentais pela Universidad Carlos III de Madrid, juiz do Trabalho em Belo Horizonte (MG), vice-presidente da Rede Latino-americana de Juízes

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MENDES, Marcus Menezes Barberino; CHAVES JÚNIOR, José Eduardo Resende. Subordinação estrutural-reticular.: Uma perspectiva sobre a segurança jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 2005, 27 dez. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12126. Acesso em: 22 nov. 2024.

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