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A justificativa da idéia de Estado no idealismo transcendental de Immanuel Kant

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Agenda 02/01/2009 às 00:00

Abstract: This article has by object discussing, in a brief and didactic way, the justification of the State''s idea in the KANT''s Transcencental Idealism. It beginnings making some considerations about the justification of the transcendental philosophy and it concludes concerning about the logical justification to the State''s existance in the KANT''s vision.

Keywords: Political’s Philosophy. KANT''s Transcencental Idealism. Justification of the State.

Resumo: Este artigo tem por objetivo abordar, de forma breve e didática, a justificativa da Idéia de Estado no Idealismo Transcendental de Kant. Inicia-se, tecendo algumas considerações sobre o conceito de justificativa do Estado. Passa pela compreensão da filosofia transcendental e conclui abordando a justificativa lógica para a existência do Estado na visão de Kant.

Palavras-chave: Filosofia Política. Idealismo Transcendental de Kant. Justificativa do Estado.


1 INTRODUÇÃO.

Os termos justificação, legitimidade, legitimação, fundamentação e justificativa não são unívocos [01] na doutrina jurídica. Pelo contrário, muitas vezes são usados de forma equívoca e não se tem aqui a pretensão de torná-los unívocos. O que se propõe é a adoção de conceitos operacionais [02] validados pela lógica jurídica.

O verbete justificação [03]traduz a ação de provar que tal e tal procedimento, feito ou obra é justa, que não feriu nenhuma lei ou dispositivo legal. [04] Assim é que justificar seria o ato de tornar justo, legal. Daqui, do plano da justificação, surge o interesse em saber o que torna justo o Estado. A resposta para essa inquirição se revela a partir da compreensão da origem, da validade, da eficácia e da própria razão de ser – necessidade, numa perspectiva provisoriamente ampla – do Estado. Assim é que o processo de justificação do Estado jamais terá fim: ele dura enquanto a reflexão sobre ele permanece. [05]

A visão histórica da doutrina jurídica, de uma maneira geral, sempre enxergou a justificação do Estado de forma tridimensional, na triologia fundamentação, legitimidade e legitimação. Todavia, na compreensão da justificação do Estado há um quarto elemento: a justificativa. Esta vem do latim justificatus, que significa que significa justificado, ou, mais largamente, provado, demonstrado, isto é, a comprobação da justiça. [06] A justificativa está alocada na própria razão de ser – necessidade – do Estado.

A justificativa não se confunde com as competências do Estado. A atividade do estado no que diz respeito aos assuntos e às pessoas sobre os quais ele exerce o poder, é a competência do Estado. O fim do Estado é o objetivo que ele visa atingir quando exerce o poder. Esse objetivo, podemos antecipar, é invariável, é o bem público. [07]

A justificativa da idéia de Estado é, portanto, o bem público. É pela e para a consecução do bem público que o Estado existe. Como salientado por Azambuja na citação anterior, a noção de bem público possui um viés formal, sendo invariável, razão pela qual é e será sempre o bem público a justificativa da idéia de Estado. Entretanto, o conteúdo da fórmula bem público é variável. Assim, num viés material, cada Estado escolhe o que é bem público.

A tarefa de refletir sobre um tema inserido em parte da teoria de um autor certamente se constitui tarefa mais árdua do que compreender toda a obra. A ciência, entretanto, caminha sob as contingências de tempo e espaço, razão pela qual somente os aspectos mais pertinentes sobre a obra de Immanuel Kant serão considerados para se compreender qual é a justificativa da idéia de Estado no idealismo transcendental desse filósofo.


2

Desde a Revolução Francesa, ocorrida em 1789, várias teorias tentaram explicar qual seria a justificativa do Estado. O Estado é necessário na exata medida em que cumpre o seu papel de provedor do bem-público. Entretanto, este não é algo que se mantém estável. Pelo contrário, reflete a imagem da sociedade, que está em constante movimento.

Num primeiro momento, o do Estado de Direito, a idéia de bem-público coincidia com a necessidade de promoção da segurança jurídica. No Estado de Polícia, a lei, em si, não era capaz de garantir que as regras não mudassem durante o jogo, tampouco viabilizava que a cada um fosse dado o que lhe era devido. Isso porque, apesar de sua existência, sua aplicação poderia variar conforme variasse o humor do Monarca, que era o representante de Deus na terra, ou de quem quer que figurasse como juiz. Como garantir que o cidadão não mais temesse o Estado, tanto quanto temia o ladrão?

A idéia de Estado de Direito antecede às revoluções liberais. E foi Hobbes (1588/1679) quem primeiro concebeu um Estado como idéia, necessário à garantia de segurança jurídica a todos os cidadãos que, sem ele, viveriam eternamente em um estado natural de guerra. [08] Para tanto, Hobbes idealiza o Estado como o mais forte, fazendo uso do monstro bíblico Leviatã como metáfora de um Estado que a todos seria capaz de engolir. [09]

No estado natural o homem é livre, porque pode usar seu poder do modo que lhe parecer melhor, para a preservação de sua própria natureza. Hobbes definiu a liberdade como a ausência de obstáculos externos capazes de impedir o homem de usar seu poder conforme o que lhe for ditado por seu julgamento e razão. [10] E o que a razão dita é a busca pela paz, que somente existirá no Estado. A justificativa deste está, portanto, na manutenção da ordem através da garantia da segurança jurídica, dada pelo Direito. [11]

Para Hobbes, a construção jurídica do Leviatã se dá através de um contrato, onde cada indivíduo transfere ou cede parte de sua liberdade para obter segurança. A figura do contrato se encaixa bem na fórmula de Hobbes, vez que, como definido por ele mesmo, o contrato significa transferência mútua de direitos. [12]

Diferentemente de Hobbes, Locke parece, a princípio, encontrar na liberdade a justificativa para a idéia de Estado. Entretanto, essa não é a melhor interpretação de seus escritos. Sem mencionar o nome de Hobbes, seu contemporâneo, Locke critica o pensamento de alguns autores que confundem estado natural e estado de guerra. Neste, há um estado de ódio, maldade, violência e destruição recíproca. Naquele, o que existe é um estado de paz, boa vontade, cooperação mútua e conservação. [13]

No estado natural de Locke o homem é plenamente livre e vive em paz, porque a sua concepção de liberdade não se confunde com uma licença para se fazer o que quiser. Ela é, de outra forma, o dever de obediência ao direito natural. [14]

Segundo Locke, portanto, a liberdade é a chave da existência humana e ela somente existe no direito natural. Mas se o homem é livre no estado de natureza, qual seria a justificativa para o Estado? A essa indagação Locke responde que não é sem razão que ele procura de boa vontade unir-se em sociedade com outros já que estão reunidos ou têm a intenção de se unir para a mútua preservação de suas vidas, de suas liberdades e bens, aos quais chamo pelo nome genérico de propriedade. [15]

Entenda-se bem o que sucede com as idéias de Locke: de um lado, nega que o estado da natureza seja um estado de violência, vez que nele o homem é livre e feliz; de outro, diz que a criação do Estado se faz necessária em função da insegurança a que são submetidos os cidadãos em relação às suas propriedades! Fica patente a contradição de Locke. Muito embora a liberdade seja o centro de sua teoria do Estado, a justificativa deste se dá em razão da necessidade de segurança jurídica e não da liberdade. [16] O homem desiste da liberdade quando se insere no Estado. [17]

O passo seguinte na justificativa da idéia de Estado de Direito pela necessidade de segurança jurídica, veio com as obras do suíço Jean Jacques Rousseau (1712-1778). Muito embora tenha sido antecedido cronologicamente por Montesquieu, Rousseau é teórico do Estado de Direito, cuja justificativa está na segurança jurídica dos indivíduos, estando, pois, menos próximo das idéias do liberalismo stricto sensu do que do contratualismo de Hobbes, muito embora não compartilhe de todas as idéias deste. [18]

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Seguindo os passos de Hobbes, Rousseau visualiza a existência de dois estados sociais, um natural e outro civil, este sendo fruto da ordem jurídica. No estado de natureza, o homem seria legislador de si mesmo e, portanto, plenamente livre para fazer o decidisse fazer. Mas a insegurança de todos colocaria em risco a própria existência do homem, dada a impossibilidade da convivência das liberdades conflitantes. Se um indivíduo desejasse ter o que pertence a outro, poderia fazê-lo. O estado natural seria também o estado da insegurança e da injustiça.

Para Rousseau, a segurança jurídica está acima de qualquer outro bem-público como justificativa do Estado, já que, quando o indivíduo cede ao Estado parte de sua liberdade, ainda assim aufere lucro, pois ele estará seguro pelo ordenamento jurídico. A liberdade seria o preço pago pela segurança. Rousseau distingue a liberdade natural, que o homem possui no estágio pré-contratual, da civil, que seria a jurídica, dada pela ordem legal. No Estado, portanto, além de perder a liberdade natural, o homem ainda tem sua liberdade civil limitada pelo Direito.

No entanto, a segurança jurídica em Rousseau, diferentemente de Hobbes, é qualificada pela propriedade e pela justiça. Quanto à primeira, o pensador suíço atribui a ela a origem das desigualdades entre os homens. [19] Embora indesejável, a propriedade já não podia ser extirpada da sociedade. Mas ela não decorre da natureza do ser humano, mas sim de uma criação do próprio homem. Essa criação realizada ainda no estado natural foi transportada para o estado civil, mantendo a exclusão social. [20] A segurança jurídica no Estado de Direito, portanto, depende da forma com a qual o Estado lida com o equívoco da propriedade. Sendo impossível extingui-la, resta ao Direito racionalizá-la.

No que tange à justiça, em primeiro lugar, Rousseau não vê o Estado (civil) como o mais forte indivíduo da sociedade, cuja lei por ele proclamada só seria legitimada pela força. Ao contrário, o pensador suíço o vê como uma ordem justa, atribuindo exclusivamente à vontade dos homens a criação do Estado e o respeito por suas leis. Uma lei deveria, portanto, ser cumprida não por ser o Estado o mais forte, mas porque entre os homens foi celebrado um Contrato Social, onde todos se comprometeram a cumpri-la. O Contrato Social não foi um acontecimento passado, mas uma realidade presente em qualquer governo legítimo. [21] Ao contrário de Hobbes, Rousseau não concebe o Estado como um Leviatã - uma criação, em tese, antiética, ilegítima ou injusta, já que a todos seria capaz de engolir -, onde os mais fracos estariam submetidos à lei do Estado simplesmente por ser ele o mais forte. Diferentemente, o Estado é uma necessidade como fator de garantia de segurança jurídica, o que ocorre através do Direito. Somente no Direito há segurança jurídica e, o Direito, para que exista, depende da vontade de todos em torná-lo obrigação. Esta seria a razão do cumprimento das leis e não a força, portanto. A lei do mais forte, destarte, não condiz com o contratualismo de Rousseau. [22]

Em segundo lugar, a idéia de justiça qualifica a segurança jurídica à medida que o justo é algo que se deve e se pode alcançar. Sem o Estado, o homem não conseguiria, individualmente, permanecer com o que é seu. Muito embora os direitos naturais atribuíssem aos homens certas faculdades, somente os direitos civis seriam capazes de garanti-las. [23]

Assim é que a propriedade deve ser garantida pelo direito civil (segurança jurídica) à luz do direito natural. O direito civil deve tentar refletir ao máximo aquilo que preconiza o direito natural que, por sua vez, guarda simetria com o que é justo. Para Rousseau, portanto, o Contrato Social somente existirá mediante uma ordem justa. [24]

É interessante notar que, para Rousseau, o homem conserva sua natureza mesmo na sociedade civil, após o contrato social. E essa natureza, diferentemente do que afirma Hobbes, é essencialmente boa, voltada para o justo e para o bem. [25]

Deveras, fica clara a intenção de Rousseau de demonstrar que o Estado ideal é o natural, onde não haveria a propriedade e, portanto, não haveria injustiça. Entretanto, uma vez fundada, a sociedade civil somente se aproxima da justiça através da garantia da segurança jurídica, que passaria, essencialmente, pela justa gestão da propriedade privada por um Estado legítimo. Em Rousseau, portanto, a justificativa da idéia de Estado está na segurança jurídica, qualificada pela propriedade e pela justiça.

A ordem jurídica exerce um processo de desnaturalização do homem, através da socialização, capaz de transformá-lo, de um animal estúpido e limitado, em um ser inteligente. [26] Ela, a ordem jurídico-política, cria a justiça e, por meio desta, distribui a segurança jurídica de que cada ser humano necessita para ser livre e proprietário. Essa desnaturalização ocorre em função do Direito e não do Contrato Social. Este explica a legitimação do Direito e do Estado, à medida que explica a razão pela qual todos devem obedecer à lei: por causa de um acordo em que todos se obrigaram a cumpri-la. O contratutalismo de Rousseau constitui, desse modo, um tratado de Justificação do Estado, o qual possui fundamento, legitimidade e legitimação no Contrato Social, mas justificativa na segurança jurídica qualificada pela necessidade de justiça e pela racionalização da propriedade.

Na construção da liberdade como justificativa do Estado de Direito Liberal, a primeira contribuição a ser mencionada é a de Montesquieu (1689/1755), cujo pensamento era essencialmente antiabsolutista, o que o faz se destacar de antecessores do quilate de Maquiavel, Bodin, Bossuet e Hobbes. [27]

Muito embora rejeite o impulso natural ou desejo de guerra que Hobbes atribui à espécie humana, Montesquieu identifica a existência, como Hobbes, de leis naturais e positivas. Para o pensador francês, a idéia de império e dominação é tão complexa, e depende de tantas outras noções, que jamais poderia ser a primeira a ter ocorrido à inteligência humana, de maneira que somente quando a humanidade entra no estado de sociedade é que ela perde a noção de fraqueza, cessa a igualdade e começa o estado de guerra. [28]

Segundo Montesquieu, esse estado de guerra que se inicia com a sociedade civil não pode ser vencido sem a democracia. O poder monárquico absolutista não seria capaz de dar segurança jurídica aos cidadãos, porque ao monarca faltaria virtude. Esta estaria nas leis positivas, criadas pela vontade popular. Mas a idéia hobbesiana do contrato social não é admitida por Montesquieu. Este também vê no conflito a fonte material das leis, mas não das leis de um contrato social, como entende Hobbes.

Diferentemente de Hobbes, Locke e Rousseau, Montesquieu vê na liberdade a imagem do bem-público, a própria justificativa da idéia de Estado. Ele passa a concebê-la de forma diferente dos que lhe antecederam, estando ligada à ordem legal. Para ele: A liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem; se um cidadão pudesse fazer tudo o que elas proíbem, não teria mais liberdade, porque os outros também teriam tal poder. [29]

Para Montesquieu, portanto, a lei é a garantia da liberdade, bem-público supremo. Entretanto, para que a lei possa cumprir seu papel, ela há de ser virtuosa ou democrática. [30]

Assim, para que a lei (Estado) cumpra o seu papel (justificativa de sua idéia) de garantir a liberdade, Montesquieu defende a criação, a separação, a independência e a harmonia de três poderes distintos: Executivo, Legislativo e Judiciário.

Montesquieu não atribui ao Estado o dever de dar segurança, mas sim liberdade, porque esta somente existe onde há a lei. A segurança decorre do fato de o homem poder ser livre e não o contrário. Aquele que não se subjuga às leis não pode possuir liberdade, mas possui a segurança de lhe ser aplicada a pena justa. Entretanto, a liberdade lhe poderá ser retirada assim que for recolhido ao cárcere, ou seja, assim que for privado do convívio social. Não é segurança que interessa ao homem ingresso no Estado, mas o direito de ser livre, conforme a lei lhe permitir que o seja.


4 O IDEALISMO TRANSCENDENTAL.

Para que se possa compreender o conteúdo que Kant atribui ao conceito de bem-comum, calha capturar a essência de seu pensamento, previamente.

No prefácio de Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Kant desvela a tradicional divisão grega das ciências em (a) conhecimento material e (b) conhecimento formal. Diz que este se ocupa apenas da forma do entendimento e da razão em si mesmas e das regras universais do pensar em geral, sem distinção dos objetos, [31] e aquele de determinados objetos e das leis a que eles estão submetidos. O conhecimento formal é chamado de lógica. O material, de física (quando se ocupa das leis da natureza) e de ética (quando toma por objeto as leis da liberdade). A física produz postulados do que acontece e a ética do que deve acontecer. A Lógica, por sua vez, produz postulados a priori e universais. [32]

O conhecimento material, singularmente, possui a pluralidade de partes empírica (a posteriori) e racional (a priori). A física e a ética (ou antropologia prática) são produtos dessa parte empírica. A parte racional, por sua vez, produz a metafísica da natureza, a partir das leis da natureza. Kant, entretanto, cogita da existência de uma segunda metafísica, a metafísica dos costumes, a qual estaria para a ética como a metafísica da natureza está para a física. [33]

À clássica divisão do conhecimento, Kant acrescenta, pois, a metafísica dos costumes. Rumo à verdade e à universalidade, os ramos sucedem em dissonância. Quando a física se encarrega de dizer, por exemplo, que a distância é o resultado da multiplicação da velocidade pelo tempo (d=v.t) o faz com um grau de certeza inalcançável pela metafísica quando explica a existência de Deus, a noção de mundo ou a consistência da alma. Kant concluiu, por isso mesmo, pela necessidade de repensar toda a metafísica, sendo sua inércia dogmática rompida pelo impulso de Hume. [34]

O ceticismo de Hume advertia para o fato de que somente a experiência seria capaz de explicar a causalidade dos fenômenos. A investigação, por exemplo, da causalidade entre calor e dilatação dos corpos seria impossível se realizada a priori, somente se fazendo uso da razão dogmática.

Noutra face, objetos tantos, tais quais os da lógica, da matemática e da física, são capazes de prescindir da experiência para se chegue a postulados verdadeiros sobre eles. Permitem o uso apenas do método racional.

Por que a metafísica não apresenta o mesmo grau de certeza que a lógica, a matemática ou a física? [35] Ora, se o racionalismo dogmático independe da experiência para dizer o que é verdade em física, matemática e lógica, por que não consegue fazer o mesmo com a metafísica?

Kant busca a resposta na raiz da questão, criticando a razão pela própria razão.

Inicialmente, pode-se atribuir o sucesso das citadas ciências à transmutação de seu método. Quando a matemática, v. g., descobriu a abstração dos números e das figuras geométricas, seus postulados progrediram rumo à universalidade e necessidade. Em um instante, do número "um" emergiu vida independente de "um animal" ou doutro significado ontológico e suficiente para abrigar valor abstrato em si mesmo. O triângulo, prosseguindo nos exemplos, deixou de representar a realidade da pirâmide para nascer como figura geométrica autônoma: a matemática deixou de lado os objetos reais para lidar com os ideais.

O idealismo, portanto, passou a servir tanto ao conhecimento empírico quanto ao racional. Nesse ponto, o conhecimento deixa de repousar nos objetos, para despertar na idéia, ou seja, no sujeito cognoscente. [36]

As fórmulas desenvolvidas pela lógica, matemática e física admitem qualquer objeto. Existem, assim, conhecimentos relativos aos estudos das fórmulas e outros pertinentes aos diferentes conteúdos. Noutras palavras, há o conhecimento a priori, de forma, que depende do sujeito que conhece e há, também, o a posteriori, da matéria, que se refere aos objetos que são conhecidos. A principal diferença entre o conhecimento a priori e o a posteriori consiste no fato de que, no primeiro, as proposições são necessárias e universais; no segundo, são elas contingentes, relativas. O conhecimento a posteriori (empírico) se refere a um objeto e o a priori (racional), a todos os sujeitos. A experiência para aquele, a razão para este.

Fazendo uso da razão e da experiência, o sujeito atribui predicados aos sujeitos, construindo frases que atribuem valor aos objetos, julgando-os com parâmetros de quantidade, qualidade e causalidade em torno dum contexto dado pelo tempo e pelo espaço. Chegará, pois, o sujeito, aos juízos.

Esses juízos variam na exata medida da novidade trazida pelos predicados aos sujeitos. Os predicados podem nada acrescentar ao sujeito, como quando se diz que um quadrado tem quatro lados, situação em que o juízo será analítico, por ser tautológico. Outras vezes há que predicados não pressupõem os sujeitos, como quando se diz que o triângulo é pequeno, momento em o juízo será sintético. Todo juízo de experiência é sintético, porque a experiência nos ensina a acrescentar certos atributos aos nossos conceitos, por exemplo, o peso ao conceito de corpo. [37]

Além dos juízos analíticos e sintéticos, Kant apresenta uma de terceira espécie: os sintéticos a priori, que produzem proposições universais e necessárias, como os analíticos, mas que não são tautológicos. [38] São dessa espécie, portanto, as fórmulas postuladas pela física e pela matemática. Quando se diz que dois mais dois são igual a quatro, a matemática informa em fórmula universal que, reunidos dois a dois, quaisquer objetos contarão quatro. O sucesso da física e da matemática, portanto, está no fato de que suas proposições decorrem de juízos sintéticos a priori.

O fracasso da metafísica está, a contrario sensu, na impossibilidade de produzir juízos sintéticos a priori. A diferença entre física e metafísica reside no fato de que a primeira cria formas para uma experiência possível, enquanto a segunda lida com objetos cuja experiência não é possível. O mesmo, todavia, não acontece com a segunda espécie de metafísica, a dos costumes. Esta é capaz de produzir tanto juízos práticos sintéticos a priori quanto a posteriori.

A natureza se movimenta a partir de leis. Os homens, entretanto, agem por vontade, através da razão prática, que consiste na faculdade que um ser racional possui de agir segundo a representação das leis, isto é, segundo princípios. [39]

Acrescenta PASCAL que a vontade, com efeito, é a faculdade de agir segundo certas regras. Estas regras constituem máximas, se são subjetivas, ou válidas para a vontade do sujeito; constituem leis, se são objetivas, ou válidas para a vontade de todo ser racional. [40] A vontade será autônoma quando obtiver a qualidade de ser lei para si mesma; será heterônoma quando em sentido oposto.

Por trás de toda ação humana há a vontade, ora determinada por um juízo sintético-prático a priori, ora por um juízo sintético-prático a posteriori. O primeiro juízo contém a fórmula do princípio supremo da moralidade, a qual deve consistir em uma vontade absolutamente boa. [41]

A boa vontade é o agir por dever. Diversamente, no juízo sintético-prático a posteriori, a vontade está relacionada à obtenção de um fim que não seja o próprio querer, mas algo externo, como a felicidade, a riqueza, o bem-estar... O agir é conforme ao dever. [42]

O princípio supremo da moral, portanto, está condicionado ao agir por dever. O direito, lado outro, influencia externamente o ato do sujeito: pode-se cumprir a lei para se furtar da sanção normativa, para receber as honrarias da honestidade ou mesmo para evitar aborrecimentos.

Os motivos que condicionam o cumprimento da lei são Imperativos Hipotéticos, porque revelam um agir conforme o dever. O direito constitui, portanto, um juízo sintético-prático a posteriori, porque influencia os atos por motivos diversos, dependentes sempre do mundo sensível (empírico).

A moral, por conseguinte, é fruto do juízo sintético-prático a priori, determinado uma conduta universal e necessária para todos os seres humanos, chamada de Imperativo Categórico. Para ser sintético-prático a priori, esse imperativo deve ter apenas forma, isto é, estar desprovido de qualquer conteúdo, como na matemática e na física, criando idéias formais (fórmulas) capazes de sustentar proposições universais e necessárias, sem se referir a um determinado objeto, mas apenas idealizando uma experiência possível. Para KANT, a forma do imperativo categórico é a seguinte: procede apenas segundo aquela máxima, em virtude da qual podes querer ao mesmo tempo que ela se torne em lei universal. [43]

A ação de seres humanos que jamais se viram e de culturas diferentes seria a mesma diante de uma semelhante situação se ambos agissem por dever, dado que agirão de maneira formal, o que tornaria a proposição (o ato) universal e necessário tal qual faz a física.

A consciência do dever é comum a todos os seres humanos, o que significa dizer que é a razão a legisladora da moral, bem como que somos livres, já que nossa vontade é autônoma (não está condicionada aos objetos desejados), estando determinada somente pela forma da lei. Muito embora esteja sujeito às leis da causalidade enquanto pertencente ao mundo sensível, o homem tem consciência de sua existência como ser livre numa ordem inteligível das coisas. [44]

Em Kant, ser livre é ser capaz de obedecer à razão, independentemente das inclinações do mundo sensível. A liberdade prática é a independência da vontade em relação a toda outra lei que não seja a lei moral. [45]

A distinção entre moralidade e legalidade fica, pois, bastante clara, como explica Bobbio: [46]

Em conclusão, é possível dizer de maneira sintética que, para que uma ação seja moral não é suficiente, segundo Kant, que seja coerente como o dever; é necessário eu seja também cumprida pelo dever.

Desta proposição Kant extrai o primeiro critério de distinção entre moralidade e legalidade. Tem-se a moralidade quando a ação é cumprida por dever; tem-se ao invés a pura e simples legalidade, quando a ação é cumprida em conformidade ao dever, mas segundo alguma inclinação ou interesse diferente do puro respeito ao dever. Em outras palavras, a legislação moral é aquela que não admite que uma ação possa ser cumprida segundo inclinação ou interesse; a legislação jurídica, ao contrário, é a que aceita simplesmente a conformidade da ação à lei e não se interessa pelas inclinações ou interesses que a determinam.

Apurada a distinção entre moralidade e legalidade, KANT propõe, ainda, a distinção entre ética e direito: [47]

As leis da liberdade chamam-se morais para distinguir-se das leis da natureza. Enquanto se referem somente às ações externas e à conformidade à lei chamam-se jurídicas; se porém exigem ser consideradas em si mesmas, como princípios que determinam as ações, então são éticas; dá-se o nome de legalidade à conformidade das ações com as primeiras, e de moralidade à conformidade com as demais.

Pode-se concluir que a moral, enquanto lei da liberdade, se utiliza de dois instrumentos, que são a ética e o direito, a fim de determinar as ações humanas. A ética serve à determinação de deveres internos, constituindo uma legislação interna, ao passo que o direito condiciona as ações humanas através dos deveres externos, como legislação externa. [48]

Como se disse alhures, a liberdade prática é a independência da vontade em relação a toda outra lei que não seja a lei moral. Entretanto, ética e direito influenciam essa liberdade, de modo a distingui-la entre liberdade interna e liberdade externa, sendo a primeira moral e, a segunda, jurídica: [49]

Por liberdade moral deve ser entendida, segundo Kant, a faculdade de adequação às leis que a nossa razão dá a nós mesmos; por liberdade jurídica, a faculdade de agir no mundo externo, não sendo impedidos pela liberdade igual dos demais seres humanos, livres como eu, interna e externamente.

Assim é que Bobbio, utilizando-se da distinção entre as aludidas liberdades, apresenta uma nova perspectiva sobre a noção de direito: [50]

Esta nova distinção permite uma perspectiva muito interessante sobre a noção de direito. Enquanto que, na moral, os outros existem, quando existem, somente como objeto ou como termo de referência da nossa ação, a qual possui valor moral independentemente de uma resposta qualquer do outro; no direito, os outros existem como sujeitos que exigem de mim o cumprimento da ação.

(...)

Podemos então dizer que a experiência jurídica é caracterizada pela correspondência de um direito a um dever e reciprocamente de um dever a um direito, ou pela presença simultânea de um dever de um lado e de um direito do outro: o que se chama relação jurídica.

Rumo à definição da idéia de direito, Kant traça, uma vez mais, uma distinção de conceitos, desta vez entre arbítrio e aspiração. Aquele revela a faculdade humana de desejar de forma consciente a produção de um objeto, enquanto esta está desprovida de tal consciência, o que fica mais claro nas palavras de Bobbio: [51]

"É meu desejo dar uma bela volta na montanha". "É meu arbítrio dar uma bela volta na montanha". O desejo é a representação de um objeto determinado colocado como fim; arbítrio é a representação de um objeto determinado colocado como fim; o arbítrio é, ainda mais, a consciência da possibilidade de alcançá-lo. Quando Kant diz que o direito consiste numa relação entre dois arbítrios, e não entre dois desejos, quer dizer que, para constituir-se uma relação jurídica é necessário que aconteça o encontro não somente de dois desejos, ou de um arbítrio com um simples desejo, mas de duas capacidades conscientes do poder que cada um tem de alcançar o objeto do desejo.

O direito é, para Kant, o conjunto das condições, por meio das quais o arbítrio de um pode estar de acordo como o arbítrio de um outro segundo uma lei universal da liberdade. [52] A função do direito é a de permitir a coexistência entre os diversos arbítrios. Considerando a liberdade o único direito natural, porque universal e necessário, Kant formula a idéia de direito a partir de um juízo sintético-prático a priori, universal, portanto, que é expresso pela seguinte fórmula: atue externamente de maneira que o uso livre do teu arbítrio possa estar de acordo com a liberdade de qualquer outro segundo uma lei universal. [53]

De tudo que já se disse, evidencia-se que, a todo tempo, Kant se ocupou do sujeito, não mais dos objetos, vez que é naquele e não nestes que está a fonte dos juízos sintéticos a priori. Toda a teoria kantiana se volta a explicar como o sujeito conhece os objetos, de forma atemporal, razão pela qual é chamada por ele de transcendental. [54]

Estabelecidas as bases do pensamento kantiano, passa-se, no tópico seguinte, à compreensão do conteúdo atribuído ao bem-comum pelo idealismo transcendental.

Sobre o autor
Leonardo Tibo Barbosa Lima

Servidor Público Federal e Professor da Faculdade de Pará de Minas - FAPAM. Mestre em Direito do Trabalho pela PUCMinas e especialista em Direito Público pela UGF/RJ

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Leonardo Tibo Barbosa. A justificativa da idéia de Estado no idealismo transcendental de Immanuel Kant. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2011, 2 jan. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12146. Acesso em: 22 nov. 2024.

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