1. É comum nos dias atuais, o interesse dos municípios brasileiros que, mediante abertura do devido processo licitatório, criam a possibilidade de outros bancos, que não os estatais, prestarem os serviços bancários, em caráter de exclusividade, da gestão dos recursos do pagamento de folha de pessoal, pagamento de fornecedores e prestadores de serviços.
2. Os municípios, sabedores da possibilidade de aumentar sua receita, em razão do interesse de inúmeras instituições financeiras em gerenciar a folha de pagamento de servidores públicos, resolvem licitar o depósito deste numerário em uma instituição financeira.
3. Tal atitude é lícita à luz do ordenamento jurídico brasileiro, máxime diante da dicção do art. 164, § 3º da Constituição Federal? É isto que se propõe analisar, ainda que de forma perfunctória, este sucinto artigo.
4.César Tibúrcio, Doutor em Contabilidade pela USP, já em 27/11/2007 noticiava em seu blog, Contabilidade Financeira, o fenômeno que já vinha de ocorrer, senão veja-se,
"A venda da administração das folhas salariais dos servidores públicos municipais aos bancos se tornou a mina das receitas nas prefeituras do País. Embora a prática ainda não tenha regras definidas, nos últimos dois anos, para obter o direito de gerenciar as contas de pagamentos dos funcionários municipais, os bancos têm promovido intensa disputa entre si e oferecido fortunas às prefeituras por esse serviço. Só as três maiores vendas individuais feitas nesse período já renderam às prefeituras de São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba receita total de cerca de R$ 1,02 bilhão.
Entre as grandes cidades, São Paulo e Rio, justamente as duas maiores do Brasil, foram as primeiras a fechar a vantajosa operação, ainda em 2005. Quando era administrada por José Serra (PSDB), São Paulo negociou sua folha de pagamentos com o Banco Itaú por R$ 510 milhões pelo prazo de cinco anos.
A Prefeitura do Rio de Janeiro fechou acordo com o Santander por R$ 370 milhões, também por cinco anos, obtendo recursos extras para obras dos Jogos Pan-Americanos. "Lucram a prefeitura e a instituição financeira", avalia o prefeito do Rio, Cesar Maia (DEM).
Curitiba fechou acordo também com o Santander, em julho passado, recebendo R$ 140,5 milhões pelo período de cinco anos. A disputa pela conta, que envolvia uma carteira com cerca de 39 mil servidores ativos e inativos, com volume de quase R$ 800 milhões, foi tão acirrada que reuniu na licitação quatro bancos privados. No caso da capital paranaense, os bancos chegaram a fazer ofertas bem superiores ao lance mínimo exigido, que era de R$ 80 milhões. Na primeira rodada da licitação, o Santander ofereceu R$ 121 milhões, o Bradesco, R$ 110 milhões, o Real, R$ 105 milhões e o Itaú, R$ 93 milhões.
Para decidir quem ficaria com a conta de Curitiba foi feito um leilão entre os bancos que apresentaram as três maiores ofertas e chegou-se ao lance final de R$ 140,5 milhões do Santander. Por conta desse tipo de negociação, a transação acabou superando, proporcionalmente, a rentabilidade do acordo feito por São Paulo dois anos antes, já que teve um rendimento per capita (divisão do valor da operação pelo número de funcionários) de R$ 3,6 mil contra R$ 2,4 mil conseguido pela prefeitura paulistana.
Salvador e Porto Alegre acertaram nas últimas semanas transações envolvendo suas folhas. Por R$ 100 milhões, o Bradesco ficou com a conta da capital baiana. Já a Caixa Econômica Federal desembolsou R$ 87,3 milhões para administrar com exclusividade os salários da capital gaúcha. A Prefeitura de Fortaleza deve ser a próxima a fechar negócio semelhante, devendo optar por um dos bancos do governo federal (Caixa ou Banco do Brasil), abrindo as conversas com um valor mínimo de R$ 60 milhões." Disponível em http://contabilidadefinanceira.blogspot.com/2007/11/folha-de-pagamento-como-ativo.html
5. A Justiça brasileira, instada a se manifestar sobre o tema, tem se pronunciado sobre os questionamentos oriundos deste gerenciamento dos recursos da folha de pagamento dos municípios. Destaca-se aqui um julgado do Tribunal de Justiça de Minas Gerais,
"Número do processo: 1.0479.06.105756-4/001(1)
Relator: ALBERGARIA COSTA
Relator do Acordão: ALBERGARIA COSTA
Data do Julgamento: 08/03/2007
Data da Publicação: 22/03/2007
Inteiro Teor:
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO CIVIL POR ATOS DE IMPROBIDADE. TERCEIRIZAÇÃO DOS SERVIÇOS DE PAGAMENTO. PERMISSÃO DE USO DE BEM PÚBLICO. LEGALIDADE. CRÉDITO DOS VENCIMENTOS DOS SERVIDORES EM BANCO PRIVADO. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO ARTIGO 164, § 3º, DA CF/88. INEXISTÊNCIA DE ONEROSIDADE DOS SERVIÇOS PRESTADOS. É lícita a licitação para terceirização dos serviços de pagamento de servidores e fornecedores do Poder Executivo Municipal. A permissão de uso de bem público é ato administrativo discricionário, que independe de autorização legislativa e não se confunde com a alienação. O pagamento dos vencimentos dos servidores públicos por meio de crédito em banco privado não viola o art. 164, § 3º, da Constituição Federal. O edital que prevê a gratuidade dos serviços prestados aos servidores é legal e não vulnera os vencimentos do funcionalismo municipal. Recurso conhecido, mas desprovido.". (grifos nossos)
6. Conforme já citado, na jurisprudência acima transcrita, do TJ de Minas Gerais, é de alvitre citar o art. 164, § 3º da Constituição Federal, que assim está redigido,
"Art. 164 – (...)
§ 3º. As disponibilidades de caixa da União serão depositadas no Banco Central; as dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e dos órgãos ou entidades do Poder Público e das empresas por ele controladas, em instituições financeiras oficiais, ressalvados os casos previstos em lei. (grifos nossos).
7. Nesta direção também é o prescrito no art. 43 da Lei de Responsabilidade Fiscal, Lei Complementar nº. 101/2000, a saber,
"Art. 43. As disponibilidades de caixa dos entes da Federação serão depositadas conforme estabelece o § 3º do artigo 164 da Constituição."
8. É cristalino que a Constituição Federal e a Lei de Responsabilidade Fiscal vedam que a disponibilidade de caixa dos entes federados seja movimentada em contas que não a de instituições financeiras oficiais.
9. Seria o crédito de folha de pagamento disponibilidade de caixa para os fins da Constituição Federal e da LRF 101/2000? Quem nos responde é o ilustre Subprocurador-Geral do Ministério Público Federal, Dr. Paulo da Rocha Campos, citado nos autos do RE 444.056/MG (apud, Ag.Reg na Reclamação nº 3.872-6-DF), pelo ministro-relator, Carlos Velloso, com texto assim disposto,
"7. É que, disponibilidade de caixa não se confunde com depósito bancário de salário, vencimento ou remuneração de servidor público, sendo certo que, enquanto a disponibilidade de caixa se traduz nos valores pecuniários de propriedade dos entes da federação, os aludidos depósitos constituem autênticos pagamentos de despesas, conforme previsto no art. 13 da Lei 4.320/64." (grifos nossos).
8. Como se observa, as disponibilidades de Caixa é que se encontram disciplinadas pelo artigo 164, § 3º da Constituição Federal, que nada dispõe sobre a natureza jurídica, se pública ou não da instituição financeira em que as despesas estatais, dentre a de custeio com pessoal, deverão ser realizadas.
9. Destarte, nada obsta que o Município desloque de sua disponibilidade de caixa, depositada em instituição oficial, "ressalvados os casos previstos em lei", valores para instituição financeira privada com o fim de satisfazer despesas com seu pessoal, como ocorrido no caso dos autos, desmerecendo reforma, portanto, o acórdão impugnado, vez que proferido na mesma linha deste entendimento". (grifos nossos).
10. Ainda nos autos do Ag.Reg. na Reclamação 3.872-6 Distrito Federal, o Ministro Cezar Peluso, da Suprema Corte, proferiu voto na mesma linha do parecer do ilustre representante do Ministério Público Federal, acima citado. Ou seja, distinguindo disponibilidade de caixa e depósitos bancários para fazer frente a despesas com pessoal e fornecedores. Assim o disse César Peluso,
"Sr. Presidente, pedindo vênia ao eminente Relator, entendo que disponibilidade de caixa é conceito técnico contábil e, evidentemente, não se confunde com verbas que, segundo os registros contábeis, são predestinadas e postas à disposição de terceiros, seja pessoal, fornecedores etc., os quais poderão levantar a quantia à vista ou, dependendo, se se tratar de servidor público, nada data correspondente ao pagamento. Portanto, não integram a noção de disponibilidade de caixa, que é exatamente uma diferença entre certos ativos e passivos em que essas verbas são incluídas. Aliás, e este não é argumento, o qual padeceria de vício lógico, se tais verbas constituíssem disponibilidade de caixa, os servidores públicos da União jamais poderiam receber pelo Banco do Brasil ou pela Caixa Econômica Federal, porque as disponibilidades de caixa, segundo o art. 164, § 3º da Constituição, têm de estar no Banco Central! Isto não é argumento, repito, porque seria um círculo vicioso, mas demonstra, na prática, empiricamente, que ninguém jamais pôs em dúvida que não se trata de disponibilidade de caixa". (grifos nossos).
11. No bojo dos debates deste importante julgamento, Rec. 3.872-AgR/DF, o Ministro Eros Grau em sua oportunidade, teceu importantes lições a respeito deste fenômeno de terceirização de folha de pagamento para instituições privadas. Vejamos,
"É bem verdade, no entanto, que o Estado pode e deve racionalizar a execução dos pagamentos de que se cuida, o supõe sejam eles feitos por determinada ou determinadas instituições bancárias. Por outro lado, daí decorre a criação de uma base de depósitos a que o mercado atribui certo valor. Isso não pode ser ignorado no modo de produção social capitalista, onde o mercado se impõe hegemonicamente sobre o social. A realidade é assim, inútil supormos que as razões do mercado não afetam a esfera estatal. Fazendo uso de um vocábulo criado no bojo do economês, aquela base de depósitos é "precificável". Ela não pode, porém, ser negociada de sorte a privilegiar-se determinada instituição financeira privatizada.
Assim, a seleção da instituição financeira habilitada ou das instituições financeiras habilitadas à realização dos pagamentos de que se trata também há de ser empreendida mediante licitação, sem comprometimento do princípio da isonomia." (grifos nossos) >
12. Pois muito bem, meu caro leitor e leitora. É esta base "precificável" – dicção do Min. Eros Grau – que os municípios almejam licitar, ou seja, a gestão por instituição financeira privada dos recursos da folha do pagamento municipal.
13.Ao fim e ao cabo, o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL firmou o seguinte entendimento nos autos do AGRAVO REGIMENTAL na RECLAMAÇÃO 3.872-6 – Distrito Federal, assim ementado:
"Constitucional – Estados – Distrito Federal e Municípios. Disponibilidade de Caixa. Depósito em Instituições Financeiras Oficiais. CF. art. 164, § 3º. Servidores Públicos. Crédito da Folha de Pagamento em conta em banco privado. Inocorrência de ofensa ao art. 164, § 3º da CF. (Relator originário – Min. Marco Aurélio. Relator para o acórdão – Min. Carlos Velloso. Agravante – União. Agravado – Partido Comunista do Brasil – PC do B. Brasília 14/12/2005 – D.J. 12.05.2006, ementário nº. 2232-2)."
14. De maneira que se os municípios brasileiros ao definirem o objeto da licitação, assim o fizerem sem o envolvimento da disponibilidade de caixa do município à luz do art. 164, § 3º da CF, parece-nos que francamente é legítimo o direito de a municipalidade licitar os serviços bancários para gestão dos valores atinentes à folha de pagamento, pelas razões supra aduzidas.
15. Todavia, ad cautelam, pensamos que mencionada alteração de instituição financeira, não deve e não pode criar ônus para os servidores públicos municipais, o que seria um despropósito, quanto mais no auge da crise econômica mundial que a todos atinge.
16.Concluímos então, afirmando que, ressalvado topicamente que a disponibilidade de caixa não pode ser licitada (art. 164, § 3º da CF) entendemos que a gestão financeira da folha de pagamento em conta em banco privado é lícita e constitucional com supedâneo no ordenamento jurídico brasileiro, notadamente, pelas razões acima elencadas.