A Resolução 286 do Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN), de 29 de julho de 2008, que entrou em vigor em 1º de janeiro de 2009, acabou com o tratamento diferenciado que tinham os veículos de repartições diplomáticas, consulares ou de organismos internacionais no Brasil. A grande inovação da normativa do CONTRAN é que, doravante, com o cadastramento de tais veículos (cujo prazo para as repartições estrangeiras vai até 31 de dezembro de 2009) no Registro Nacional de Veículos Automotores (RENAVAM), multas poderão ser-lhes aplicadas em caso de infrações de trânsito, o que anteriormente não ocorria.
A dúvida que deve assaltar os juristas diz respeito à eficácia dessa regulamentação na prática.
É princípio básico da teoria das imunidades diplomáticas e consulares que as situações não excepcionadas pelas normas internacionais das quais o país é parte – referimo-nos às convenções de Viena de 1961 e 1963, sobre relações diplomáticas e consulares, [01] respectivamente – têm sua regência estabelecida pelo direito local. As normas internacionais sobre imunidades diplomáticas e consulares citadas prevêem uma série de prerrogativas e privilégios, dentre as quais se encontram as imunidades fiscais. Mas como multas de trânsito não têm caráter fiscal [02] – são medidas administrativas –, não são imunizadas pelas exceções previstas naquelas convenções internacionais. Apenas o art. 31 da Convenção de Viena de 1961, sobre relações diplomáticas, diz que o agente diplomático "gozará [além da imunidade penal] também da imunidade de jurisdição civil e administrativa…". Mas esta disposição não revoga, por si só, a regra geral insculpida no art. 41, § 1º da mesma Convenção (e também no art. 55 da Convenção de Viena sobre Relações Consulares), que impõe a todas as pessoas que gozem desses privilégios e imunidades o dever de "respeitar as leis e os regulamentos do Estado acreditado". [03]
Outro aspecto importante a ser ressaltado é o de que as multas de trânsito não constituem qualquer sanção ao veículo, mas sim ao seu condutor. Não são sanções que decorrem da propriedade do bem, como são os impostos prediais. No caso das multas de trânsito, o proprietário do veículo não é por elas responsável se não estava na direção do automóvel quando do cometimento da infração. O art. 257, § 3º, do Código Nacional de Trânsito, é claro ao afirmar que "ao condutor caberá a responsabilidade pelas infrações decorrentes de atos praticados na direção do veículo", sendo o proprietário (nos termos do § 2º do mesmo art. 257) responsável somente "pela infração referente à prévia regularização e preenchimento das formalidades e condições exigidas para o trânsito do veículo na via terrestre, conservação e inalterabilidade de suas características, componentes, agregados, habilitação legal e compatível de seus condutores, quando esta for exigida, e outras disposições que deva observar". Caso o proprietário do automóvel receba notificação de multa por infração da qual não foi responsável terá 15 (quinze) dias de prazo, após a notificação da autuação, para apresentar (ou seja, para dizer quem é) o responsável pela infração e, apenas não o fazendo, é que será considerado responsável pela mesma (CNT, art. 257, § 7º).
Sendo a responsabilidade pelo pagamento das multas de trânsito do condutor do veículo (v.g., do membro da missão diplomática respectiva ou de um funcionário consular), fica a questão de saber se existem nas normas internacionais acima citadas (as Convenções de Viena de 1961 e 1963) imunidades relativas a desembolsos dessa espécie por parte de tais funcionários estrangeiros no Brasil.
Primeiramente, deve-se aqui diferenciar o veículo diplomático do seu condutor. Quanto ao veículo diplomático, o art. 22, § 3º, da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas o coloca a salvo de qualquer tipo de busca, requisição, embargo ou medida de execução. Veja-se a redação do dispositivo: "Os locais da Missão, seu mobiliário e demais bens neles situados, assim como os meios de transporte da Missão, não poderão ser objeto de busca, requisição, embargo ou medida de execução". Quanto ao condutor do veículo diplomático não há qualquer disposição na mesma norma internacional – salvo o já citado art. 31, § 1º, que garante imunidade administrativa ao agente diplomático – que o exonere do cumprimento das leis e regulamentos locais.
Assim, a primeira conclusão que se chega é a de que as multas de trânsito podem ser impostas pelo Estado aos condutores de veículos oficiais de Embaixadas ou Consulados no Brasil, os quais se sujeitam às nossas leis e regulamentos, devendo assim respeitá-las.
O problema é que o não pagamento de multa de trânsito só encontra meio satisfatório para o recebimento do crédito (que integra os créditos da Fazenda Pública) na execução forçada prevista na Lei no 6.830, de 22.09.80, que dispõe sobre a cobrança judicial da Dívida Ativa da Fazenda Pública. É evidente que o não licenciamento dos veículos com multa ainda não paga é um meio prático de impor ao cidadão presteza para a satisfação do débito, a fim de resgatar seu veículo eventualmente apreendido por autoridade de trânsito por ter trafegado em via pública sem o devido licenciamento. Ocorre que em se tratando de veículos oficiais (das Embaixadas, por exemplo) os mesmos são invioláveis pelas Convenções de Viena (de 1961 e 1963) citadas, não podendo "ser objeto de busca, requisição, embargo ou medida de execução", como já referido.
Assim, a segunda conclusão que se chega é a de que, não obstante as multas poderem ser lançadas contra os condutores de veículos de Embaixadas ou Consulados, o não-licenciamento desses veículos não impedirá que os mesmos continuem trafegando, pois, sendo os mesmos invioláveis, nenhuma autoridade de trânsito poderá apreendê-los. Portanto, apesar de salutar a Resolução 286 do CONTRAN, tem-se que os seus efeitos serão mais morais do que propriamente jurídicos.
É importante que os diplomatas e funcionários consulares se conscientizem de que parar carros oficiais em determinados lugares (v.g., como em vagas para idosos ou para deficientes) ou ultrapassar a velocidade permitida em determinada localidade não é bom para as relações entre o seu país de origem e o Brasil. Ocorre que esses funcionários estrangeiros têm imunidade à jurisdição do Estado brasileiro (acabando assim por frustrar uma ação de execução forçada proposta contra eles no Brasil) e seus veículos em caráter oficial são invioláveis (não podendo ser apreendidos por falta de licenciamento). E o que se poderá fazer em caso de teimosia de um funcionário estrangeiro em respeitar as leis e os regulamentos brasileiros? Neste caso, o Brasil poderá declará-lo persona non grata no país (exigindo sua retirada do território nacional) e, em último caso, romper relações com o seu Estado de origem, o que, evidentemente, jamais ocorrerá em se tratando de uma "simples" multa de veículo automotor. Problemas como este são questões diplomáticas, cabendo à diplomacia (mais do que a qualquer regulamento) primar por resolver.
Notas
- Ambas ratificadas e em vigor no Brasil. A primeira foi aprovada pelo Decreto Legislativo 103, de 18.11.1964, ratificada na ONU em 25.03.1965, e promulgada pelo Decreto 56.435, de 08.06.1965. A segunda foi aprovada pelo Decreto Legislativo 6, de 05.04.1967, ratificada em 11.05.1967, e promulgada pelo Decreto 61.078, de 26.07.1967.
- Veja-se o art. 3º do Código Tributário Nacional: "Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada".
- Estado "acreditado" é aquele que recebe a missão diplomática em seu território; e "acreditante" é o Estado que envia a missão para outro Estado.