RESUMO
Os ideais das revoluções liberais européias conferiram à propriedade caráter absoluto, perpétuo e exclusivo. Tal concepção só começou a ser alterada com o Estado do Bem Estar Social, até chegar à Constituição Federal de 1988, que tratou exaustivamente da função social da propriedade. A posse, no entanto, jamais teve reconhecida sua função social, seja pela lei, seja pela doutrina, já que a Teoria de Ihering a restringiu a mera exteriorização da propriedade. Todavia, a posse é autônoma em relação à propriedade, e, em determinadas circunstâncias, é possível, inclusive, que ela prevaleça sobre o direito de propriedade. Assim como o proprietário, o possuidor é detentor de direitos, e quando ponderados, raramente o direito patrimonial daquele deve suplantar os direitos existenciais deste, ainda mais quando o proprietário abusa de seu direito.
PALAVRAS-CHAVE: Abuso de direito, função social, propriedade, posse, proporcionalidade.
1 INTRODUÇÃO
O homem é, por natureza, tendente a apropriar-se das coisas que lhe interessam. O "ter" sempre representou papel relevante perante o "ser". Ter é poder. Por longos séculos a propriedade afigurou-se como principal razão de ser do homem. Por isso, os ordenamentos jurídicos sempre buscaram conferir proteção absoluta e exclusiva aos bens sobre os quais alguém exerce direito de propriedade.
Todavia, a experiência histórica tem demonstrado que a ambição e o egoísmo provocaram séria desigualdade social e insatisfação popular. Isso, aos poucos, levou o homem a reconhecer uma nova escala de valores, dando ao ser humano o devido respeito, em detrimento do patrimônio. Foi então que surgiram as noções de função social e abuso de direito, que limitaram a propriedade.
Entretanto, nesse quadro evolutivo, a posse ainda não conquistou seu espaço merecido, e continua sendo mera exteriorização da propriedade. A teoria objetiva de Ihering suprimiu da posse sua autonomia. Em razão disso, não se encontra expresso em textos legais e pouco se houve a doutrina falar em função social da posse, muito embora, por vezes, é ela que confere função social à propriedade.
Faz-se necessário rever essa inferioridade da posse perante a propriedade, pois não mais se tutela exclusivamente o patrimônio. É preciso enxergar o possuidor como pessoa, e conferir-lhe a tutela que merece. Afinal, quando são colocados o direito patrimonial do proprietário e a dignidade humana do possuidor na balança da justiça, equilibrada pelo princípio da proporcionalidade, parece incontroverso que o prato só pode pender para esse último.
2 BREVE INCURSÃO HISTÓRICA
Já se afirmou que "a história da propriedade é a história do egoísmo". (ROSENVALD, 2004, p 27). Desde que o homem tomou algo para si, esquecendo-se dos demais, começaram os conflitos de interesse respaldados sobre a mesma coisa.
A primeira manifestação concreta de uma propriedade privada foi o heredium, do Direito Romano, que era um lote de terra atribuído ao chefe de família sobre o plantio (GALIL, 2003). A partir daí os ordenamentos passaram a tutelar a propriedade privada, uma vez que, nas civilizações anteriores, a propriedade era coletiva.
Entretanto, o modelo de proteção à propriedade que influenciou diretamente o direito brasileiro advém do Código Civil Francês (Napoleônico), elaborado logo após o fim da Revolução Francesa. É a esse momento histórico que se tem que focar para entender os motivos de até hoje a posse ser tão inferiorizada perante a propriedade.
Na França pré-revolucionária, o poder político estava nas mãos do rei, que oprimia a vontade da burguesia, a real detentora do poder econômico. Quando os burgueses tomaram o poder, com a queda da Bastilha, em 1789, sua intenção era poder negociar sem a ingerência estatal, exercendo plenamente sua autonomia privada.
Foi elaborado, então, um Código Civil, que visava regulamentar essas relações interpessoais. É evidente, que, pelo contexto histórico, esse Código tinha um viés extremamente liberal e patrimonialista, com a máxima proteção imaginável à propriedade privada e evidente desprezo ao aspecto social. Era um código "produto de uma concepção individualista, da exaltação das liberdades individuais e da mínima intervenção do Estado na organização social, sem, contudo, bafejar à propriedade qualquer brisa socializante". (CAVEDON, 2003).
Foi esse Código que inspirou Clóvis Beviláqua na elaboração do Código Civil Brasileiro de 1916. Chegava tardiamente no Brasil a concepção liberal, que pouco após a Primeira Guerra Mundial cederia espaço ao Estado do Bem Estar Social.
A propriedade egoística somente passou a observar o quadro social com a Constituição de 1934, que trouxe em seu bojo, no artigo 113, inciso 17, o seguinte texto: "É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar".
Mas, a expressão "função social da propriedade" foi utilizada pela primeira vez no Estatuto da Terra, de 1964, nos artigos 2, 12, 13, 18 e 47. E só foi alçada ao status constitucional em 1967, no artigo 157, inciso III.
A Constituição Federal de 1988, ressaltando a relevância do instituto, foi pródiga ao tratar da função social. Considerou-a direito fundamental individual (art. 5º, XXIII) e como princípio geral da atividade econômica (art. 170, III). Foi, também, levada em consideração para a política urbana (art. 182, § 2º) e para a reforma agrária (art. 184 a 186). A Constituição trouxe, inclusive, em seu texto, os requisitos para o cumprimento da reforma agrária do imóvel rural.
3 FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E DA POSSE
A expressão "função social" foi cunhada com termos intencionalmente imprecisos, para permitir o preenchimento de seu significado em cada caso concreto, de acordo com os direitos fundamentais em jogo. A isso se dá o nome de cláusula geral, que, nesse caso, é garantida constitucionalmente (art. 5º, XXIII), não podendo, portanto, ser extirpada do ordenamento, por se tratar de cláusula pétrea.
Tem fundamento no princípio da solidariedade, insculpido como objetivo fundamental da República no artigo 3º, inciso I, da Constituição Federal, que exige a observância de toda a sociedade como igual detentora de direitos.
Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves, em obra conjunta, chamam a atenção no sentido de que é redundante falar em função social de direto, haja vista ser o direito voltado a pacificar a sociedade. No entanto, a arraigada cultura individualista forçou o constituinte a trazer expressamente na Carta Magna um princípio óbvio. Nas palavras dos próprios autores:
A ordem jurídica não é casual, mas é normativamente ordenada para finalidades, sendo que o fim do direito é o bem comum. A ausência de finalidade provoca a perda da base de legitimidade substantiva do ordenamento. É até mesmo redundante indagar acerca de uma função social do direito, pois pela própria natureza das coisas qualquer direito subjetivo deveria ser direcionado ao princípio da justiça e bem estar social. Porém, o individualismo exacerbado dos dois últimos séculos deturpou de forma tão intensa o sentido do que o que é direito subjetivo, que foi necessária a inserção do princípio da função social nos ordenamentos contemporâneos para o resgate de um valor deliberadamente camuflado pela ideologia então dominante. (FARIAS e ROSENVALD, 2006, p. 201)
Apontam os civilistas que houve uma deturpação do que seja direito subjetivo. Isso é de extrema relevância, afinal, a função social é inerente a todo direito subjetivo. Dessa forma, o princípio da função social é aplicável à propriedade, à posse, a todos os demais direitos reais, ao direito de família, das sucessões, das obrigações, da responsabilidade civil, enfim, a todos os ramos imagináveis em que haja um direito subjetivo. Mesmo dentro do direito de propriedade, é aplicável à propriedade móvel, imóvel, urbana, rural, intelectual e assim por diante.
É tão evidente a amplitude desse princípio que o Papa, pessoa alheia ao direito, muito antes da Constituição de 88, constatou que: "Sobre cada propriedade privada pesa uma hipoteca social". [01]
A função social foi elevada a patamar de garantia constitucional no inciso XXIII, do artigo 5º, que é topologicamente posicionado de forma estratégica, imediatamente depois do inciso que garante o direito de propriedade. Isso significa que o Estado deve garantir o direito de propriedade, mas somente quando atender à sua finalidade social.
A propriedade egoística não merece tutela, pelo contrário, é duramente repelida pelo ordenamento. Basta recordar institutos sancionatórios, tais como: o parcelamento e a edificação compulsória (art. 5º do Estatuto da Cidade), o IPTU progressivo (art. 153, § 4º, I, CF) e a desapropriação sanção (art. 182, § 4º, III, CF).
Trata-se, portanto, de uma limitação ao exercício da propriedade descompromissado com o fenômeno social.
Todavia, o tratamento legislativo concedido à função social da propriedade, que, repita-se, está positivado até mesmo na Constituição, não é o mesmo dispensado à posse. E, pelo fato de não estar expresso, boa parte da doutrina simplesmente ignora sua existência.
Mas a função social da posse existe e é muito mais evidente do que a da propriedade. É nesse sentido a respeitável lição do Ministro Teori Albino Zavascki, digna de transcrição:
A função social da propriedade, realiza-se ou não, mediante atos concretos, de parte de quem efetivamente tem a disponibilidade física dos bens, ou seja, do possuidor. (...) Bem se vê, destarte, que o princípio da função social diz respeito mais ao fenômeno possessório que ao direito de propriedade. Referida função "é mais evidente na posse e muito menos na propriedade", observa a doutrina atenta, e daí falar-se em função social da posse. (ZAVASCKI, 2007)
Toda essa arraigada discriminação em relação à posse decorre de sua Teoria Objetiva, criada por Ihering. Segundo essa teoria, a posse é a conjugação de corpus (relação exterior entre o proprietário e a coisa, demonstrando ser aquele o detentor desta) e animus (ato de proceder conforme habitualmente o faz o proprietário, independentemente de querer ser dono). A partir dessa construção conclui-se que a vontade de ser dono é irrelevante para se aferir a existência ou não do fenômeno possessório, daí o nome de teoria objetiva. Em decorrência disso, a posse passa a ser mera visibilidade do domínio, ou seja, é possuidor aquele que tem aparência de ser proprietário. A esse respeito, Caio Mário conclui:
A posse, em nosso direito positivo, não exige, portanto, a intenção de dono, e nem reclama o poder físico sobre a coisa. É a relação de fato entre a pessoa e a coisa, tendo em vista a utilização econômica desta. É a exteriorização da conduta de quem procede como normalmente age o dono. É a visibilidade do domínio. (PEREIRA, 2004, p. 22).
Sendo a posse mera exteriorização da propriedade, o direito possessório resta prejudicado em sua autonomia. Não se tutela o possuidor como pessoa, mas sim o direito patrimonial daquele que aparenta ser proprietário. E, partindo da idéia de que o proprietário geralmente é o possuidor, essa teoria trata as ações possessórias como um meio célere de proteger o direito de propriedade, o que retrata um evidente absurdo. Isso fica bem nítido em passagem encontrada na doutrina a respeito da posse injusta. Confira-se:
A ordem jurídica protege também a posse injusta. À objeção, segundo a qual não é próprio do direito conceder proteção ao comportamento antijurídico, responde Ihering que a proteção dada ao possuidor injusto tem em vista a visibilidade da propriedade, e não a pessoa do que injustamente possui. De acrescer será, ainda, que a lei protege aquele que adquire a posse viciosamente contra terceiros, mas não contra a vítima. (PEREIRA, 2004, p. 27).
Ora, o vigente ordenamento jurídico-constitucional não mais permite se imaginar a posse dessa maneira clássica. O direito tem passado, ultimamente, por uma revolução, que deslocou, do patrimônio para a pessoa humana, o centro e finalidade da tutela jurisdicional. Dessa forma, o possuidor merece tutela possessória por ser detentor de direitos, tais como direito de acesso à propriedade, à moradia, ao mínimo vital e à dignidade humana, e não por aparentar ser dono. Nos dizeres da mais aclamada doutrina:
Em verdade, tutela-se a posse como direito especial, pela própria relevância do direito de possuir, em atenção à superior previsão constitucional do direito social primário à moradia (art. 6º da CF – EC 26/01), e o acesso aos bens vitais mínimos hábeis a conceder dignidade à pessoa humana (art. 1º, III, da CF). A oponibilidade erga omnes da posse não deriva da condição de direito real patrimonial, mas do atributo extrapatrimonial da proteção da moradia como local de resguardo da privacidade e desenvolvimento da personalidade do ser humano e da entidade familiar. (FARIAS e ROSENVALD, 2006, p. 40)
Tais direitos do possuidor, à toda evidência, amesquinham o direito patrimonial do proprietário. E, felizmente, o legislador do Código Civil de 2002, apesar de adotar a teoria de Ihering, começou a perceber essa excrescência. Tanto isso é verdade que trouxe no bojo do novo diploma legislativo significativos meios de tutela ao possuidor, como: a desapropriação judicial indireta (art. 1.228, § 4º), a redução do prazo aquisitivo de usucapião (arts. 1.238 e 1.242) e a proibição da exceção de domínio. (FARIAS e ROSENVALD, 2006, p. 43).
Mas há, ainda, muito a ser evoluir até que a comunidade jurídica contemple a posse como direito autônomo à propriedade. Afinal, esses direitos não são antagônicos e sim complementares, conforme ensina o ministro Teori Albino Zavascki:
Tal princípio [da função social da posse] não está, de forma alguma, confinado a mero apêndice do direito de propriedade, a simples elemento configurador de seu conteúdo (...) Fenômenos jurídicos autônomos, posse e propriedade convivem, de um modo geral, harmonicamente, em relação de mútua complementaridade, refletindo, cada um deles, princípios constitucionais não excludentes, mas, ao contrário, também complementares reciprocamente. (ZAVASCKI, 2007).
Enquanto essa evolução não acontece no plano legislativo, é preciso que o juiz, no caso concreto defina quem é o real merecedor da tutela possessória, suprindo as lacunas existentes. Exemplo recorrente de tensão entre possuidores e proprietários e que não se encontra previsto no texto legal são os conflitos possessórios agrários, em que um grande número de pessoas invade a propriedade de alguém para ali utilizar a terra e manifestar pela necessidade da reforma agrária.
Tal invasão, se ocorrer em propriedade produtiva e que cumpre sua função social, merece ser rapidamente desconstituída, e é, inclusive, taxada de criminosa (art. 161, § 1º, II c/c art. 288, CP).
Todavia, caso o proprietário seja relapso em seus deveres sociais, essa invasão é legítima e merece prevalecer sobre o direito patrimonial mal exercido. Afinal, os diversos possuidores têm o direito de acesso à propriedade e ao mínimo vital. Estão em jogo direitos existenciais de uma coletividade contra o direito patrimonial de um proprietário inadimplente com a sociedade, e a ponderação de interesses constitucionais só pode preferir o primeiro. Neste caso, até mesmo a conduta, que poderia ser considerada delituosa, vem sendo tratada como lícita pela jurisprudência, já que os possuidores têm o direito subjetivo de exigir a concretização da reforma agrária, que é uma obrigação imposta ao Estado pela Constituição. (ZAVASCKI, 2007). A esse respeito a seguinte jurisprudência da lavra do Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro:
A Constituição da República dedica o Capítulo III, do Título VII à Política Agrícola e Fundiária e à Reforma Agrária. Configura-se, portanto, obrigação do Estado. Correspondentemente, direito público, subjetivo de exigência de sua concretização. No amplo arco dos Direitos de cidadania, situa-se o direito de reivindicar a realização dos princípios e normas constitucionais. A Carta Política não é mero conjunto de intenções. De um lado expressa o perfil político da sociedade, de outro, gera direitos. É, pois, direito reclamar a implantação de reforma agrária. Legítima a pressão aos órgãos competentes para que aconteço, manifeste-se historicamente. (...) Tenho o entendimento, e este Tribunal já o proclamou, não é de confundir-se ataque ao direito de patrimônio com o direito de reclamar a eficácia e efetivação de direitos, cujo programa está colocado na Constituição. Isso não é crime; é expressão do direito de cidadania. (STJ, HC 5.574/SP, DJ 18/08/1997, p. 37.916).
Dessa forma, é possível perceber que o que vai legitimar ou não a ação do possuidor é o cumprimento ou não da função social por parte do proprietário. Isso porque o direito de propriedade exercido sem função social significa um abuso de direito.
4 ABUSO DO DIREITO DE PROPRIEDADE
Clóvis Beviláqua tem um esclarecedor conceito de abuso de direito. Segundo ele, ocorre abuso de direito quando "o titular de um determinado direito subjetivo o exerce sem respeitar os interesses dos demais indivíduos e da sociedade." (BEVILAQUA, 1936, p. 425)
O direito é exercido com abuso, portanto, quando desrespeita sua função social.
Perceba-se que o titular do direito de propriedade, por exemplo, em princípio, tem o direito e pode livremente exercê-lo. Mas esse exercício deve observar toda a coletividade como igual detentora de direitos, ou será abusivo.
Assim, a teoria do abuso de direito impõe limites éticos ao exercício de direitos subjetivos. Afinal, não há direitos absolutos no atual sistema jurídico-constitucional, de forma que todo e qualquer direito subjetivo, ao ser exercido, deve respeitar os fins sociais e econômicos. (FARIAS, 2005, p. 470).
É no mesmo sentido a lição de Orlando Gomes, digna de transcrição:
O abuso de direito deriva de uma concepção relativista dos direitos. É um conceito amortecedor, cuja função precípua é aliviar os choques freqüentes entre a lei e a realidade. (...) Serve como técnica de reanimação de uma ordem jurídica agonizante, fórmula elástica para reprimir toda ação discrepante de novo sentido que se empresa ao comportamento social. (GOMES, 2005, p. 131)
E o abuso de direito reflete uma responsabilidade objetiva, ou seja, que não admite discussão de culpa para existir o dever de indenizar. Assim, nada mais justo do que punir o proprietário relapso em favor dos possuidores, que viram a propriedade invadida como um imóvel ocioso.
A doutrina até já admite algo parecido com isso: a supressio e a surrectio. Cristiano Chaves esclarece tais conceitos:
Supressio é o fenômeno da perda, supressão, de determinada faculdade jurídica pelo decurso do tempo, ao revés da surrectio que se refere ao fenômeno inverso, isto é, o surgimento de uma situação de vantagem para alguém em razão do não exercício por outrem de um determinado direito, cerceada a possibilidade de vir a exercê-lo posteriormente. (FARIAS, 2005, p. 477).