No último dia 28 de janeiro de 2009 o Prof. Claus Roxin recebeu o título de Doutor "Honoris Causa" na Universidade de Huelva (Espanha) (foram seus padrinhos Juan Carlos Ferré Olive e Miguel Ângel Nuñez de Paz). O Coro Universitário interpretou, na abertura dos trabalhos, o "Veni, Creator Spiritus" (Venha, Espírito Criador). Nada mais adequado e oportuno. Desde 1970 o Prof. Roxin transformou-se num divisor de águas (no Direito Penal). É o antes e o depois (dele). Seu funcionalismo moderado ou teleológico (que não tem nada a ver com o funcionalismo radical ou sistêmico do prof. Jakobs) já não pode (de modo algum) ser ignorado pelos professores, estudantes ou operadores jurídicos. Ensinar Direito penal hoje sem a doutrina de Roxin é não ensinar direito nem muito menos penal.
No seu discurso de agradecimento o citado professor fez uma síntese (bastante apertada, claro, pelo tempo que tinha) da sua máxima contribuição científica para a evolução do sistema punitivo. Reiterou suas três grandes teses: (a) a relação que deve existir entre Direito penal e Política criminal; (b) a teoria da imputação objetiva e (c) a necessidade concreta de pena. Vamos recordá-las brevemente.
Franz von Liszt (no final do século XIX) afirmou que "o Direito penal é a barreira infranqueável da Política criminal" (ou seja: todas as postulações de política criminal deveriam ser feitas fora do Direito penal, não se admitindo a interferência dela neste último; seriam duas ciências separadas, incomunicáveis). Roxin (a partir de 1970) modificou radicalmente essa premissa: para ele os postulados de política criminal devem ser introduzidos dentro do Direito penal e mesclados com todas as suas mais importantes categorias. Exemplo: quando se estuda a tipicidade, não se pode ignorar o princípio da insignificância (para excluir do Direito penal as ofensas bagatelares, ínfimas). A subtração de um palito de fósforo, formalmente, está descrita no art. 155 do CP. Materialmente falando, entretanto, é um absurdo usar o Direito penal (a pena de prisão) para punir essa subtração. A conduta de subtrair, como se vê, nem sempre constitui um furto.
No plano dogmático parte o Prof. Roxin da premissa de que o injusto não pode se confundir com a culpabilidade. Do injusto penal fazem parte a tipicidade e a antijuridicidade. Tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade são categorias absolutamente imprescindíveis para a compreensão do Direito penal. Se as três integram ou não o conceito de delito é tema mais complicado (há várias correntes a esse respeito). Mas que são indispensáveis (para a imposição de uma pena) ninguém duvida. Aliás, para nós, elas, ao lado das categorias da norma, da punibilidade e da pena formam o sexteto mais relevante do Direito penal.
O injusto penal (disse o Prof. Roxin) tem por escopo a proteção dos bens jurídicos mais importantes (ou seja: ele visa a assegurar a convivência com respeito aos direitos humanos e à democracia). O Estado não pode proibir tudo que queira (porque o Direito penal é instrumento de ultima ratio). Moral não se confunde com o Direito (por força do princípio da secularização). Nem tudo que é imoral deve ser um ilícito penal. O Estado não pode criminalizar as pessoas que afetam bens próprios (que atacam a si mesmas) (princípios da ofensividade e da alteralidade). Todos esses princípios, que possuem caráter, sobretudo, político criminal, não podem mais ficar divorciados do Direito penal.
Ainda no plano dogmático, firmadas todas as premissas enunciadas, é certo que o professor Roxin trouxe para o âmbito do injusto penal uma grande novidade: a teoria da imputação objetiva, que está fundada em algumas regras básicas: (a) a conduta do agente deve ser valorada e só é penalmente relevante quando cria ou incrementa um risco proibido relevante; (b) o resultado só é penalmente relevante quando decorre do risco proibido criado (nexo de imputação); (c) o resultado deve fazer parte do âmbito de proteção da norma penal. Em síntese, o Direito penal só pode proibir riscos não permitidos. E o resultado deve ser imputado a esse risco.
Crime, portanto, é a realização de um risco não permitido. Crime não é só causar um resultado (causalismo), não é só atuar finalísticamente (finalismo). A vontade maliciosa (por si só) nem sempre significa um crime. No plano material a conduta deve ser devidamente valorada de acordo com os critérios da criação de risco, diminuição de risco, resultado imputável a esse risco etc. Tudo isso não existia (nestes termos, pelo menos) no Direito penal, até 1970. O modelo de Direito penal de Roxin veio para substituir os modelos anteriores (causalismo, neokantismo e finalismo). Reitero: não se pode perder de vista o antes e o depois.
No plano da culpabilidade (o sujeito só pode ser reprovado se podia se motivar de acordo com a norma e se podia se comportar conforme o Direito) a novidade introduzida pelo Prof. Roxin (e que foi sublinhada na sua intervenção em Huelva) é a seguinte: a pena não depende só da culpabilidade do agente, mais que isso, ela está guiada por exigências de prevenção. A pena está orientada preventivamente e só tem sentido quando necessária. A culpabilidade é o limite máximo da pena. Sua necessidade preventiva é um dos fundamentos da sua imposição. Pode haver renúncia total dessa pena, quando desnecessária (no caso concreto). Caso concreto julgado em Frankfourt: um policial praticou tortura contra uma pessoa para salvar a vida de uma outra pessoa (seqüestrada). A tortura é proibida. Crime existiu. Mas o Tribunal acabou apenas admoestando o agente, por entender desnecessária a pena no caso concreto (visto que o agente atuou para salvar uma vida). Essa é uma causa supralegal de exclusão da responsabilidade criminal.
A doutrina do Prof. Roxin está servindo de base para nossa tese da irrelevância penal do fato. Há casos concretos em que, não sendo possível aplicar o princípio da insignificância, a pena se torna totalmente desnecessária. Nessas situações o juiz aplica uma causa supralegal de exclusão da responsabilidade criminal.