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Função social da propriedade

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Agenda 08/03/2009 às 00:00

3 MEIOS PARA A IMPLEMENTAÇÃO DA FUNÇÃO SOCIAL

Os fundamentos da intervenção estatal na propriedade repousam, em análise última, na necessidade de proteção do Estado aos interesses da comunidade. Os interesses coletivos representam o direito do maior número, e, por isso mesmo, quando em conflito com os interesses individuais, devem se sobrepor a esses, em atenção ao direito da maioria, que é base do regime democrático.

A possibilidade dessa intervenção, sem nenhuma dúvida, representa mudança de paradigma na sistemática da propriedade privada, como dito, fenômeno sociológico que, em certas passagens assumiu "ares sagrados", vide a experiência burguesa que ensejou a Revolução Francesa.

Basicamente são três as modalidades através das quais o Estado é tomado por proprietário. A primeira, chamada originária, aponta que o Estado, antes de ninguém, em razão de não depender de um ato de titular anterior, seria o titular do domínio. Coloquialmente, não sendo de ninguém é do Estado, como se seu domínio fosse imanente e subsidiário em relação a todos os demais, razão, por exemplo, de existir a herança vacante.

Com a aquisição derivada, segunda forma de o Estado ser proprietário, vivencia-se atos em essência negociais, onde as regras civilistas orientam a relação entre o Estado e o particular, caso, por exemplo, compra e venda. A relação do Estado com o particular, in casu, não obstante é de "iguais".

A terceira forma de aquisição da propriedade se operacionaliza através da regras do Direito Administrativo, tendo por base o inscrito na Constituição. Assim se vivencia, por exemplo, o procedimento administrativo da desapropriação, chamada por Bandeira Mello "forma originária de aquisição da propriedade" [69], ainda que não denote a originariedade axiológica, eis que, neste caso, há a interferência de um titular anterior.

A par da desapropriação, forma de aquisição na propriedade, pode ser que o interesse estatal não seja obtenção do domínio. Tal ponderação, somada à mudança basilar sofrida no entendimento da noção de função social, fez com o legislador brasileiro introduzisse em nosso ordenamento institutos como a servidão administrativa, a requisição temporal e o tombamento, temas dos próximos itens. Não denotam mudança de domínio, mas uma espécie de limitação a este, a qual deve ter sempre por base o interesse publico, legitimador último de qualquer intervenção na propriedade que se pretenda alinhada aos ditames jurídicos constitucionais.

3.1 DESAPROPRIAÇÃO

Dentre as vias de que dispõem o poder público para intervir na propriedade destaca-se a desapropriação [70], que é a mais drástica das formas de manifestação do poder de império [71], da Soberania interna do Estado no exercício de seu domínio eminente sobre os bens existentes no território nacional.

Manifesta-se o fenômeno em comento pela retirada de um bem do patrimônio do particular [72] para que este atenda a uma demanda fundada na utilidade ou na necessidade pública ou, ainda, no "interesse social" [73].

Desapropriação é a transferência compulsória da propriedade particular – ou pública de entidade de grau inferior para o superior – para o Poder Público ou seus delegados [74].

A desapropriação fundada em utilidade e necessidade pública está disciplinada, basicamente, pelo Decreto-lei 3365/41. Noutro giro, a desapropriação fundada em interesse social é disciplinada pela Lei 4132/62.

Outra espécie bastante em voga é aquela que se destina aos fins de reforma agrária, cujo fundamento é o interesse social inserto no art 184 da CF. Essa forma de desapropriação é via de que pode se valer apenas a União Federal, já que a competência para tal ato lhe é privativa, para implementar políticas rurais.

No que concerne à via de implementação da modalidade expropriatória em tela, destacamos que esta se dá através de pagamento em títulos da dívida agrária, podendo se estender tal pagamento por até 20 anos.

Ainda no trato das espécies de desapropriação deve ser informada a desapropriação sanção, inscrita no art 182 da Carta Magna. Esta também se baseia no interessa social [75], mas, como o próprio nome permite inferir, é uma forma de pena para o proprietário que deu destinação à sua propriedade que contraria a ordem vigente. Nesse caso, não há que se falar em indenização, já que a retirada compulsória do domínio decorre do fato de o particular estar, por exemplo, plantando substâncias entorpecentes em seus domínios, o que é claramente contrário ao nosso sistema.

A desapropriação é um procedimento administrativo que se realiza em duas fases: a primeira, de natureza declaratória, é consubstanciada pela indicação da necessidade/utilidade pública ou o interesse social pelo agente expropriador; a segunda, de caráter executório, compreende a estimativa da "justa indenização" e a transferência do bem expropriado para o domínio do expropriante.

Embora possam ser suscitadas dúvidas sobre a natureza da desapropriação, se procedimento ou ato administrativo, nosso entendimento é no sentido de essa ser um procedimento, posto que se efetiva através de uma sucessão ordenada de atos intermediários – declaração de utilidade, avaliação e indenização – que visa à obtenção de um ato final: a adjudicação do bem pelo Poder Público ou seu delegado, destinatário da atividade expropriativa.

Nossa Constituição impõe alguns requisitos para que a desapropriação possa se consumar. Esses requisitos vêm ao encontro do reconhecimento da propriedade enquanto fenômeno afeito ao Direito, que, por isso, deve ser respeitada. Assim, qualquer medida que a contrarie, frise-se, deve ser adotada em sede de regime excepcional.

Os aludidos requisitos são a ocorrência de necessidade/utilidade pública ou o interesse social que devem estar associados, em regra, ao prévio e justo pagamento em dinheiro. Há também a possibilidade de o pagamento ser feito através de títulos especiais da dívida pública, caso dos imóveis rurais desapropriados com o fito de se implementar políticas agrárias, consoante locução dos artigos 153, § 22 e 161, §§ 1º a 5º, ambos da Constituição em vigor.

Os casos a ensejar a desapropriação acham-se taxativamente relacionados por lei em dois grupos. Primeiramente destacamos os casos em que o fundamento da medida expropriante seja a necessidade ou utilidade pública, inscritos no art. 5º [76] do Decreto-lei 3.365/41, que pela dilação transcrevemos em notas. Outra possibilidade de expropriação legítima é a fundada na utilidade pública, prevista no art. 2º [77] da Lei 4.132/62, também explicitada de forma indireta em razão da extensão do texto.

Tendo em vista serem mutáveis as realidades conjunturais, destacamos, desaparecendo as razões que ensejaram o procedimento expropriatório, afigura-se possível, em tese, a desistência de tal procedimento expropriatório.

Assim, como a desapropriação é medida excepcional, também o é a desistência de si. Dizemos isso porque a aferição de necessidade ou utilidade pública, ou ainda o interesse social, não é medida baseada apenas no poder discricionário. Se o fosse, diríamos com certeza que a desapropriação seria contrária à idéia da propriedade e não é o caso. Por isso a desistência é legitima apenas nos casos em que tenha desaparecido "os motivos que provocaram a iniciativa do processo expropriatório" [78], nos quais tem "o expropriante o poder de desistir da desapropriação, inclusive no curso da ação judicial" [79].

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Ainda no que concerne à possibilidade de desistência do procedimento expropriatório destacamos que o momento para o exercício de tal faculdade – termo final, pois – no caso de bens imóveis [80], seria o trânsito em julgado da sentença ou, ainda, transcrição do título no caso de a desapropriação ter sido possibilitada por acordo.

3.2 SERVIDÃO ADMINISTRATIVA

Servidão administrativa é "o direito real público que autoriza o Poder Público a usar a propriedade imóvel para permitir a execução de obras e serviços de interesse coletivo" [81] conforme anúncio do professor Carvalho Filho. Seria modalidade de Direito Real Público porque visa ao atendimento do interesse público através de um instituto cujo embrião é eminentemente civilista e calcado na tipologia fechada decorrente da sistemática dos numerus clausus.

Apontamos ainda que seria "forma de intervenção do Estado na propriedade privada, que se caracteriza por ser parcialmente expropriatória, impositiva de ônus real de uso público, onerosa, permanente, não executória e de promoção delegável" [82], apontamento feito com base no que se creditou à lavra do professor Moreira Neto em artigo publicado em mídia eletrônica.

A partir das definições antes tracejadas, parece-nos ponderável se inferir que a expressão "uso público" não deve ser entendida como sendo de "uso comum do público" [83]. Pelo contrário, a locução "uso público", no sentido que assume em sede de servidão administrativa, nos informa que se trata de utilização em serviços de interesse público. Cabe se destacar, ainda, o fato de que tal utilização pode ser feita diretamente pelo Estado, por seus agentes delegados ou ainda, como hoje é muito comum, pelas companhias concessionárias, em muitos casos prestadoras de serviços tomados por essenciais, caso dos descritos no artigo 22 do CDC.

A constituição de uma servidão administrativa pode se dar por Lei, por Decreto ou ainda por atos bilaterais. A vivência desse instituto através de atos bilaterais é uma faceta muito útil do mesmo, normalmente possível quando quem presta o serviço público é concessionária. Esta, tendo natureza jurídica de Direito Privado, pode dispor de seus interesses como bem pretender, ao passo que o "agente público" [84], tomado em estrita acepção, deve estar adstrito à legalidade [85] enquanto possibilidade de só fazer o que a lei determina.

São exemplos de servidões administrativas as faixas marginais e cursos d´´ água, destinados à utilização das pessoas jurídicas, normalmente concessionárias, encarregadas de promoverem o acesso da população aos recursos hídricos. Também são exemplos as passagens de canos de esgoto por terrenos particulares, ou ainda, a utilização de parte da propriedade particular para que a companhia telefônica possa montar de forma esquematizada sua infra-estrutura, algo bastante comum no município de Petrópolis [86]. Dilatando esse rol exemplificativo, são também exemplos desta espécie de intervenção do Estado na Propriedade privada a passagem de cabos de alta tensão, telefone, gás, etc.

O instituto em exame está circunscrito dentro dos chamados Direitos Reais, portanto, deve ser entendido dentro da lógica dos numerus clausus. Daí se diz que este se trata de ônus real que implica sujeição do particular à realização de obras e serviços pelo Estado [87]. Configura-se como sendo uma modalidade de ônus real de uso, imposto pela Administração à propriedade particular no intuito de assegurar a realização e/ou conservação de obras e serviços, públicos ou de utilidade pública.

Consoante locução do enunciado 56 [88] da súmula do STJ, operacionaliza-se através da indenização de eventuais prejuízos efetivamente suportados pelo proprietário, o qual se processa, caso o particular concorde com a indenização apurada, por ato declaratório. Em havendo divergência, o Estado deduzirá em juízo sua pretensão de imposição servil, hipótese em que se valerá de procedimento típico da desapropriação.

Quando se trata de realização de serviços ou obras públicas duradouras, o ato administrativo que inicia o processo para a instituição da servidão administrativa deve declarar qual o imóvel serviente, o objeto da imposição, bem como qual a indenização, se couber [89], devida ao proprietário do prédio sacrificado.

O conceito de servidão do Direito Privado em muito se assemelha ao conceito encontrado no Direito Público, eis que neste foi utilizado o princípio básico das servidões encontrado naquele para se as estabelecer enquanto ônus real de uso – impostas pela Administração, daí serem administrativas – objetivando realizar, ou assegurar, obras e serviços públicos.

Nada obstante terem origem no postulado civilista, fato é que as servidões administrativas não comportam a idéia de prédio dominante e serviente. Em verdade o que se vivencia no âmbito administrativista é a restrição, ou limitação, ao exercício amplo da propriedade privada, limitação calcada na finalidade pública do ato.

3.3 REQUISIÇÃO TEMPORAL

José Madeira, em artigo intitulado algumas considerações sobre requisição, nos informa que esta "corresponde ao direito de requisição de bens em benefício do Poder Público, um dos limites constitucionais à propriedade." [90]

Do ponto de vista sociológico inscreve-se que, já na Constituição do Império, precisamente no artigo art. 179, XXII [91], se admitia, em razão do bem público – interesse público, em verdade – legalmente verificado, o uso e o emprego da propriedade do cidadão mediante prévia indenização.

A possibilidade descrita no parágrafo anterior, que remete diretamente à idéia de requisição temporal, não foi antevista na Carta de 1891. Nesta, em verdade, apenas uma possibilidade de limitação à propriedade foi prevista; a desapropriação, aludida em seu art. 72, § 17 [92].

A requisição recebeu tratamento específico nas Constituições de 1934 – art. 113, 17 [93] – e 1946 – art. 141, § 16 [94]. Apesar de omissa, na de 1937, pelo menos possuía sua própria índole, mecanismos de suspensão de direitos, como se lia no art. 168 [95] da referida carta outorgada.

Atualmente a matéria também encontra tratamento constitucional. Na hipótese do tema proposto encontramos no artigo 5º, XXV, cláusula pétrea que é, delineamentos sobre o tema. Da leitura do citado dispositivo inferimos ser esta meio de utilização coativa de bens ou serviços particulares.

Um traço determinante desta espécie de intervenção do estado na propriedade é a execução imediata do ato que a determina. Assim a autoridade, por ato de execução imediata e direta, para atendimento de necessidades coletivas urgentes e transitórias, determina o regime de requisição temporária.

Em razão do caráter nitidamente de urgência esta se configura através de ato unilateral do Poder Público que o permite a utilização de bens e serviços dos particulares em razão de necessidade coletivas e cujo fundamento constitucional se encontra no art. 5º, XXV. Mesmo que a hipótese seja de nítida urgência, no caso de esta impor prejuízo ao particular que teve sua propriedade requisitada, este fará jus à indenização. Desta feita, no "caso de iminente perigo público a Administração pode utilizar a propriedade particular, assegurada indenização ulterior, se houver dano" [96], conforme editorial do Centro Universitário Filadélfia.

Por se revestir do caráter da transitoriedade, e só poder ser ordenada em caso de urgência, esta pode recair sobre bens imóveis, móveis e serviços, exemplo da requisição de equipamentos e serviços médicos de um hospital privado. Revestindo-se do caráter da transitoriedade esta se extingue tão logo cesse a situação de perigo público que justificou sua instituição.

3.4 TOMBAMENTO

O vocábulo tombamento teria se originado do verbo tombar, que apresentava significância, dentre outras, inventariar. Esse inventário era inscrito em livro próprio guardado em torre que os portugueses chamavam Tombo, donde decorre a adoção da nomenclatura tombamento em nosso direito, conforme nos ensina Caldas Aulete, transcrito em notas a partir da inscrição encontrada na obra de Carvalho Filho [97]. Por outro lado defendem alguns doutrinadores que o termo deriva de tumulum [98], no latim significando depósito, arquivo.

Há muito que o papel do Estado não está mais limitado a assegurar a ordem interna e externa, conduzindo também a uma teia de funções ligadas à preservação de direitos individuais e coletivos da sociedade. Neste novo Estado o direito de propriedade não é absoluto e, portanto, pode ser limitado.

O tombamento, independente de sua natureza jurídica, contém um elemento impositivo. Através dele visa o estado a preservar os valores históricos, culturais, artísticos, paisagísticos e bibliográficos, em instancia última, o cumprimento de sua função social. Não resta dúvida também que é este o instituto a permitir a posteridade de muitas obras fadadas ao perecimento.

A questão da natureza jurídica do instituto em comento não é pacífica. Há os que o vêm como "servidão administrativa." [99], caso do professor Bandeira de Mello. Há também os que o vêm, caso de Themistocles Cavalcanti, como "limitação administrativa" [100]. Também há entendimento no sentido de ser bem de "interesse público" [101], caso de Paulo Machado. Por fim há os que o vêm como instituto independente, espécie independente [102] do gênero limitação ao direito de propriedade.

No nosso sentir a posição que afirma ser o instituto uma espécie independente é a mais defensável. Esta posição é também defendida por José dos Santos Carvalho Filho [103] em seu manual, onde assevera que o tombamento não pode ser uma limitação administrativa porque tem caráter específico e não geral. No mesmo sentido não poderia ser comparado a uma servidão porque não é um direito real como esta.

O objeto de proteção do instituto em tela é encontrado, na esfera federal, na dicção do Decreto-Lei n. 25 de 1977, onde se aponta poder recair sobre bens móveis e imóveis, cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico, etnográfico, bibliográfico ou artístico.

Embora se fale basicamente do Decreto de 1937, cumpre informar que a competência para legislar sobre o tema não é exclusividade da União, pois, conforme a Constituição da República, em seu artigo 24, I, é facultado à União, aos Estados e ao Distrito Federal, legislar concorrentemente sobre Direito Urbanístico, deixando de fora o Município, no entanto, sem prejuízo para este ente, que pode legislar sobre o tema, com fulcro no art. 30, inciso I e II do mesmo texto constitucional.

Os tipos de tombamento podem ser classificados "quanto à manifestação de vontade ou quanto à eficácia do ato." [104] No primeiro caso são voluntários ou compulsórios.

O tombamento voluntário é aquele em que o proprietário do bem a ser tombado se dirige ao órgão competente e provoca o tombamento de livre e espontânea vontade ou ainda, quando notificado do tombamento, concorda sem se opor ao ato de tombamento. O tombamento compulsório acontece quando o órgão competente dá início ao processo de tombamento, notificando o proprietário que, inconformado, procura, administrativamente ou judicialmente, opor-se ao tombamento.

Quanto à eficácia do ato poderão ser provisórios ou definitivos. Os primeiros o são quando não findou o processo de tombamento, mesmo que já produzissem efeitos provisoriamente. O segundo tipo é o tombamento fruto de ato perfeito e acabado, do qual não cabe mais qualquer discussão.

Cabe apontar ainda que, como qualquer outro ato administrativo, o ato de tombamento é apreciável pelo Poder Judiciário nos aspectos formais do ato, em seus pré-requisitos e, ainda, no procedimento administrativo que originou a feitura do ato administrativo. O respeito ao devido processo legal e ao contraditório também deverão ser objeto de apreciação judicial quando esta for provocada.

No que diz pertinência à obrigação de indenizar a doutrina entende de maneira geral que o tombamento poderá gerar a obrigação de indenizar, por parte do Estado, se o dano for aferível após o evento do tombamento [105] ou se houver esvaziamento econômico do bem tombado [106].

3.5 DIREITO DE SUPERFÍCIE

A Constituição Federal em vigor assegura ser a propriedade Direito Fundamental. Primou, contudo, em introduzir o imperativo da função social, com a qual se voltou, inclusive, para a problemática das cidades, destinando a estas um capítulo específico intitulado "Da Política Urbana" [107], do qual foi originado o Estatuto da Cidade.

O estatuto sob exame trouxe de volta [108] o Direito de Superfície à cena jurídica nacional. Surgiu para dar efetividade ao propugnado na Constituição surge, em meio à necessidade de se enfrentar as novas realidades e problemas jurídicos de grandes complexidades social, econômica e política da vida contemporânea. "Nasce em meio a grande polêmica, própria dos textos que introduzem limitações ao exercício de Direitos individuais, ensejando questionamentos acerca da constitucionalidade de vários de seus dispositivos." [109]

Conforme anúncio de seu artigo primeiro visa a regulamentar a execução de políticas urbanas através do estabelecimento de "normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental".

Para que se alcance melhor desenvolvimento e ordenação na expansão urbana, colaciona o diploma em estudo os instrumentos de política urbanística de que se pode valer o Poder Público: desapropriação, servidões e limitações administrativas, concessão de uso especial para fins de moradia, usucapião especial de imóvel urbano, direito de preempção [110] e direito de superfície, no sentir finalístico do encontrado em seu artigo segundo, onde se declara que "a política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana".

Explicita no artigo 21, § 1º, ser o direito de superfície a faculdade de utilizar o solo, o subsolo ou o espaço aéreo relativo ao terreno, na forma estabelecida contratualmente e atendendo à legislação urbanística. Em sentido semelhante é o magistério do professor Ricardo Lira, o qual consigna que a superfície é "direito real autônomo, temporário ou perpétuo, de fazer e manter construção ou plantação sobre ou sob terreno alheio" [111].

Orlando Gomes aponta ser a superfície "Direito Real de ter uma construção ou plantação em solo alheio" [112], sentido convergente ao esposado por Beviláqua, onde lemos ser esta "Direito Real de construir, assentar qualquer obra, ou plantar em solo de outrem" [113].

O conceito de superfície varia de acordo com a legislação [114] analisada. Há países que só o admitem em se tratando de edificações; outros tão-somente sobre plantações. Da mesma forma há discussões sobre a possibilidade de esta abranger o subsolo. Na linguagem coloquial seria a camada superficial do solo. No sentido jurídico tradicional, todavia, é tudo o que emerge do solo.

O direito de superfície, em nosso sentir, se potencializa no contexto em que o Constituinte conferiu aos Municípios instrumentos coercitivos para compelir o proprietário ao adequado aproveitamento do imóveis sub ou não utilizados, dentre os quais o IPTU progressivo.

Com a medida aventada, uma vez expirados os termos e prazos estabelecidos para que o proprietário promova a adequação de seu bem à função social e mantendo-se este inerte, pode o Poder Público Municipal impor sanções administrativas, capazes de tornar economicamente inviável propriedade desviada de sua finalidade.

A progressividade do IPTU é feita a partir da majoração anual de sua alíquota. Esta é fixada em lei municipal e não excederá de duas vezes o valor referente ao ano anterior, respeitada a alíquota máxima de 15%, conforme anúncio do parágrafo 1º do artigo 7º do Estatuto da Cidade. Há ainda, conforme a dicção legal, de se respeitar o limite de cinco anos de sucessivos escalonamentos nas majorações. Assim é que se conclui poder ser o quantum da alíquota geometricamente multiplicado por dois até o atingimento do teto legal, que é 15% do valor do imóvel.

O artigo citado fala de uma limitação temporal para exação. Todavia, em razão de ser o IPTU progressivo medida de natureza acautelatória, existe discussão doutrinária a respeito da observância de tal limitação. Há posicionamentos no sentido de que se "possa promover a progressão até que se adimplida a obrigação" [115], ou seja, se dê à propriedade destinação útil, sem que se atenha, portanto, ao limitador legal. Importaria sob essa ótica se dar destinação útil à propriedade, que é atender a sua função social.

Nada obstante há entendimentos – fundamentados na idéia de que a manutenção da exação acima do permissivo legal seria medida confiscatória [116] – no sentido de não se poder ultrapassar o teto legal de 15% do valor do imóvel.

Certamente, se a idéia da função social fosse arraigada em nossa população, desnecessário seria se tomar medidas com caráter coercitivo como o IPTU que se aventou. Como, faticamente, não está, medidas como estas tem tudo para fazer o trabalho de "conscientização".

O regime da superfície, uma vez integrante da cena social nacional – mais que jurídica, até – tem tudo para fomentar o desenvolvimento urbano, já que levará a um melhor aproveitamento da propriedade. Trará certamente benefícios para os dois lados do negócio [117], já que o proprietário do solo, o cedente, poderá estabelecer que será responsabilidade do cessionário o pagamento de tributos como o IPTU. Além disso, sendo a superfície onerosa, retirará um quantum da cessão, valor passível de estipulação periódica, ponto em que apresenta um diferencial [118] em relação à enfiteuse.

Para o cessionário também será interessante o regime, pois poderá ocupar uma região melhor dentro do plano da cidade, sem que para isso tenha de despender um valor muito alto para tal. Com isso se atenderá ao preceito fundamental da função social; assegurar-se-á, certamente, o atendimento ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, pois regiões com melhor infra-estrutura estarão mais a mão de pessoas que, pelas vias até então disponíveis, não poderiam ali morar.

Sobre o autor
Alessandro Marques de Siqueira

Mestrando em Direito Constitucional pela UNESA. Professor da Escola de Administração Judiciária do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Professor convidado da Pós-Graduação na Universidade Cândido Mendes em parceria com a Escola Superior de Advocacia da OAB/RJ na cidade de Petrópolis. Associado ao CONPEDI - Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito. Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SIQUEIRA, Alessandro Marques. Função social da propriedade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2076, 8 mar. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12400. Acesso em: 22 nov. 2024.

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