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O Supremo Tribunal Federal e o "jus postulandi".

A contratação do advogado é um direito, e não uma obrigação

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Agenda 14/03/2009 às 00:00

5. O "jus postulandi" nos países civilizados

O direito de defender pessoalmente os próprios direitos perante o Judiciário é o mais fundamental de todos, e tem sido reconhecido na maioria dos países civilizados, bem como em diversos tratados de direitos humanos.

Em seu Relatório Anual de 2.000-2.001, a Corte Federal da Austrália declarou que "continuará a desenvolver e implementar práticas e procedimentos, para garantir que os casos que lhe sejam submetidos sejam tratados com eficiência e que, em particular, a Corte terá especial consideração com os assuntos relacionados ao crescente número de litigantes "self represented" (sem advogados) e com o impacto sobre o tempo e os recursos necessários para resolver as questões nas quais eles estão envolvidos. A Corte adotará um conjunto de estratégias para lidar com essas questões e para assegurar que os direitos dos litigantes "em pessoa" não sejam afetados." (os grifos não são do original)

No Canadá, existe um projeto oficial, destinado a garantir o acesso à justiça dos SRL – "self represented litigants" (Veja aqui)

Essa é a postura que tem sido adotada na maioria dos países civilizados, bem diferente da nossa, onde se procura restringir, de várias maneiras, com evidentes motivações corporativistas, o direito fundamental de acesso à Justiça, supostamente no intuito de proteger esse mesmo direito, evitando prejuízos aos litigantes, que assim não poderiam prescindir dos advogados, em nenhuma hipótese.

A "Common Law" há muito reconhece o direito de um litigante representar a si mesmo, em assuntos civis ou criminais. O "Bill of Rights", de 1.689, "assegurando antigos direitos e liberdades", já garantia a todos os súditos o direito de apresentar petições ao Rei: "That it is the right of the subjects to petition the king, and all commitments and prosecutions for such petitioning are illegal." (Veja aqui)

Agora, mais de trezentos anos depois, muito ao contrário do que acontece no Brasil, os ingleses têm inteiramente respeitado o seu direito fundamental de postular em juízo, diretamente ao Judiciário, para defender direito próprio, sem a intervenção de advogado, como se observa pelo noticiário referente ao divórcio do ex-beatle Paul McCartney. Assim, em uma causa de 90 milhões de dólares, "Paul McCartney tem o melhor time de advogados a seu lado, enquanto a ex-modelo Heather Mills trabalha sozinha no divórcio" e "Heather Mills dispensou seus representantes e compareceu pessoalmente perante a Justiça." Ou, então: "Heather Mills, cujo casamento com McCartney durou menos de quatro anos, afastou seus advogados e representou sua própria defesa no processo contra McCartney, cuja fortuna é estimada em 825 milhões de libras (US$ 1,6 bilhão). Estimativas da imprensa sobre quanto Mills ganhará variam de 25 milhões a aproximadamente 200 milhões de libras." (Veja aqui o noticiário) (E também aqui)

No Brasil, infelizmente, até mesmo para uma separação consensual em cartório (!!!), o cidadão não tem outra escolha: ele tem que pagar, aproximadamente, cinco mil reais, pela simples assinatura de um advogado...

Nos Estados Unidos, também está muito difundido o "jus postulandi", ou o que os americanos denominam "pro se representation", a representação própria, perante os juízes e tribunais.

Uma pesquisa da American Bar Association, de 1.991, mostrou que: a) as pessoas com renda anual inferior a 50 mil dólares, mais provavelmente, utilizarão essa faculdade; b) aproximadamente 20% das pessoas que se utilizam do "pro se" dizem que poderiam pagar um advogado; c) essas pessoas, mais provavelmente, ficarão satisfeitas com os resultados do processo, do que aquelas representadas por advogados; d) quase 75% das pessoas que postularam em causa própria disseram que voltariam a fazê-lo. (Veja aqui o noticiário, nesta página destinada à orientação dos "pro se litigants")

A Suprema Corte norte-americana, em uma decisão de 1.993, reconheceu o direito de qualquer pessoa à defesa própria, perante os tribunais, desde que essa pessoa seja mentalmente capaz. (Veja aqui a decisão: Godinez v. Moran, 509 U.S. 389)

Na sistema americano de Cortes Federais, em 2.007, aproximadamente 27% das ações ajuizadas, 92% das petições de presidiários e 10% das petições de não presidiários couberam aos "pro se litigants".

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Até mesmo no "Jornal" da American Bar Association é possível ler um artigo, recente, de novembro do ano passado, dizendo que tem aumentado o número de americanos que utilizam o "pro se", mesmo em assuntos complexos. (Veja aqui). Aliás, a própria American Bar Association tem encorajado os Estados a adotarem mecanismos de auxílio aos "pro se litigants", e também disponibiliza um Guia de Orientação Jurídica.

O art. 47 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Européia assegura que:

"Toda pessoa cujos direitos e liberdades garantidos pelo direito da União tenham sido violados tem direito a uma ação perante um tribunal. Toda pessoa tem direito a que a sua causa seja julgada de forma eqüitativa, publicamente e num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial, previamente estabelecido por lei. Toda pessoa tem a possibilidade de se fazer aconselhar, defender e representar em juízo. É concedida assistência judiciária a quem não disponha de recursos suficientes, na medida em que essa assistência seja necessária para garantir a efetividade do acesso à justiça." (os grifos não são do original)

No Brasil, ao contrário, todos os brasileiros são considerados incapazes, para o exercício do seu direito fundamental do "jus postulandi", para defenderem os seus direitos, embora não sejam considerados incapazes, quando se trata de pagar tributos, ou de escolher os seus governantes. Mesmo que não queiram ou precisem, eles são obrigados a contratar advogados, e os carentes ficam inteiramente sem acesso à Justiça, por falta de quem os represente, a não ser que consigam um dos raros defensores públicos concursados, pagos pelo Estado brasileiro, ou então um dos muitos advogados, não concursados, indicados pela OAB, e pagos, também, com os nossos tributos. O melhor exemplo, nesta última hipótese, é aquele do convênio inconstitucional da OAB/SP, que dá emprego a 50 mil advogados, para a defesa dos carentes.

A esse respeito, verifica-se também a falta de transparência da Ordem dos Advogados, que não respondeu, até esta data, a um questionamento meu, de novembro de 2.007, sobre a constitucionalidade desse Convênio. (Veja aqui)

Aliás, é interessante ressaltar, neste ponto, uma inovação, que também poderá ser considerada inconstitucional, se contar com verbas públicas: a do Cadastro Nacional de Advogados, "criado" pela Resolução nº 62, do Conselho Nacional de Justiça, supostamente para "fornecer assistência judiciária gratuita às pessoas que não dispõem de recursos financeiros e para estimular os advogados a participarem de ações sociais por meio do voluntariado". (Veja aqui)

De acordo com o Ministro Gilmar Mendes, Presidente do CNJ, cuja opinião foi citada nessa notícia, defendendo a criação do Cadastro Nacional de Advogados, é preciso oferecer defesa aos 440 mil presos do sistema carcerário brasileiro e "os interesses corporativistas das defensorias não poderiam prevalecer em detrimento dessa proposta".

Data vênia do ilustre Ministro, eu diria também que não devem prevalecer os interesses corporativistas dos advogados, ou do Judiciário. Não é possível que se admita uma proposta dessas, que vai permitir o pagamento, com verbas públicas, de milhares de advogados, não concursados, para supostamente defenderem os direitos dos milhões de carentes que existem no Brasil. Seria mais um ralo sem fundo de dinheiro público, porque, evidentemente, os "advogados voluntários" deverão ser remunerados com verbas públicas, haja vista que o Estatuto da OAB, a Lei nº 8.906/94, determina, em seu art. 22, § 1º, que todo trabalho advocatício deve ser remunerado pelo Estado, quando o advogado é indicado para patrocinar causa de uma pessoa carente:

Art. 22. A prestação de serviço profissional assegura aos inscritos na OAB o direito aos honorários convencionados, aos fixados por arbitramento judicial e aos de sucumbência.

§ 1º O advogado, quando indicado para patrocinar causa de juridicamente necessitado, no caso de impossibilidade da Defensoria Pública no local da prestação de serviço, tem direito aos honorários fixados pelo juiz, segundo tabela organizada pelo Conselho Seccional da OAB, e pagos pelo Estado." (os grifos não são do original)

Em defesa desse Cadastro Nacional de Advogados, "criado" pelo Conselho Nacional de Justiça, pode ser lembrado, apenas, que até mesmo nos Estados Unidos, país que costumava ser apontado como modelo de democracia e de respeito aos princípios republicanos, o corporativismo jurídico tem prevalecido. A American Bar Association, alegando as necessidades decorrentes da crise econômica, está propondo ao Governo Obama a criação de um "Serviço Jurídico", integrado por mil advogados – eles são bem mais modestos -, pagos com verbas federais, que poderiam ajudar as famílias que perderam os seus imóveis. A proposta inicial da A.B.A. pede verbas federais para ajudar no pagamento de cerca de mil advogados, que prestarão serviços a clientes que preencham certos critérios econômicos.

O Presidente da American Bar Association, H. Thomas Wells Jr., está otimista quanto à aprovação desse projeto, tendo em vista que "Nós temos um advogado na Casa Branca – aliás dois", porque "Michelle Obama também se graduou em Harvard, como Barack Obama". "O Vice-Presidente também é um advogado". (Veja aqui a notícia, no Jornal da A.B.A.)


6. A Inconstitucionalidade da EC nº 45/2.004

A Constituição de 1.988 dispõe, no parágrafo 2º do artigo 5º, que os direitos e garantias nela expressos "não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte".

Somente agora, porém, com a já referida Decisão de dezembro de 2.008, que será examinada a seguir, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal reconheceu que os tratados internacionais de direitos humanos devem ser respeitados pelo Brasil, tornando assim inaplicável qualquer norma que com eles conflite, no caso, a prisão civil do depositário infiel, que era permitida pela própria Constituição. Essa Decisão, ressalte-se, embora tenha afirmado que o Pacto de São José da Costa Rica tem apenas o status supralegal, permitiu, na verdade, o descumprimento da norma do inciso LXVII do art. 5º da Constituição: "não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel".

Essa Decisão, tomada por 5 votos contra 4, revelou também a divergência de entendimento dos Ministros do Supremo, tendo sido vencida a tese do status constitucional dos tratados de direitos humanos. Um dos motivos dessa divergência, na minha opinião, é a existência da norma do § 3º do art. 5º, incluída pela Emenda Constitucional nº 45/2.004, verbis:

"§3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais."

A norma do § 2º do art. 5º, acima transcrita, e esta outra, do § 3º do art. 5º da Constituição de 1.988, são claramente incompossíveis, porque a correta exegese do §2º do art. 5º permitiria a imediata inclusão dos direitos e garantias decorrentes dos tratados no rol de nossos direitos e garantias fundamentais, constantes do "catálogo" constitucional, enquanto que o § 3º exige, ainda, a aprovação dos tratados – sobre direitos humanos, especificamente -, por 3/5 de votos, em cada Casa do Congresso Nacional. Daí, certamente, a dificuldade enfrentada pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal, com seus diversos votos dissidentes, até que pudessem alcançar a já mencionada Decisão histórica. Coisas da nossa Constituição analítica, uma das mais prolixas e remendadas!

Não seria infundado afirmar, mesmo, que a norma do § 3º do art. 5º da Constituição Federal, incluída pela Emenda Constitucional nº 45/2.004, é inconstitucional, por ferir cláusula pétrea, ao criar uma nova exigência, antes inexistente, restringindo assim os nossos direitos e garantias fundamentais decorrentes "dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte". O § 4º do art. 60 da Constituição proíbe, recorde-se, a proposta de emenda "tendente a abolir... direitos e garantias fundamentais".

Ora, se o § 3º, incluído pela Emenda Constitucional nº 45/2.004, exige a aprovação dos tratados sobre direitos humanos por 3/5 de votos, é evidente que essa norma é inconstitucional. Ela incide, sem dúvida, na proibição do § 4º do art. 60 da Constituição, porque é uma norma tendente a abolir os nossos direitos e garantias fundamentais.

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Fernando. O Supremo Tribunal Federal e o "jus postulandi".: A contratação do advogado é um direito, e não uma obrigação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2082, 14 mar. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12445. Acesso em: 23 dez. 2024.

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