7. A jurisprudência anterior do Supremo Tribunal Federal
Desde 1.977, quando julgou o Recurso Extraordinário nº 80.004-SE, o Supremo Tribunal Federal firmou jurisprudência no sentido de que, ocorrendo um conflito entre as normas de um tratado e as de uma lei posterior, deveria sempre prevalecer a vontade do Congresso, mesmo que isso importasse em afronta a um compromisso internacional. Tal entendimento resultava da idêntica hierarquia atribuída aos tratados e às leis internas, o que era considerado, por uma expressiva parcela da doutrina, como um posicionamento retrógrado, devido ao entendimento de que aos tratados internacionais de direitos humanos deve ser atribuída supremacia, em face da própria Constituição Federal.
Aliás, esse entendimento do Supremo Tribunal Federal, permitindo que uma lei posterior revogasse as normas de um tratado, conflitava com o art. 27 da Convenção de Viena, que outorga prioridade ao direito internacional. Dessa maneira, nenhum Estado poderia invocar dispositivos de ordem interna como pretexto para o descumprimento dos acordos internacionais.
Na verdade, no que tange aos tratados de direitos humanos, não se trata de uma verdadeira supremacia sobre a Constituição Federal, porque esses tratados integram, pela via do § 2º do art. 5º, o núcleo de nosso ordenamento constitucional, aliás imutável, por força da norma inserta no § 4º do art. 60, já referida, fazendo parte das "cláusulas pétreas". A dignidade humana, erigida em princípio fundamental, determina a diretriz sistêmica de nosso ordenamento e impõe a sua correta exegese, no sentido de que esses tratados integram a nossa Lei Fundamental e dela são indissociáveis. A dignidade humana preexiste aos Estados e aos tratados internacionais. Não se trata, portanto, de conflito entre Constituição e tratados.
Na minha opinião, portanto – e na do Ministro Celso de Mello - os direitos e garantias fundamentais que ingressam em nosso ordenamento pela via do § 2º do art. 5º da Constituição Federal têm hierarquia constitucional, porque na verdade os assim chamados direitos humanos são preexistentes ao próprio Estado e têm aplicabilidade imediata e direta, porque prescindem de sua internalização, uma vez que estão estruturados em uma esfera prévia, de supralegalidade.
Essa é a opinião, também, de ALEXANDRE MORAIS DA ROSA:
"Todavia, por ter o constituinte originário explicitado que "as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicabilidade imediata" (CF, art. 5º, § 1º) e que "os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes ... dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte" (CF, art. 5º, § 2º), bem assim a "prevalência dos Direitos Humanos" (CF, art. 4º, II), possível a defesa da desnecessidade de manifestação ulterior pelo legislador ordinário sobre a conveniência do acolhimento das normas internacionais, justamente pela prévia autorização de aderência declarada pelo constituinte originário no tocante aos Direitos Humanos, particularmente.
Caso aceita a tese da exclusão, o Brasil defenderia internacionalmente Direitos constantes nesses diplomas legais e negaria aplicabilidade interna, em flagrante vilipêndio ao princípio de tratamento isonômico. Tal situação não se concilia perante a concepção de prevalência dos Direitos Humanos e com as diretrizes constitucionais presentes na Carta de 1988, como normas indisponíveis dos indivíduos." (ROSA, Alexandre Morais da. Garantismo Jurídico e Controle da Constitucionalidade Material, Florianópolis: Habitus, 2.002, p. 94)
8. A Decisão do Supremo Tribunal Federal
Em março de 2.008, apesar da existência da norma do inciso LXVII do art. 5º da Constituição: "não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel", o Ministro Celso de Mello já havia votado pela inconstitucionalidade da prisão civil do depositário infiel – no julgamento dos Recursos Extraordinários nºs 349.703 e 466.343, e no Habeas Corpus nº 87.585, tendo em vista a proibição constante de diversos tratados de direitos humanos, ratificados pelo Brasil (Veja a íntegra do voto).
No entendimento desse Ministro, os tratados que versem sobre direitos humanos, dos quais o Brasil seja signatário, integram o ordenamento jurídico como norma de nível constitucional. O Ministro Celso de Mello, em seu voto, disse que a Constituição Federal determina, em seu art. 4º, inciso II, a prevalência dos direitos humanos sobre qualquer outra norma. Dessa forma, os tratados de direitos humanos, mesmo os anteriores à Emenda Constitucional nº 45, de 30.12.2004, são normas de nível constitucional. O Ministro também ressaltou que outros dois dispositivos constitucionais se referem à valorização dos direitos humanos no plano constitucional, o § 2º do art. 5º, que determina que os direitos reconhecidos pela Constituição não excluem outros, provenientes dos tratados internacionais, e o § 3º do mesmo artigo, que equipara os tratados às emendas constitucionais, desde que observado o procedimento para a sua aprovação, acrescentado pela Emenda Constitucional nº 45.
Neste ponto, evidentemente, do §3º, estaria a inconstitucionalidade, já referida, no meu entendimento, porque não seria possível que, a partir da entrada em vigor da Emenda Constitucional nº 45/2.004, ocorresse uma restrição, no tocante à prevalência dos tratados de direitos humanos.
Em outubro de 2.008, no julgamento do Habeas Corpus nº 88.240-4-SP (Veja aqui o Acórdão), a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal decidiu que:
"Há o caráter especial do Pacto Internacional dos Direitos Civis Políticos (art. 11) e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), ratificados, sem reserva, pelo Brasil, no ano de 1992. A esses diplomas internacionais sobre direitos humanos é reservado o lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil, torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de ratificação." (Os grifos não são do original)
Em dezembro de 2.008, finalmente, no julgamento do Habeas Corpus nº 87.585-TO, desta vez o Pleno do Supremo Tribunal Federal reconheceu a prevalência dos tratados de direitos humanos. Por cinco votos a quatro, prevaleceu o entendimento de que esses tratados têm valor supralegal, contra a tese do Ministro Celso de Mello, que lhes atribuía nível constitucional. (Veja o Voto do Ministro Celso de Mello)
De acordo com o Noticiário do Supremo Tribunal Federal,
"Em conclusão de julgamento, o Tribunal concedeu habeas corpus em que se questionava a legitimidade da ordem de prisão, por 60 dias, decretada em desfavor do paciente que, intimado a entregar o bem do qual depositário, não adimplira a obrigação contratual — v. Informativos 471, 477 e 498. Entendeu-se que a circunstância de o Brasil haver subscrito o Pacto de São José da Costa Rica, que restringe a prisão civil por dívida ao descumprimento inescusável de prestação alimentícia (art. 7º, 7), conduz à inexistência de balizas visando à eficácia do que previsto no art. 5º, LXVII, da CF ("não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel;"). Concluiu-se, assim, que, com a introdução do aludido Pacto no ordenamento jurídico nacional, restaram derrogadas as normas estritamente legais definidoras da custódia do depositário infiel. Prevaleceu, no julgamento, por fim, a tese do status de supralegalidade da referida Convenção, inicialmente defendida pelo Min. Gilmar Mendes no julgamento do RE 466343/SP, abaixo relatado. Vencidos, no ponto, os Ministros Celso de Mello, Cezar Peluso, Ellen Gracie e Eros Grau, que a ela davam a qualificação constitucional, perfilhando o entendimento expendido pelo primeiro no voto que proferira nesse recurso. O Min. Marco Aurélio, relativamente a essa questão, se absteve de pronunciamento." HC 87585/TO, rel. Min. Marco Aurélio, 3.12.2008. (HC-87585) (Os grifos não são do original)
O que estava sendo discutido pelo Supremo Tribunal Federal, especificamente, era a questão da prisão civil por dívida, proibida pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos, conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, mas acontece que esse Pacto, além de dispor a respeito da prisão civil por dívida, também garante a qualquer pessoa o "jus postulandi", em relação a "qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza."
O Pacto de São José da Costa Rica, de 1.969, ratificado em 1.992 (Veja aqui o Decreto que promulgou o Pacto), deveria estar efetivamente em vigor, no Brasil, desde novembro de 1.992. Somente agora, porém, nessa Decisão histórica, de dezembro de 2.008, o Supremo Tribunal Federal decidiu reconhecer a sua prevalência, em relação às normas infraconstitucionais.
De acordo com o art. 8º desse Pacto, (Veja aqui a íntegra do Pacto)
"1. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza. (os grifos não são do original)
2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:
a) direito do acusado de ser assistido gratuitamente por um tradutor ou intérprete, caso não compreenda ou não fale a língua do juízo ou tribunal;
b) comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada;
c) concessão ao acusado do tempo e dos meios necessários à preparação de sua defesa;
d) direito do acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor; (os grifos não são do original)
e) direito irrenunciável de ser assistido por um defensor proporcionado pelo Estado, remunerado ou não, segundo a legislação interna, se o acusado não se defender ele próprio, nem nomear defensor dentro do prazo estabelecido pela lei; (os grifos não são do original)
f) direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no Tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos;
g) direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada; e
h) direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior.
3. A confissão do acusado só é válida se feita sem coação de nenhuma natureza.
4. O acusado absolvido por sentença transitada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos.
5. O processo penal deve ser público, salvo no que for necessário para preservar os interesses da justiça."
Portanto, em decorrência dessa Decisão de dezembro de 2.008, do Supremo Tribunal Federal, que atirou no que viu, mas acertou no que talvez não quisesse, é inaplicável a norma do art. 1º do Estatuto da OAB, que considera como atividade privativa da advocacia a postulação ao Judiciário. Esse artigo está inapelavelmente revogado, na minha opinião, e todo brasileiro deverá ter reconhecido, agora, o seu direito de postular, pessoalmente, perante qualquer órgão do Poder Judiciário, em defesa de seus direitos, nos termos do art. 8º do Pacto de São José da Costa Rica.
A contratação de um advogado, para a postulação perante qualquer juiz ou tribunal – e com mais razão, ainda, no processo administrativo disciplinar, na Justiça desportiva ou perante os Cartórios -, é agora um direito, e não uma obrigação, porque o próprio Pacto de São José da Costa Rica assim dispõe, em seu art. 8º.
9. Considerações Finais
9.1. O ‘jus postulandi" é um direito fundamental, resguardado como cláusula pétrea pela Constituição de 1.988, e reconhecido pelas nações civilizadas, embora quase totalmente negado aos jurisdicionados brasileiros.
9.2. O "jus postulandi" deve ser reconhecido como essencial para garantir a efetividade de outro direito fundamental, o direito de amplo acesso à Justiça. Sem isso, todos os outros direitos poderão ser facilmente negados ao jurisdicionado brasileiro.
9.3. Os direitos fundamentais do povo não podem continuar sofrendo restrições, apenas para atender aos interesses corporativos da classe jurídica.
9.4. A contratação de um advogado, para que seja garantida a ampla defesa do jurisdicionado, deve ser um direito e não uma obrigação.
9.5. Se o jurisdicionado não puder pagar os serviços profissionais de um advogado, caberá ao Estado indicar um defensor público, concursado, para a defesa dos seus direitos.
9.6. A defesa dos carentes através de advogados dativos, não concursados, ou como no caso dos convênios da OAB e do Cadastro Nacional de Advogados, "criado" pelo CNJ, atenta contra os princípios constitucionais da igualdade, da moralidade, da eficiência e do concurso público.
9.7. É preciso criar os meios necessários para que se torne efetivo o "jus postulandi", assegurando-se dessa maneira que não sejam prejudicados os direitos dos litigantes que preferirem postular em causa própria.
9.8. É preciso modernizar o Judiciário, reduzir a burocracia e simplificar o processo.
9.9. É preciso tornar efetiva a garantia constitucional de acesso à Justiça, que não se pode mais aceitar que sofra quaisquer restrições, com evidentes motivações corporativistas.
Os créditos deste artigo vão para o colega Antonio Vinicius, bacharel em Direito, de João Pessoa, na Paraíba, e membro do MNBD - Movimento Nacional de Bacharéis em Direito, que tem o objetivo de extinguir o inconstitucional Exame de Ordem da OAB, e que foi o primeiro a compreender (mensagem enviada em 15.12.2008) as implicações dessa Decisão do Supremo Tribunal Federal em relação ao direito fundamental do "jus postulandi".