O DIREITO DE PROPRIEDADE EVOLUÇÃO HISTÓRICA NO BRASIL
Historicamente a propriedade, núcleo das ambições humanas, sempre esteve protegida não só contra atos do Poder Público como de terceiros, o direito de propriedade era pleno ao seu possuidor. Somente após o século XX, com a instalação do welfare state a propriedade passou a sofrer com decisões judiciais políticas, a relativização.
A Carta Imperial de 1824 trouxe "o direito de propriedade" no artigo 179, XXII, e ressalvou a hipótese do uso pelo Estado em face de uma necessidade pública, ocasião em que o proprietário recebia uma prévia indenização [05].
Neste período, no Brasil o direito de propriedade (como estabelecido na C.F. de 1824) garantia ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor do bem em toda sua plenitude, sendo ainda deferido o direito de reavê-lo do poder de quem ilegalmente o possua.
Segundo a doutrina, a Constituição Republicana de 1891, ressalte-se, que inspirou o Código Civil de 1916, fez constar num plano mais concreto de normatividade o conceito de propriedade, com previsão de limites de ordem administrativa [06].
Com base nas garantias constitucionais contidas nas duas Cartas Constitucionais, os proprietários tinham, quando da utilização da propriedade pelo Estado, o direito a uma justa indenização.
Assim, o aproveitamento ou a utilização de propriedades pelo Estado em caso de necessidade pública se impunha desde a Carta Imperial como um dos limites à liberdade do uso da propriedade, respeitada é claro a garantia da justa indenização, constante dos textos constitucionais.
Celso A. B. De Mello (Curso de Direito Administrativo, 14ª ed. São Paulo. Malheiros, 2000, p.728), descreve que a utilização de um bem particular pelo Estado é um sacrifício de direito, é forma originária de aquisição da propriedade.
Em 1934, o Brasil sofrendo influência da Europa, fez com que o legislador constituinte incluísse, no texto da nova Constituição,0 no Título VI, a disciplina sobre a ordem econômica [07]. A inovação imprimia desde então: 1º – a preocupação do legislador em garantir uma existência digna ao povo e a, 2º - garantia dos princípios da justiça e necessidade dentro dos limites que garantiam a liberdade econômica: livre iniciativa na oferta de produtos e serviços.
Reafirmando a garantia de uma existência digna, o artigo 121 descrevia que: "A lei promoverá o amparo da produção e estabelecerá as condições do trabalho" na cidade e no campo. Já nesta época, é claro o interesse de que a produção e o trabalho eram de interesse público, caminhando juntos para o desenvolvimento econômico do País. Foi neste período que o direito de propriedade começou a sentir que não poderia ser mais exercido de forma absoluta mais no sentido do interesse social ou coletivo [08].
Em 1937, a nova Carta fez-se suprimir novos avanços com relação ao interesse social, sem, contudo, deixar de se reafirmar no art. 122, XIV, o direito de propriedade, ressalvando o interesse público para a utilização da propriedade desde que comprovado a necessidade ou utilidade pública.
Preocupado em reafirmar direitos e garantias constitucionais, o legislador, já naquela época, fez publicar a primeira norma que tratou sobre desapropriação, Decreto-lei nº. 3.365 publicado em 18 de julho de 1941.
No artigo 2º o Decreto reafirma que, mediante declaração de utilidade pública, todos os bens sem distinção poderiam ser desapropriados, limitações que respeitam direitos e garantias pela União, Estado e Municípios.
O artigo 5º deste mesmo decreto enumera de forma taxativa as hipóteses [09] que seriam consideradas como casos de utilidade pública. Dentre outras hipóteses consideradas como de
utilidade pública, está a desapropriação descrita na alínea "h", que trata da "exploração ou a conservação dos serviços públicos". Note-se que a norma descreve a exploração e conservação de serviços públicos. Neste sentido, visando à conformação da norma com a Constituição, conservar, manter ou explorar serviços com a utilização de unidades particulares de serviço, ensejaria uma justa indenização.
Com a promulgação da Constituição Federal de 1946, a realização da desapropriação seria no intuito de justa distribuição da propriedade [10], vide artigo 147.
O parágrafo 16 do artigo 141 garantia o direito de propriedade, ressalvando os casos de desapropriação por necessidade, utilidade pública ou por interesse social mediante prévia e justa indenização em dinheiro.
Neste período, o direito de propriedade no Brasil volta ao reconhecimento dos interesses dos não-proprietários pela utilidade pública através da desapropriação. Assim, o chamado interesse social e a utilidade pública foram os primeiros fundamentos sobre os quais o Estado se baseou para impor a perda do direito de propriedade em função da coletividade.
Em 1956, o Decreto-lei 3.365/41 sofre nova redação com a promulgação Lei 2.786. O artigo 26 descrevia que a indenização a ser realizada no caso das desapropriações seria aquela obtida pela avaliação contemporânea.
Com a Constituição Federal de 1962, veio a promulgação da Lei 4.132, em 10 de setembro, que definiu outras possibilidades de condicionar o uso da propriedade, sempre pelo interesse social:
"Art. 1º - A desapropriação por interesse social será decretada para promover a justa distribuição da propriedade ou condicionar o seu uso, ao bem estar social, na forma do art. 147 da Constituição Federal". g.n.
Nota-se que a necessidade do Estado de se apossar de bens trouxe uma evolução aos conceitos de propriedade, patrimônio e bens. Passou, então, a utilizar também o condicionamento da propriedade em uso, vindo assim mais tarde a ser publicada a Lei Delegada 4 de 26 de setembro de 1962.
Esta Lei veio dispor sobre o artigo 146 da CF/62, autorizando o Poder Público a intervir no domínio público, visando a assegurar serviços essenciais ao povo mediante justa indenização ao privado, inciso III do artigo 2º, requisição mediante compra ou indenização.
Com a Constituição de 1969, o Decreto-Lei sofre nova alteração, só que desta vez pelo Decreto-lei 856/69, que incluiu o parágrafo 3º no artigo 2º do Decreto 3.365/41, vedando aos entes a desapropriação de ações, cotas e direitos representativos do capital de instituições cujo funcionamento dependa de autorização do Governo [11]. Neste período, salienta-se a sua função social da propriedade no título destinado à disciplina da ordem econômica e social - artigo 160.
Findo o regime militar, é estabelecida a Constituição de 1988, que manteve as cláusulas anteriormente consagradas, tanto no rol dos direitos e garantias individuais quanto no título destinado à disciplina da ordem econômica e financeira [12].
É prudente destacar que estas normas que regularam a desapropriação e a requisição de serviços pelo Estado foram recepcionadas pela Norma Mãe de 1988, sendo estas as normas específicas para o fim de apropriação de bens e serviços pelo Estado.
Diante da evolução histórica do direito de propriedade, podemos observar a preocupação do legislador com o patrimônio. Algumas alterações importantes no conceito de patrimônio, utilização e uso deste tornaram-se, na Constituição de 1988, verdadeiras garantias, sendo dever do Estado assegurá-las.
COMPREENSÃO DO QUE VENHA A SER PROPRIEDADE E A TEORIA DA VERDADE
A verdade, segundo Jurgern Habermas, são enunciados que não pairam dúvidas, são proposições que, quando levadas a críticas, formam uma aceitação universal. Desta forma, as normas que trazem proposições que se dizem verdadeiras devem ser provadas em suas proposições, para que venha ser determinada a verdade para todos.
O núcleo do dispositivo atacado da Lei 9.870/99 está na manutenção, mesmo que por determinado tempo, na prestação de serviços educacionais a terceiro inadimplente (obrigação contratual). Esta garantia, de educação, como realizada pelo dispositivo de lei importa em esforço ou sacrifico de um determinado grupo ou coletividade ferindo outras garantias constitucionais.
A propriedade resguardada pela Constituição, num sentido semiológico, revela-se como "direito de usar, gozar e dispor de um bem e de reavê-lo do poder de quem o possua ilegalmente e compõe, o que podemos denominar de patrimônio: "conjunto de bens, direitos e obrigações economicamente apreciáveis, pertencentes a uma pessoa ou a uma empresa". Uma verdade que não se opõe ao mundo dos fatos e aos discursos, tornando fácil a compreensão da proteção instituída a propriedade no artigo 5º, XXII, XXIII e 170,II, III.
A Constituição Federal prevê a aplicação de medidas excepcionais para limitar Direitos Fundamentais na restauração da ordem em momentos de anomalias, Estado de defesa e Estado de sítio. Esta limitação vem relacionada à suspensão de determinadas garantias (vide artigo 136). A excepcionalidade, descrita neste artigo, segundo comentários de Alexandre de Morais (Comentários a Constituição do Brasil. p. 1658), permite que sejam realizadas suspensões temporárias dos seguintes Direitos Fundamentais: arts. 5º, XII, XVI, LXI. Ante esta
afirmação, poder-se-ia inferir que as limitações que vierem atingir os bens descritos nos arts. 5º, XXII, XXIII e 170, II e III, estas devem se conformar com o postulado que garante o direito de propriedade, a justa indenização.
O Código Civil no art. 988 [13] descreve que o patrimônio é composto de: "...bens e dívidas sociais..., do qual os sócios são titulares em comum...", uma verdade como visto na definição do Dicionário Houaiss aceita universalmente. Assim, a renda, as dívidas, bens tangíveis e intangíveis que compõem o patrimônio de uma pessoa física ou jurídica são propriedades.
Numa visão mais ampla, o bem, que cumpre uma função social, se revela no mesmo sentido do bom e do útil, é tudo aquilo que pode beneficiar pessoas, suscetível de uma apropriação legal e vem sempre mostrar a utilidade e a vantagem promovida por algo a determinada pessoa ou grupo (pessoas que compõem uma pessoa jurídica), ou mesmo contratada por esta. Isto importa em se afirmar a verdade da propriedade que cumpre uma função social e promove vida digna a todos os envolvidos em determinada atividade econômica como no caso das empresas-escolas.
O bem serve ainda para designar a coisa ou o direito, incorporado ao patrimônio de todos os envolvidos na atividade econômica privada; portanto, podem ser corpóreos ou incorpóreos, ou ainda, econômico ou moral (imóvel, móvel, direito, ação, crédito, etc.) (Dicionário Houaiss).
Neste diapasão, a atividade empresarial quando exercida de forma lícita e constituída na forma da lei, formam um conjunto de bens, propriedades que passam a compor o patrimônio dos envolvidos, trazendo reflexos diretos e indiretos no patrimônio particular dos gestores e trabalhadores envolvidos na atividade econômica.
Diante do descrito, toda coisa, todo direito, toda obrigação, enfim, qualquer elemento material ou imaterial que representa uma utilidade ou uma riqueza consubstanciada numa propriedade, que integra o patrimônio de alguém e passível de apreciação monetária protegido pela Constituição Federal.
Orlando Gomes, numa visão do que seja o conjunto de bens (propriedades) integrativos do patrimônio de uma empresa, destaca os créditos e os débitos, a clientela, os segredos do negócio e etc..
Neste sentido, qualquer limitação realizada por norma infraconstitucional a propriedade, mesmo que de forma genérica, deve estar em conformidade com a Norma Mãe, sob pena de ferir a verdade contida na Constituição.
A garantia constitucional da propriedade deve ser entendida na sua amplitude máxima, ou seja, a qualquer tipo de propriedade descrita no mundo das realidades, o que torna verdadeira a linguagem dos signos e faz a Constituição Federal o ápice do ordenamento jurídico.
Notadamente, os créditos e débitos que decorrem da relação estabelecida contratualmente livre, em que as partes de forma espontânea declaram e aceitam os exatos termos do contrato, compõem um conjunto de propriedades da pessoa física ou jurídica. Se verifica então a liberdade das partes e a premissa como verdadeira de que: "o empresário deve assumir o risco do negócio, devendo ser suportado por aquele que concedeu o crédito".
Contudo, quando se verifica que o legislador infraconstitucional usando de uma sabedoria contumaz realizou a garantia de educação, dispondo da propriedade privada, obrigando o privado (escola) a manter um serviço mesmo que por um determinado tempo, sob o argumento de que a escola tem resguardado o direito de cobrar os créditos havidos na relação com o inadimplente naquele tempo determinado, constatamos uma ruptura com a verdade, e o direito da propriedade e de liberdade (manter o contrato - de conceder o crédito, ou mesmo de acreditar na relação, o que impõe a pessoa jurídica o risco do negócio) passa a sofrer agressões.
Manter uma pessoa jurídica prestando um serviço, recebendo créditos estabelecidos havidos por força exclusiva de um dispositivo de lei não gera a proteção ao direito de propriedade, pois a empresa-escola passa a ter créditos que são questionáveis, uma vez que estes são havidos de uma relação já desgastada e por força de lei, quase sempre tais créditos não são recebíveis em face da situação falimentar que o contratante passou a viver, e o que é pior, nesta situação o suposto crédito gera obrigações de pagar tributos, tais como: ISS, IR, COFINS e outros, comprometendo todo o patrimônio dos envolvidos.
Não bastassem esses argumentos, a lei, ao retirar a liberdade de decidir e gerir dos gestores das empresas-escolas, traz o agravamento da liberdade, de ir e vir do gestor que,
além de se preocupar em manter o serviço, deve agora se preocupar em financiar o inadimplente e pagar os impostos, taxas e salários dos envolvidos.
O Dicionário Houaiss, descrevendo crédito, afirma ser este uma "transação em que o comprador, investido de confiabilidade pela empresa ou loja credora, adquire um bem ou serviço que irá pagar em uma ou mais cotas ou parcelas durante tempo determinado por aquela". Isto importa afirmar que a verdade descrita no texto do dispositivo atacado é uma falácia, pois, estes créditos decorrem de uma imposição de dispositivo legal, em que não houve liberdade para se decidir. Diante desta afirmação, importa que o Estado credor de tributos, inclusive os relativos desta operação, viesse a receber os títulos gerados por ela ou mesmo compensar nos valores dos créditos tributários com os créditos havidos neste período.
Fábio Ulhoa Coelho descreve que o estabelecimento empresarial não é sujeito, mas sim, uma coisa que integra o patrimônio. Essas posições robustecem a compreensão trazida de que: 1 - o estabelecimento ou fundo de comércio; 2 – as marcas, patentes e invenções; 3 - os créditos e débitos; 4 – a clientela e o direito de contratar; 5 – os segredos do negócio - compõem juntamente com os bens corpóreos móveis e imóveis o "conjunto" Patrimônio.
A Resolução CFC nº. 774 de 16 de dezembro de 1994, que aprova o Apêndice à Resolução sobre os Princípios Fundamentais de Contabilidade aprovados pela Resolução CFC nº. 750-93, de 29 de dezembro de 1993, descreve que o Patrimônio delimita o campo de abrangência da ciência, tanto nas ciências formais quanto nas factuais, das quais fazem parte as ciências sociais.
Para a contabilidade, o objeto da sociedade é também PATRIMÔNIO de uma empresa. Isto nos permite acrescentar àquele conjunto descrito, mais este item, e mais, que é essencial a manutenção do patrimônio que este disponha de autonomia em relação aos demais patrimônios existentes, o que significa que a empresa deve poder dispor livremente de suas decisões na defesa de seus objetivos, respeitados, é claro, os limites descritos no texto constitucional.
Com base nestas definições, olhando para a determinação do § 1º do artigo 6º da Lei 9.870/99, impõe-se afirmar que a relação da escola particular mantém com o cliente-inadimplente não se dá pela confiança, mas por força de lei que vem limitar propriedades e direitos sem observar o postulado constitucional que as garante.
Por fim, a escola, obrigada a parcelar valores contratados de serviços em 6 ou 12 meses, conforme imposição de lei, sofre uma intervenção branda do Estado em sua gestão. O que não se pode afirmar, quando a intervenção que transcende os limites da mera inconveniência e passa obrigar o particular na forma do § 1º do artigo 6º a manter um serviço ao devedor inadimplente, o dispositivo de lei que gera sacrifícios diretos ao particular, intervém na atividade, atingindo o patrimônio, que passa a responder pelos custeios da atividade se sobrepondo ao texto constitucional, o que não se pode admitir.