4. O suposto "ancilosamento" da execução trabalhista e a aplicação da analogia "contra legem" do CPC.
A um só tempo entusiasmados com as novidades implementadas com a reforma da execução por quantia certa do CPC e frustrados com o descaso em relação à reforma da CLT, uma parte considerável da doutrina vem entendendo ser cabível a aplicação do CPC na execução trabalhista, mesmo que haja dispositivos expressos na CLT em sentido contrário. Esses jurisperitos, em apertadíssima síntese, defendem que o Direito não é constituído apenas por um conjunto de leis mas também de valores e princípios fundamentais, que, por sua vez, se sobrepõem às leis. Assim, a duração razoável do processo e a dignidade do trabalho humano são princípios com os quais estaria a CLT em contradição, ao não admitir um rito de execução tão célere quanto o previsto no CPC.
Além disso, argumentam ainda os seguidores da referida corrente que o Direito não é constituído apenas de um punhado de leis mas, rediga-se, de três dimensões: "Um aspecto normativo (o Direito como ordenamento e sua respectiva ciência); um aspecto fático (o Direito como fato, ou em sua efetividade social e histórica) e um aspecto axiológico (o Direito como valor de Justiça)". [96] Desse modo, a execução trabalhista, diante do advento da Lei n.º 11.232, de 2005, tornou-se anacrônica, ou seja, não acompanhou a evolução dos fatos e dos valores, não aderiu ao modelo constitucional de processo, como o fez o CPC.
Tais argumentos são tão sólidos que não podem ser desprezados, sob a simples alegação de que os artigos 8.º, 769, 889 da CLT e 1.º da LEF não admitem a aplicação do CPC na execução trabalhista, quando a CLT ou a LEF disponham sobre a mesma matéria. Noutros termos, a tese defendida pela referida corrente deve ser analisada serenamente.
Em primeiro lugar, discordamos, data venia, da idéia de que o sistema de execução trabalhista esteja inteiramente "ancilosado". É certo que a última etapa da Reforma do CPC representou uma grande avanço em termos de simplificação e agilidade do processo civil, que, anteriormente, se comparado ao sistema da CLT, era considerado por demais formalista e burocratizado. Tanto que esta vem servindo de inspiração para alguns aspecto das reformas do processo civil e, ainda hoje, o sistema da CLT possui dispositivos avançados em relação ao do CPC.
Vejamos alguns exemplos mais significativos. No processo trabalhista, quando houver condenação em pecúnia, temos a exigência do depósito recursal, atualmente no valor de R$ 4.993,78, [97] para que o devedor tenha o recurso ordinário admitido. O mesmo depósito prévio será exigido a cada novo recurso, mesmo na fase de execução, até que o valor total da condenação esteja garantido. "Transitada em julgado a decisão recorrida, ordenar-se-á o levantamento imediato da importância de depósito, em favor da parte vencedora." [98] O processo civil não contém dispositivo semelhante. Aliás, a multa do art. 475-J tem natureza jurídica diferente, predominantemente coercitiva e, em segundo lugar sancionatória, enquanto que o depósito recursal visa garantir o cumprimento da sentença condenatória. A propósito, segundo o magistério de Rodrigues Pinto, o depósito prévio tem natureza jurídica de caução. [99] Noutros termos, a multa do art. 475-J do CPC contribui menos com a efetividade das execuções de pequenos valores do que o depósito prévio da CLT.
Além disso, a execução trabalhista poderá ser iniciada, de ofício, pelo Juiz do trabalho, quando o reclamante não for patrocinado por advogado. [100] Enquanto no processo civil cabe ao credor, ainda que por simples petição, apresentar a memória dos cálculos e pedir que os atos de constrição sejam praticados contra o devedor, no prazo de seis meses, sob pena de arquivamento provisório. [101]
Finalmente, há uma interpenetração dos atos de acertamento e constrição na execução trabalhista, que lhe confere maior agilidade. Vale dizer, a decisão de homologação dos cálculos de liquidação de sentença, na maioria dos casos, é provisória, de modo que o montante definitivo só é fixado depois da citação e, consequentemente, da avaliação e da penhora, na sentença de embargos à execução — que julga, simultaneamente, a impugnação aos cálculos, os embargos à penhora e à própria execução. Assim, geralmente, apenas um recurso, o de agravo de petição, é manejado para atacar todas as decisões relativas aos atos referidos, ao contrário do que acontece no processo civil atual, que admite pelo menos dois agravos de instrumento na etapa de execução. [102]
Em segundo lugar, também não concordamos com o pensamento da corrente que defende a aplicação analógica do CPC contra a regra expressa da CLT, por outro fundamento, id est, não se pode nunca perder de vista o estudado princípio fundamental da segurança jurídica. A esse respeito, professa Hélio Tornaghi que "o órgão judicial é responsável pela celeridade do processo, ‘mas sempre cuidando que não se mutilem as garantias, quer de observância do direito objetivo, quer de respeito aos direitos subjetivos das partes ou de terceiros. O acerto da decisão prima sobre a sua presteza. É preciso que a ligeireza não se converta em leviandade, que a pressa não acarrete a irreflexão. O juiz deve buscar a rápida solução do litígio, mas tem de evitar o açodamento, o afogadilho, a sofreguidão. Deve ser destro, sem ser pior que o vagaroso. A observância rigorosa das formas e prazos legais é a melhor receita para conciliar rapidez e segurança’". [103]
Por outras palavras, apenas naquelas situações-limite, rediga-se, nas quais a aplicação irrefletida da lei venha a provocar um fato frontalmente contrário aos fundamentos do próprio sistema jurídico, se justificaria a desobediência da mesma lei. Caso contrário, corre-se o risco de se cair numa "tirania dos valores", como advertiu Carl Schmitt, seguindo, Hartmann. [104]
Noutros termos, é preciso que o jurisdicionado tenha diante de si um mínimo de previsibilidade para que possa enfrentar um processo judicial com o seu direito constitucional de defesa respeitado. [105]
Em outras palavras, se o rito processual da execução variar completamente — conforme o entendimento de cada juiz do Trabalho — tal situação, sem dúvidas, provocará uma perplexidade e uma avalanche de recursos tamanha que o objetivo inicial de imprimir maior celeridade à execução trabalhista terminará por redundar, contrariamente, em maior lentidão. Nesse sentido, vejamos a insuspeita posição de Luiz Rodrigues Wambier, Teresa Arruda Alvim Wambier & José Miguel Garcia Medina: "A tutela jurisdicional tempestiva deve ser vista em sua relação com o meio em que deve atuar. Deste modo, deve ser considerada a repercussão da decisão judicial entre as partes e o feedback deste evento em relação à própria atividade jurisdicional, pois o desenvolvimento dos atos processuais não é linear e unidirecional — isto é, não se esgota com a concessão de uma liminar ou a publicação de uma decisão judicial — mas ‘circular’, porquanto aos atos judiciais sucedem comportamentos das partes que se ajustarão ou reagirão contra eles, exigindo-se novos atos judiciais, e assim sucessivamente. De nada adianta criar soluções paliativas, que apenas transferirão o problema para outro plano". [106]
Em suma, a lei, mesmo a mal elaborada, anacrônica ou injusta, com todos os inconvenientes que lhe são inerentes, sempre representa um ponto de equilíbrio para os operadores do Direito, assim, repita-se, só em situações-limite, excepcionalíssimas, como última ratio, o juiz deverá dela se apartar, sob pena de atingir um dos pilares do Estado Democrático de Direito, qual seja a segurança jurídica
Em apoio ao nosso entendimento, trazemos a insuspeita lição de Karl Engisch: "As valorações do legislador não podem ser isoladas. Elas têm de ser relacionadas com outras valorações que estão por detrás da lei e imprimem o seu cunho ao ‘Direito’. Evidentemente, que a decisão imediata do legislador não deve ser menoscabada. A quotidiana atividade administrativa e jurisdicional não poderia efetuar-se sem leis que dispusessem claramente sobre a maioria dos casos. [...] Mas também nas últimas décadas se tem vindo a impor mais e mais o reconhecimento de que há muitos casos-limite e muitos casos de dúvida que já não podem ser resolvidos unívoca e claramente a partir da lei". [107]
Alfim, trazemos à baila o pensamento de Konrad Hesse, ex-Presidente do Tribunal Constitucional da Alemanha, como fonte de inspiração aos juslaboralistas que se debruçam sobre a espinhosa tarefa de analisar os reflexos da Reforma do CPC no processo trabalhista, sem perder de vista a necessidade de preservar o princípio da segurança jurídica: "Os interesses momentâneos — ainda quando realizados — não logram compensar o incalculável ganho resultante do comprovado respeito à Constituição, sobretudo naquelas situações em que a observância revela-se incômoda". [108]
5. Aplicabilidade no processo trabalhista da multa do art. 475-J do
, o art. 880 [109] determina, expressamente, que o devedor seja citado para pagar a dívida — cujo valor ainda poderá ser alterado na sentença de embargos à execução, face à interpenetração dos atos de liquidação e constrição —, em quarenta e oito horas, ou garantir a execução, sendo-lhe facultada a indicação de bens à penhora. [110]Essas diferenças sistemáticas entre as execuções previstas no CPC e na CLT têm levados dois dos maiores doutrinadores do Direito Processual do Trabalho a defenderem ser inaplicável a multa do art. 475-J no processo laboral. Os jurisconsultos José Augusto Rodrigues Pinto e Manoel Antonio Teixeira Filho — a quem tanto deve a doutrina nacional — encabeçam a lista de notáveis contrários à aplicação da aludida multa no processo trabalhista. [111] A maioria da jurisprudência também segue esse mesmo entendimento. [112]
Nada obstante, humildemente, defendemos que, apesar das diferenças aparentemente inconciliáveis entre os dois sistemas de execução, é inegável que a reforma do processo trabalhista, ao contrário da implementada no processo comum, vem sendo negligenciada pelo legislador, cabendo aos operadores do Direito do Trabalho se anteciparem, diante da falta de vontade política evidenciada — mesmo que se tenha de fazer um verdadeiro tour de force —, para adaptar o processo laboral ao modelo constitucional de processo, o que já vem sendo implementado com sucesso pela Reforma do CPC. [113][114][115]
Por sinal, professam Luiz Wambier, Teresa Wambier & José Miguel Medina que segurança jurídica também é prejudicada pela morosidade da execução judicial: "A prestação jurisdicional tardia é fator de insegurança, na medida em que contribui para a intranqüilidade do que seja, efetivamente, o sentido do Direito para os cidadãos". [116] Finalmente, pugna Cândido Dinamarco — com apoio em Mauro Cappelletti — por uma nova forma de pensar o Direito Processual: "Sem um renovado método de pensamento, não há programa de reforma que possa ter sucesso". [117]
De tal arte, sugerimos que, no processo trabalhista, sempre que seja possível, se profira sentença condenatória líquida, na qual o juiz do Trabalho deverá impor, expressamente, ao devedor que pague a dívida, no prazo de quinze dias, a partir do trânsito em julgado da sentença, sob pena de arcar com a multa estabelecida no art. 475-J do CPC.
D
everá constar do decisum, outrossim, que — em caso de recurso à superior instância — a parte será cientificada da baixa dos autos, só começando a correr daí o prazo para o pagamento espontâneo. Isso, repita-se, por impossibilidade prática de realização do pagamento, haja vista que a execução deve ser processada no juízo de origem. Aliás, tal entendimento encontra abrigo na letra expressa da Consolidação das Leis do Trabalho: "Art. 832 - [...] § 1.º - Quando a decisão concluir pela procedência do pedido, determinará o prazo e as condições para o seu cumprimento". [118]Desse modo, se o reclamado não apresentar o
recurso ordinário no prazo de oito dias, nem pagar a dívida no tempus iudicati de quinze dias, a contar do trânsito em julgado da sentença líquida, a multa referida é devida, sendo ele citado para pagá-la, juntamente com o valor total da condenação, garantir a execução através de depósito ou indicar bens à penhora, no prazo de quarenta e oito horas. Caso não pague o débito mas recorra, tempestivamente, a multa, é óbvio, só lhe será imposta se for derrotado no recurso ordinário. [119] Se, porém, o recurso for parcialmente provido, a multa recairá apenas sobre o valor eventualmente modificado pela instância revisora.Além disso, salvo melhor juízo, o montante do depósito recursal — muito embora não tenha natureza jurídica de pagamento mas de caução — deverá ser abatido da base de cálculo da multa, ou, conforme o caso, até mesmo torná-la desnecessária, quando o valor do depósito prévio cobrir o montante total da condenação. Afinal, ad instar do que ocorre na ação de consignação em pagamento, é lícito ao devedor discutir em juízo o valor do seu débito, depositando, de logo, o montante que entende devido para livrar-se dos efeitos da mora.
Por outro lado, se for a sentença trabalhista exarada de forma ilíquida — a não ser que se entenda que o desenho da execução trabalhista já se encontra completamente ancilosado e, por conseguinte, se deva substituí-lo, integralmente, pelo modelo de cumprimento de sentença previsto no CPC reformado — não vemos como se compatibilizar a imposição da multa do art. 475-J do CPC com o sistema atual da CLT. Isso porque apenas depois do trânsito em julgado dos embargos à execução trabalhista o valor da condenação pode ser considerado definitivo. Vale dizer, aí não se poderia impor ao devedor o pagamento do valor da execução, atribuído, unilateralmente, pelo credor e homologado, de modo precário, pelo juiz do Trabalho, sem a oitiva do devedor, sob pena de multa, ao arrepio do princípio do devido processo legal. Mesmo que nesse caso o reitor do processo use da faculdade de conceder ao executado o prazo de dez dias para impugnar os cálculos a sentença de liquidação que o homologar, ainda assim, poderá ser reformada, por força dos embargos à execução. [120]
Por outro lado, posto que não sejam opostos embargos à execução, decorrido o prazo de cinco dias da intimação da penhora, há outro óbice à imposição da multa art. 475-J do CPC, representado pelo fato de a execução já estar garantida, não cabendo aí, logicamente, a intimação do devedor para o pagamento da dívida, já que a CLT lhe garante o direito alternativo, na fase executória, de garantir o valor da condenação para poder discuti-lo nos embargos à execução. [121]
Observe-se que a multa do art. 475-J não tem natureza apenas sancionatória mas primordialmente coercitiva, ou seja, ela tem por escopo maior não punir,mas obrigar o devedor a quitar espontaneamente a dívida, id est, sem a necessidade de se iniciar a tormentosa prática de atos executivos pelo Estado-juiz.
Por outras palavras, o procedimento especial do pagamento espontâneo da obrigação, estabelecida na sentença condenatória, previsto no art. 475-J do CPC, se insere, repita-se, numa etapa antecedente à execução, [122] ou seja, antes da avaliação e da penhora. Por isso mesmo, não faz nenhum sentido a concessão do prazo de quinze para o pagamento voluntário da condenação, sob pena de imposição da aludida multa, quando já realizada a penhora.