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Justificacionismo: a pena como instrumento legal e justo do "ius puniendi" (?)

Agenda 03/05/2009 às 00:00

O chamado "justificacionismo", na concepção de Ferrajoli, é a doutrina que justifica a pena na medida do problema que se origina no "poder de uma comunidade política qualquer de exercitar uma violência programada sobre um de seus membros". Assim, traz como justas, ou aceitáveis, ou aceitáveis moralmente e politicamente os motivos que justificam (ou autorizam) tal poder. Para Beccaria está fundado o direito de punir os delitos "sobre a necessidade de defender o depósito do bem comum das usurpações particulares" [1].

O Direito Penal é o ramo jurídico no qual os quesitos do "se" e do "porque" se apresentam de maneira mais delicada, expressando, todavia, a carga filosófica-política envolvendo tanto a justificação, como também a não justificação, e in casu, o abolicionismo. Tal constatação nos revela que em se tratando das "justificações filosóficas dos institutos de direito civil e constitucional – com exceção da propriedade privada e dos seus institutos afins – dizem respeito mais ao ‘quanto’ e ao ‘como’, do que ao ‘se’ e ao ‘porque’ das suas existências". Isto manifesta, que a problemática epistemológica da legitimação política e moral do sistema penal, no sentido de operar como método de domínio social por meio de restrições às liberdades individuais, é também o problema da legitimação dogmática peculiar do Estado opressor [2].

O sistema do Direito Penal é um intrincado processo de expressão do mando coletivo. Assim, entende Zaffaroni que a legitimidade do sistema penal é "a característica outorgada por sua racionalidade. O poder social não é algo estático, que se ‘tem’, mas algo que se exerce – um exercício – e o sistema penal quis mostrar-se como um exercício de poder planejado racionalmente" [3].

Nils Christie, faz a seguinte alusão: "quando mandamos uma criança para escola, ela vai aprender os valores da escola, dos amigos, vai formar sua rede de conexões. O mesmo acontece com a pessoa que é mandada para a prisão, mas aqui os valores aprendidos são outros"


A doutrina abolicionista

A doutrina abolicionista confere ilegitimidade ao Direito Penal, não concebendo, nenhum objetivo com o fim de que se justifique os tormentos decorrentes do apenamento. Outrossim, o abolicionismo prevê que a abolição da pena seja praticada, em favor de uma orientação pedagógica e informal ao criminoso.

A legitimidade estatal em estabelecer sanção penal, aos seus cidadãos portadores de direitos que são, sempre esteve em voga, justificada por diversas teorias construídas ao longo dos anos. Contudo, a doutrina abolicionista aparece como uma crítica rumo aos problemas criminais.

Isto posto, se faz necessário que se entenda que o cerne do discurso abolicionista, encontra-se centrado na ineficiência do sistema penal, buscando uma humanização, em vista da redução da violência penal [4].

O abolicionista edifica, desde o ponto de partida, uma proposta alternativa à política criminal, e não uma política criminal alternativa. "El buen abolicionista, que existe en la misma medida en que existe el delito, es aquel que tiene como objeto de estudio el sistema penal, y como objetivo, la destrucción de su objeto de estudio". Assim, tal propósito de eliminar o seu objeto de estudo é a única circunstancia que o define. É dizer que, pensar que o abolicionismo infere numa teoria coerente, sistemática e acabada seria incorrer em erro. Por isso, verifica-se no sistema atual tantos fundamentos e explicações a favor da abolição do sistema penal [5].

O que se visa combater, é um alargamento do enfoque penal, pelo modo de extinguir-se o sistema vigente, ou seja, o abolicionismo (numa corrente fenomenológico-historicista) almeja primeiramente estreitar ao máximo o direito penal até que se chegue ao marco zero da violência estatal justificada. É assim, que o abolicionismo compõe um conjunto de correntes e aspectos "ético-culturais" rumo à negação da justificação e ilegitimidade da pretensão punitiva estatal [6].

As razões que Louk Hulsman aponta como fundamentais, na direção abolicionista, tratam especificamente: do sofrimento desnecessário e "distribuído" de maneira injusta decorrente do sistema penal, da não verificação dos efeitos almejados em relação às pessoas envolvidas, e por derradeiro da dificuldade que se infere acerca da manutenção do controle sobre os apenados [7].

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Muito além do que uma (razoável) não justificação da pena, as doutrinas abolicionistas radicais, direcionam à um enfoque crítico também as "proibições em si e os julgamentos penais", de maneira que deslegitima por completo qualquer "constrição ou coerção, penal ou social". Tal posicionamento, fora exteriorizado por obra de Max Stirner, expressando um "individualismo anárquico", fundado na desvalorização da ordem e das regras, jurídicas e morais. Nesta acepção, chega-se ao ponto de valorizar a "transgressão e a rebelião, enquanto livres e autênticas manifestações do ‘egoísmo’ a-moral do ego, cujos julgamento, prevenção e punição constituem injustiças" [8].

Todavia, os doutrinadores abolicionistas não são unânimes nos seus estudos, tendo em vista que provêm da mais variada vertente do pensamento. Assim, Thomas Mathiesen, enfoca uma tendência marxista, Louk Hulsman expressa um enfoque fenomenológico, Nils Christie aborda o abolicionismo fenomenológico-historicista e por derradeiro, Michel de Foucault estruturalista na sua razão, ainda que não possa ser relevado como abolicionista, nesse sentido perpetuou sua doutrina [9].


Perspectivas abolicionistas: as sociedades selvagem e disciplinar

Revela-se como característica comum a essas doutrinas a razão de um duplo efeito. O paradigma de uma sociedade selvagem, caracterizada pela ausência de leis, desorganizada e à revelia da "lei natural do mais forte"; parafraseado por uma sociedade disciplinar, pacífica e totalitária, na qual as necessidades conflitantes sejam imediatamente recepcionados pelo Estado, o qual as controla e aplica uma solução, e ainda é capaz de prevenir conflitos, utilizando-se de instrumentos "ético-pedagógicos de interiorização da ordem, ou de tratamentos médicos, ou de onisciência social e, talvez policial"; representa uma antítese, a medida que o "vício comum da utopia e da regressão", verificam-se presentes. Tratam-se de duas opostas mitologias do "Estado natural", isto é, da sociedade sem normas, entregue ao bellum omnium contra omnes, e aquela sociedade bucólica (casta) de caráter primário, que não fora contaminada pelos conflitos cotidianos de uma sociedade plúrima [10].

Também pode-se atribuir, à tais doutrinas, uma superficialidade ao demonstrarem a justificação e a deslegitimação do Direito Penal, no tocante a qualidade ou quantidade da pena, a qualidade e quantidade da proibição, e a técnica de controle processual. Frustando, neste sentido, "toda e qualquer orientação garantista", fundindo em uma negação uníssona paradigmas criminais autoritários e liberais, assim, não ofertando subsídio à dissolvência dos intrincados problemas relacionados aos limites de atuação do ius puniendi. Para Ferrajoli, o problema se apresenta no seguinte sentido: "esta esterilidade de projetos, é fruto da inconsistência lógica e axiológica de ambos os projetos jusnaturalistas que se encontram na base das duas opostas versões do abolicionismo, ou seja, aquela do ‘princípio amoral’ do egoísmo, que regularia a sociedade do bellum omnium, e aquela do ‘principio moral’ da auto-regulamentação social que marca a sociedade pacificada e sem Estado". Em verdade, os dois princípios não se preenchem de maneira suficiente e idônea, para que se sustente outro pensamento que não o do autoritarismo, "posto que confiados ao jogo livre e desenfreado dos poderes", não reconhecendo distinção entre eficácias individuais, não-individuais ou políticas [11].

É possível que se verifique, tanto a perspectiva de uma sociedade selvagem, como a perspectiva de uma sociedade disciplinar em qualquer doutrina abolicionista, sendo a razão da perspectiva apenas uma modalidade de realização fim da ilegitimação da pena.


Considerações

A pena como instrumento de reação do Estado, e na concepção de Kant, como retribuição à conduta danosa, enfrenta, assim como praticamente todo o Direito Penal, uma crise de ordem jurídico-dogmática, que afeta o mais primordial dos sentidos do Direito Penal: a pena; assim, adquire um assento em apartado em relação ao acordo constitucional.

Portanto, toda a crítica que se constrói é em razão do discurso jurídico-penal. O abolicionismo, considera que se tal discurso atuasse conforme o sistema penal, lhe seria conferido legitimidade.

Convém salientar, que acerca do fracasso da pena, em especial a privativa de liberdade, desde o século XIX Franz von Liszt já alertava sobre "a suspensão condicional, substitutivos de caráter pedagógicos para criminosos jovens, e se insurgia contra penas curtas, que ‘não corrigem, não intimidam’ e ‘muitas vezes, encaminham definitivamente para o crime o delinqüente novel’" [12]

Todavia, o abolicionismo penal como forma de redução da violência estatal configura-se como desregrado. Não reconhecer a legalidade do Estado e valer-se de métodos sancionatórios informais em prejuízo da instrumentalidade jurisdicional afronta os já consagrados princípios gerais de Direito.

Além do sentido libertário e humanitário, o abolicionismo penal, representa exatamente por isso, uma utopia regressiva, fundada em um "homem bom", uma "sociedade boa" e um "Estado bom", surge com uma personificação descomedida radicalmente surrealista.

Contudo, o direito das penas faculta aos indivíduos a livre escolha entre o agir criminoso e outra forma de agir, ao tempo que, em uma sociedade extrema (ou anárquica, ou disciplinada), a interferência estatal direciona os seus "vassalos" somente à um obrar, àquele preestabelecido. Por derradeiro, o abolicionismo penal, forma a mais perigosa e retrocedente das reações que se pode esperar, que é a reação vindicativa (descontrolada) seja particular ou estatal, por vezes ensejada por uma uniformidade social derivada do disciplinarismo.


Notas:

[1] BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução de Lucia Guidicini e Alessandro Berti Contessa. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 42.

[2] Idem, ibidem, p. 200.

[3] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. Tradução de Vania Romano Pedrosa e Almir Lopez da Conceição. 5.ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 97

[4] COSTA, Renata Almeida da. Abolicionismo utópico e garantismo penal tópico. Revista Justiça do Direito. Universidade de Passo Fundo. Faculdade de Direito, 2002, volume 1, número 16, p. 76.

[5] BOVINO, Alberto. Manual del buen abolicionista. Revista da Asociacion de Ciencias Penales de Costa Rica, número 16. Disponível em http://www.cienciaspenales.org/REVISTA%2016/bovino16.htm

[6] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavarez e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002, p. 201.

[7] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Ob. Cit, p. 98.

[8] FERRAJOLI, Luigi. Ob. Cit, p. 201.

[9] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Ob. Cit, p. 98 e ss.

[10] FERRAJOLI, Luigi. Ob. Cit, p. 203.

[11] FERRAJOLI, Luigi. Ob. Cit, p. 203.

[12] BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 8.ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 36.

Sobre o autor
José Carrazzoni Júnior

Egresso da Escola do Ministério Público (RS), Pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal pela Ulbra, Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARRAZZONI JÚNIOR, José. Justificacionismo: a pena como instrumento legal e justo do "ius puniendi" (?). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2132, 3 mai. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12680. Acesso em: 16 nov. 2024.

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