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Diretrizes e bases principiológicas do Código Civil de 2002.

Análise histórico-comparativa ao Código Civil de 1916

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Agenda 16/05/2009 às 00:00

4. Diretrizes assumidas na elaboração do Anteprojeto de Código Civil.

A intenção do legislador de 2.002 foi, em princípio, manter o amadurecimento do texto jurídico do Código Civil de Beviláqua. Para tanto, em 1.969, foi criada a Comissão Revisora e Elaboradora do Código Civil, a fim de aproveitar a maior parte do Código Civil de 1.916. Todavia, a necessidade de reestruturação das bases principiológicas mostrou-se altamente relevante. No mais, como o trabalho de Codificação é sistemático, a alteração feita em um artigo ou capítulo reflete em outros pontos do Projeto. [34]

O legislador de 2.002 adotou procedimentos, ora de cunho metodológico, ora de caráter basal, principiológico, para a edificação do atual código. São eles [35]:

a) preservação do Código vigente naquilo que fosse possível, para que não houvesse uma ruptura jurídica repentina entre as legislações. No mais, a doutrina e a jurisprudência aplicáveis ao código anterior poderiam ser utilizadas em parte na nova codificação;

b) Impossibilidade de se proceder à mera revisão do código anterior, em virtude da sua falta de correlação com a sociedade contemporânea;

c) Introdução de nova base principiológica, assentada na eticidade, socialidade e operabilidade;

d) Aproveitamento dos trabalhos anteriormente feitos de alteração da lei civil (primeiro por Hahneman Guimarães, Orozimbo Nonato e Philadelpho de Azevedo, com o anteprojeto do "Código das Obrigações"; e, depois, por Orlando Gomes e Caio Mario da Silva Pereira, com a proposta de elaboração separada de um Código Civil e de um Código das Obrigações, contando com a colaboração, neste caso, de Silvio Marcondes, Theóphilo de Azevedo Santos e Nehemias Gueiros.).

e) Introduzir no Código Civil somente matérias amadurecidas e pacificadas na doutrina e jurisprudência. As matérias controvertidas, ainda em discussão na seara jurídica, ou cujo conteúdo extrapola os limites do Direito Civil (bioética, por exemplo) ficariam reservadas a lei especial.

f) Adotar a divisão do Código Civil em Parte Geral e Parte Especial, esta dividida em Direito das Obrigações, Direitos Reais, Direito de Família, Direito das Sucessões, Direito de Empresa.

g) Realizar a Unificação do Direito das Obrigações, com a inclusão de mais um livro no Código Civil, inicialmente designado "Atividades Negociais", mas que acabou por ser designado de Direito de Empresa. Revogou-se, com isso, a primeira parte do obsoleto Código Comercial de 1850.

Roberto Senise Lisboa [36]traz um elenco complementar às diretrizes supra comentadas, que se passa a expor:

a) compreensão do Código Civil como a lei básica, mas não global, do direito privado;

b) consideração das atividades empresariais e negociais como decorrentes das obrigações em geral;

c) a redistribuição da matéria conforme a sistemática atualmente adotada (foi o que se deu, v.g., com o instituto da ausência, agora previsto na Parte Geral, e do bem de família, incluído no livro Do Direito de Família);

d) a preservação da mesma redação do Código de 1.916 no texto, na medida do possível, o que se sucedeu em mais da metade dos dispositivos;

e) eliminação da atual codificação civil de qualquer regra processual comum;

f) a inclusão das revisões indispensáveis, em decorrência da legislação especial posterior a 1916;

g) acolhimento de modelos jurídicos adotados pela jurisprudência (como fez ao prever a desconsideração da personalidade jurídica, com a finalidade de afastar a personalidade da pessoa jurídica e, consequentemente, responsabilizar seu administrador);

h) na elaboração da atual codificação, optaram por prescindir do excessivo rigor formal, revelado, v.g., na adoção do princípio de que o contrato firma-se livremente, sem necessidade de forma especial, o que só será requisito de validade deste negócio se a lei expressamente determinar;

i) consulta às entidades públicas e privadas sobre o conteúdo do Anteprojeto;


5. Princípios Informadores do Código Civil de 2002.

Segundo Miguel Reale [37], o Código Civil de Beviláqua teve sua construção orientada pela mentalidade individualista assentada em dados populacionais, pois à época de sua produção 80% da população vivia em zona rural. Na atualidade, tendo em vista a industrialização, expansão do setor terciário da economia, acelerada urbanização, a população volta-se para áreas urbanas, o que imprimiu maior caráter social à Lei Civil de 2.002.

Na verdade, como assevera Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, o Código Civil de 1.916 reflete os anseios de uma sociedade agrária e conservadora e foi concebido com tais influências. Já a Codificação de 2002 sofre influência de outro contexto, pós Grandes Guerras, marcado pela maciça intervenção do Estado na economia, com a nítida diminuição da autonomia privada, pelo chamado dirigismo contratual. [38]

Com esse espírito social, a nova codificação traz como um dos seus princípios [39] noteadores a Socialidade, segundo o qual há "prevalecência do interesse coletivo sobre o individual, dando ênfase à Função Social da Propriedade e do Contrato e à posse-trabalho..." [40]

Neste sentido, vale transcrever a lição de Judith Martins-Costa e Gerson Luiz Carlos Branco, citados por Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho:

O quadro que hoje se apresenta ao Direito Civil é da reação ao excessivo individualismo característico da Era codificatória oitocentista que tantos e tão fundos reflexos ainda os lega. Se às Constituições cabe proclamar o princípio da função social – o que vem em regra desde Weimar -, é ao Direito Civil que incumbe transformá-lo em concreto instrumento de ação mediante o recurso à função social e também à boa-fé – que tem uma face marcadamente ética e outra solidarista -, instrumentaliza o Código agora aprovado a diretriz constitucional da solidariedade social, posta como um dos objetivos fundamentais da República. [41]

Diversos dispositivos do Código Civil reportam à ideia de se sobrepor o interesso coletivo ao individual, rompendo, destarte, com a codificação anterior. É o caso de uma das temáticas deste artigo: a Função Social do Contrato, que agora vem limitar a vontade dos contratantes, conforme preceitua o artigo 421 do Código Civil. [42]

Nos contratos de adesão [43] vislumbra-se, corriqueiramente, a imperiosa necessidade da atuação do princípio da função social do contrato para reequilibrar os pólos da avença.

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No Contrato de Adesão, segundo Orlando Gomes, [44]"uma das partes tem que aceitar, em bloco, as cláusulas estabelecidas pela outra, aderindo a uma situação contratual que encontra definida em todos os seus termos. O consentimento manifesta-se como simples adesão a conteúdo preestabelecido da relação jurídica". Logo, a imposição da vontade de uma das partes à outra é traço característico deste contrato, marcado pela mitigação da vontade da parte aderente.

A contratação de adesão (forma da contratação em massa) ganhou importância com o avanço da industrialização, com o crescimento dos centros urbanos, desenvolvimento do comércio, nos idos do século XVIII (Revolução Industrial). Desde então, com o contínuo avanço e modernização de setores que necessitaram contratar diariamente com um grande número de pessoas, sem desperdiçar tempo e dinheiro, passou-se a lançar mão de contratos "standard", que eram redigidos de maneira homogênea e uniforme a um público indistinto de pessoas. É o chamado fenômeno da contratação em massa, que tem no contrato de adesão, seu principal instrumento.

George Ripert explana: "Em alguns contratos a posição das partes é tal que um dos contratantes é obrigado a tratar nas condições que lhe são ao mesmo tempo oferecidas e impostas pela outra parte. Deu-se a estes contratos o nome de contratos de adesão" [45] Segundo informa Ripert, foi Saleilles o autor da expressão.

Ora, como asseverou Ripert, não se pode medir a força das vontades com um dinamômetro [46] , sendo certo que o consentimento, tradicionalmente manifestado, mediante prévia discussão, inexiste nessa modalidade contratual. Todavia, tal apanágio não lhe descaracteriza a natureza de contrato. Destarte, igualar a adesão ao consentimento manifestado após prévia discussão implicaria uma valoração extremada da manifestação da vontade do aderente.

Tal contratação, neste sentido, é apontada como fonte de desequilíbrio contratual, abuso de Direito e de Poder Econômico. A forma como esta contratação se dá, a priori, é uma verdadeira imposição de vontades, pois o aderente tem que se submeter à vontade do ofertante para não se ver privado, por vezes, de serviços essenciais à vida moderna. Em um segundo momento, valendo-se da superioridade contratual que o ofertante goza, este impõe prestações iníquas ao oblato, que as aceita, por não lhe restar outra alternativa. A este último fato soma-se a redação dos contratos, completamente obscuras, com termos que fogem à compreensão de uma pessoa leiga, até mesmo de pessoas com nível intelectual moderado, mas que não se volta à área contratual jurídica (v.g., um médico ou um engenheiro aderindo a um contrato de fundo de investimento).

Inicialmente, faz-se mister considerar que o Código de Defesa do Consumidor define Contrato de Adesão como "aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo". No mais, traz no seu artigo 51, um rol (numerus apertus) de cláusulas consideradas abusivas pelo legislador consumerista, que devem ser declaradas nulas de pleno direito pelo juiz. Ainda determina, em seu artigo 46, que os contratos de consumo não obrigam o consumidor se a ele não for oportunizado o conhecimento pleno do conteúdo contratual a que irá aderir.

Até a entrada em vigor do Código Civil atual, o Código de Defesa do Consumidor era, praticamente, a medida legislativa protetiva na contratação por intermédio da adesão. Com o advento do novo Código, a função social do contrato se apresenta como poderoso princípio a ser empregado no combate às iniquidades nestes contratos. [47]

A Função Social do Contrato, na verdade, remete à ideia de que o contrato visa a atingir objetivos que, além de individuais, são também sociais. O poder negocial é, destarte, funcionalizado, submetendo-se a interesses coletivos ou sociais. [48]

Como salienta Caio Mário da Silva Pereira, a Função Social do Contrato desafia a concepção clássica de que os contratantes tudo podem fazer, porque estão no exercício da autonomia da vontade. O reconhecimento da inserção do contrato no meio social e da sua função como instrumento de enorme influência na vida das pessoas, possibilita um maior controle na vida das partes. Invocando-se este princípio pode-se evitar a inserção de cláusulas que prejudiquem o interesse social em nome do individual, por exemplo. [49]

Com relação à atenuação do princípio da autonomia da vontade, a 1ª Jornada de Direito Civil promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal diz:

Art. 421: A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana.

Vê-se que a dignidade da pessoa humana e os interesses metaindividuais foram, acertadamente, colocados acima do interesse individual, valorizado, sobremaneira, na codificação anterior.

Orlando Gomes [50] entende que há três casos em que a violação da função social do contrato deve levar à ineficácia superveniente do contrato. São elas: lesão à dignidade da pessoa humana, impossibilidade de obtenção da finalidade última visada pelo contrato e ofensa a interesses coletivos.

Por fim, cumpre consignar que a concepção moderna de função social do contrato surge para agregar princípios clássicos do contrato, quais sejam, da autonomia da vontade, de sua força obrigatória, da intangibilidade do seu conteúdo e da relatividade de seus efeitos. Como princípio novo, não vem se justapor aos demais, mas sim desafiá-los e em certas situações impedir que prevaleçam, diante do interesse social que deve predominar. [51]

Outro princípio norteador do novo Código Civil é o da Operabilidade, verdadeiro elastério ao poder de interpretação do exegeta. Por este princípio, o direito deve ser visualizado no caso concreto, para que ganhe maior efetividade.

Surgem assim, as chamadas "cláusulas gerais", vale dizer, conceitos indeterminados inseridos na nova codificação que requerem uma valoração objetiva do julgador, tendo por base os valores vigentes na sociedade atual. [52]

Miguel Reale explica:

Não menos relevante é a resolução de lançar mão, sempre que necessário, de cláusulas gerais, como acontece nos casos em que se exige probidade, boa-fé ou correção (corretezza) por parte do titular do direito, ou quando é impossível determinar com precisão o alcance da regra jurídica. É o que se dá, por exemplo, na hipótese de fixação de aluguel manifestamente excessivo, arbitrado pelo locador e a ser pago pelo locatário que, findo o prazo de locação, deixar de restituir a coisa, podendo o juiz, a seu critério, reduzi-lo [...]. [53]

Logo, diante de conceitos juridicamente abertos, de conteúdo indeterminado, como os conceitos de boa-fé e bons costumes, pode o julgador analisar o caso concreto para relativizar a aplicação da norma, diante de contextos socioeconômicos e culturais distintos, em que há valores sociais e culturas diferenciados. Daí, se busca imprimir maior efetividade a justiça [54]

Quis o Código Civil de 2002, ao contrário da codificação anterior, adotar um sistema aberto (dinâmico), que lhe dê mobilidade, o que possibilita uma solução para conflitos de interesses, mesmo quando não haja uma solução específica. Destarte, evita-se a constante criação de leis em face das transformações sociais, econômicas e tecnológicas. As cláusulas gerais permitem ao julgador criar soluções, como se depreende dos artigos 421 (Função Social do Contrato) e 422 (Boa-fé objetiva), ambos do Código Civil. [55]

Ao lado das referidas cláusulas, encontram-se os conceitos indeterminados, que também integram os conceitos ditos de equidade. Diferentemente das cláusulas gerais, que instituem direitos e obrigações, nos conceitos indeterminados, o juiz aplica a norma, que é formada por expressão vaga. Veja-se, a título exemplificativo, a hipótese do artigo 188, II, do Código Civil, quando determina que não constituem atos ilícitos aqueles praticados no caso de deterioração ou destruição da coisa alheia ou lesão à pessoa, com finalidade de remover perigo iminente. O magistrado, em face desta situação, apenas preenche a determinação inserida na norma, isto é, constata a existência, no caso narrado, de perigo iminente, que deixa de caracterizar a ilicitude da destruição ou deterioração da coisa. [56]

Por último, tem-se o princípio da eticidade, estribado na compatibilização de valores técnicos alcançados com a codificação anterior, ao lado dos valores éticos implantados pela nova codificação. [57]

A eticidade, ou valorização da ética e da lealdade, impõe-se como princípio norteador do Código Civil e de toda dogmática jurídica. Como leciona José Augusto de Delgado, a ética trazida no novo Código Civil é aquela ética Kantiana:

Ética é o comportamento que confia no homem como um ser composto por valores que o elevam ao patamar de respeito pelo seu semelhante e de reflexo de um estado de confiança nas relações desenvolvidas, quer negociais, quer não negociais. É na expressão Kantiana, a certeza do dever cumprido, a tranqüilidade de boa consciência. [58]

No Direito Civil, há que se reconhecer à existência da boa-fé subjetiva e objetiva, como desdobramentos do princípio da boa-fé, corolário da eticidade prevista pelo legislador de 2.002.

A boa-fé objetiva, ou concepção ética da boa-fé, é a valorização da ética e dos seus atributos, da lealdade, da honestidade, da lisura. A Jornada n. 26 do Superior Tribunal de Justiça concebeu a boa-fé objetiva como a imposição da lealdade no cumprimento dos deveres contratuais.

Neste domínio, as investigações concentram-se apenas na exteriorização da conduta do sujeito, sem se considerar quaisquer aspectos de ordem psicológica ou a intenção da parte em um contrato, por exemplo. O que vale é a exteriorização do ato pelo sujeito. [59]

A boa-fé objetiva pode ser visualizada no artigo 422 do Código Civil, pelo qual "os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da lealdade e da boa-fé". A boa-fé objetiva atua com dúplice função, neste sentido: a de princípio geral do Direito e a de cláusula geral a ser preenchida pelo aplicador do Direito no caso concreto. [60]

Já se reconheceu que a boa-fé objetiva é um preceito de ordem pública [61], portanto inafastável pela vontade das partes contratantes e que deve estar presente em todas as fases contratuais. [62]

A boa-fé objetiva está aliada a deveres anexos, os quais estão implícitos em todos os negócios jurídicos, dispensando expressa previsão. Como deveres anexos, Flávio Tartuce, ao invocar as lições de Judith Martins-Costa e de Clóvis do Couto e Silva, elenca:

a)o dever de cuidado em relação à outra parte negocial;

b)o dever de respeito;

c)o dever de informar a outra parte quanto ao conteúdo do contrato;

d)o dever de agir conforme a confiança depositada;

e)o dever de lealdade e probidade;

f)o dever de colaboração ou cooperação

g)o dever de agir conforme a razoabilidade, a eqüidade e a boa razão. [63]

No tocante às funções da boa-fé objetiva, pode-se destacar: a função de interpretação, a função de controle e a função de integração.

Reza o artigo 113 do Código Civil que na interpretação dos negócios jurídicos, o exegeta deve levar em conta a boa-fé e os usos e costumes do lugar da interpretação. Depreende-se deste dispositivo que a boa-fé atua como meio auxiliar na própria interpretação contratual, ao lado dos usos e costumes.

A boa-fé, neste caso, deve ser analisada à luz do que preceitua, outrossim, o artigo 112 do Código Civil, segundo o qual nas "declarações de vontade se atenderá mais à intenção das partes do que ao sentido literal da linguagem". Este artigo revela a segunda concepção de boa-fé: a noção de boa-fé psicológica, baseada na intenção, designada boa-fé subjetiva.

A segunda função da boa-fé relaciona-se à função controle, estampada no artigo 187 do Código Civil, pelo qual quem contraria a boa-fé comete abuso de direito. A responsabilidade que decorre do Abuso de Direito, por seu turno, é objetiva, dispensando prova da culpa. [64] Destarte, a afronta à boa-fé conduz à responsabilidade objetiva. [65]

Fernando Augusto Cunha de Sá explicita, em obra muito profunda, a dificuldade de se conceituar abuso do direito. Afinal, se o direito subjetivo é manifestado por alguém que é seu titular, não caberia qualquer questionamento quanto à sua ação. A ilicitude somente poderia existir se o ato fosse um exercício não amparado pelo direito; desta maneira, exercer um direito não poderia conferir-lhe o caráter de abusividade [66].

O autor lusitano ainda procura distinguir o conceito de abuso de direito de figuras afins, como o desvio de poder, embora reconheça similitudes nessas duas figuras. Mas, no caso de desvio de poder, "estamos perante um acto que jurìdicamente deve qualificar-se como ilícito, já que disforme daquela precisa vinculação legal do órgão administrativo a usar para um certo e determinado fim" [67].

Todavia, poder-se-á incorrer em abuso do direito em determinadas situações, sobretudo quando se ultrapassar, de forma expressivamente manifesta, a finalidade social ou econômica do direito exercido [68].

A teoria do Abuso do Direito diz que o exercício de direito que excede seus limites, atingindo negativamente direito alheio, conduz à figura do exercício irregular do Direito, cerne do abuso. Logo, todo direito será exercido dentro da perspectiva da sua finalidade e função social. Maiores desvios com relação a estas finalidades, podem caracterizar o abuso de Direito.

Cristiano Chaves de Farias faz ligação entre a teoria do abuso de Direito e a boa-fé objetiva ao enunciar:

[...] não se pode deixar de reconhecer uma íntima ligação entre a teoria do abuso de direito e a boa-fé objetiva – princípio vetor dos negócios jurídicos no Brasil (arts. 113 e 421, CC) – porque uma das funções da boa-fé objetiva é, exatamente, limitar o exercício de direitos subjetivos (e de quaisquer manifestações jurídicas) contratualmente estabelecidos em favor das partes, obstando um desequilíbrio negocial". [69]

Nota-se, pelo entendimento do autor supracitado, que a ofensa aos postulados da boa-fé caracteriza o abuso de Direito, por ser exagero na manifestação dos direitos subjetivos, que traz consigo o desequilíbrio contratual.

A terceira função da boa-fé objetiva é a função de integração do contrato, voltado à aplicação desse princípio em todas as fases contratuais (artigo 422 do Código Civil). Este artigo não incluiu em sua redação as fases pré e pós-contratual, limitando a rezar que a boa-fé se aplica à execução e conclusão contratual. Pacífico, entretanto, o entendimento que a boa-fé deve estar presente em todas as fases de vida de um contrato. [70]

A boa-fé objetiva, em suma, como expressão da eticidade, atua como princípio informador das relações privadas e de toda a dogmática jurídica, devendo ser zelada pelas partes contratantes sob pena de se impor, a estas, a relativização da vontade criadora do negócio jurídico, cedendo espaço para que prime a vontade Estatal sobre a vontade das partes, com a consequente reforma do conteúdo da avença.

O segundo desdobramento da boa-fé, a chamada boa-fé subjetiva ou concepção psicológica, repousa num entendimento errôneo, falsa crença, ignorância escusável ou de estado de consciência caracterizado pela ignorância de se estar prejudicando direito alheio. [71] É nitidamente visualizado no artigo 1.201 do Código Civil, que ao dispor que é de boa-fé a posse, se o possuidor ignorar o vício ou obstáculo que impede a sua aquisição. Neste caso, percebe-se que o possuidor não age com a intenção de prejudicar outrem, pois ignora o vício ou obstáculos, mas sua falsa crença leva ao prejuízo alheio. Este é o comportamento tipificado pela boa-fé subjetiva, situada no plano da intenção, e revelador de um estado de consciência em que se ignoravam os riscos alheios.

No campo contratual, dispõe o Código Civil, no seu artigo 112, já invocado, que na interpretação negocial, o exegeta deve se ater mais à vontade das partes que ao sentido literal do instrumento. Logo, a real intenção das partes é valorizada em detrimento do sentido lingüístico contratual, o que revela a necessidade de estar presente a boa-fé subjetiva.

A boa-fé subjetiva diferencia-se nitidamente da objetiva, pois aquela é "formada pelos elementos componentes da manifestação de vontade do agente que expressam consciência de não prejudicar ninguém, isto é, atuação, no mundo exterior, reveladora de ausência de dolo". [72]Esta, por seu turno, relaciona-se à exteriorização da conduta do sujeito, sem considerar as inferências de natureza psicológica ou até mesmo a sua opinião. [73]

Sobre o autor
Rodrigo Alves da Silva

mestre e doutor em Direito. É pesquisador e parecerista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Advogado,regularmente inscrito na OAB/SP (204.358), docente da Escola Superior de Advocacia (ESA) e Professor Universitário.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Rodrigo Alves. Diretrizes e bases principiológicas do Código Civil de 2002.: Análise histórico-comparativa ao Código Civil de 1916. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2145, 16 mai. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12712. Acesso em: 22 dez. 2024.

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