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Direito. Estado. Lei orçamentária

Agenda 01/05/2000 às 00:00

Há uma ligação muito forte entre o Direito e o Estado, até mesmo, e principalmente, no tocante à própria natureza destes. Uma compreensão do fenômeno jurídico que não leve em consideração a figura do Estado é, sem sombra de dúvidas, uma visão incompleta. O inverso também é verdadeiro.

Segundo o Professor Paulo Nader(1), existem pelo menos três concepções básicas pertinentes ao nível de relacionamento entre o Direito e o Estado, são elas: a dualística, a monística e a do paralelismo. A dualística, como o próprio nome dá a entender, parte do pressuposto de que o Direito e o Estado seriam duas coisas distintas, bem distintas, diga-se de passagem. Para a concepção monística, cujo exponencial encontra-se na pessoa de Hans Kelsen, Direito e Estado são exatamente a mesma coisa. E, por fim, para a concepção do paralelismo, Direito e Estado são entidades distintas que, não obstante, mantém uma relação de interdependência.

Faz-se necessário escolhermos uma das três concepções (dualística, monística e a do paralelismo) para, então, desenvolvermos todo o restante do nosso trabalho que é o de relacionar Direito, Estado e Lei orçamentária.

Escolhi desenvolver esta dissertação segundo a concepção monística, por entender ser ela, das três, a mais coerente e a mais próxima da realidade. Veja bem, a doutrina tradicional tem afirmado que são elementos constitutivos do Estado: o território, o povo (população) e o Poder Soberano; no entanto, todos esses conceitos são conceitos jurídicos. Por exemplo, o conceito de território nada mais é senão o âmbito de validade espacial das normas jurídicas, e o de povo, o âmbito pessoal de validade das normas jurídicas(2).

O Estado é, como entidade, uma ficção jurídica, e aceitar esta perspectiva de visualização do fenômeno não implica, necessariamente, em desconsiderar os outros aspectos do Estado, tais como o aspecto sociológico, o econômico, o político etc.

Passo, agora, a expor em linhas gerais os principais aspectos da concepção de Hans Kelsen com relação ao Estado e ao Direito, já que ele, como afirmei anteriormente, é o ilustre representante da concepção monística.

No seu Teoria Geral do Direito e do Estado, Kelsen afirmou ser o Estado, a personificação do Ordenamento Jurídico de determinada comunidade(3). No entanto, para que um Ordenamento Jurídico seja considerado um Estado, é preciso que tenha um caráter de uma organização centralizada, onde existam órgãos funcionando segundo o princípio da divisão do trabalho(4).

Mas o que seria, então, um Ordenamento Jurídico?

De acordo com Norberto Bobbio, Ordenamento Jurídico é uma organização complexa, a partir da qual uma determinada norma se torna eficaz, que determina a natureza e a entidade das sanções, as pessoas que devam exercê-las e a sua execução(5); onde, além daquelas normas que regulam as condutas das pessoas, existem outras normas denominadas normas de estrutura ou normas de competência, que regulam o processo de criação de novas normas(6).

O signo lingüístico "direito", para Bobbio, é designativo de um tipo de sistema normativo, e não de um tipo de norma. Segundo ele, "... só se pode falar de Direito onde haja um complexo de normas formando um ordenamento, e que, portanto, o Direito não é norma, mas um conjunto coordenado de normas, sendo evidente que uma norma jurídica não se encontra jamais só, mas está ligada a outras normas com as quais forma um sistema normativo." (7)

Decorre dessa identificação, que o Estado não subjaz ao Direito (como quer o pensamento tradicional), que a idéia de um Estado que prescinde do Direito é impensável(8), e que todo Estado é um Estado de Direito(9).

Por isso, diz-se que a cada nova Constituição um novo Estado, ou seja, a cada mudança ou alteração no Ordenamento Jurídico surge um novo Estado. Não é mais o mesmo Estado.

O Estado tem como finalidade precípua promover o bem-estar social dos seus cidadãos(10). Para a consecução de seu objetivo, atua através de seus órgãos, cada um com sua função específica, utilizando-se de pessoas, que a título de emprego, dele recebem uma contraprestação pelos serviços prestados(11). Para que possa manter os seus órgãos, e assim continuar desenvolvendo sua finalidade, o Estado lança mão do seu próprio patrimônio, ou seja, do Fisco, que é formado principalmente pela arrecadação de tributos instituídos sobre o patrimônio de todos os seus cidadãos. Este é o mecanismo de funcionamento do Estado, é assim que ele sobrevive.

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Segundo a concepção aqui seguida, onde o Estado figura como a personificação do Ordenamento Jurídico, toda atividade estatal está regulada pelo Direito(12) e não há como ser diferente. Consequentemente, todo funcionamento da máquina estatal é regido por meio de normas jurídicas, que segundo seu caráter abstrato e genérico, garantem segurança aos administrados.

Pois bem, a lei que cuida do Orçamento Público, ou seja, que regula a arrecadação de receitas e a sua aplicação, é o produto legislativo mais importante para a sobrevivência do Estado(13), pois, como vimos, todo o seu mecanismo de funcionamento depende de recursos. Becker chega a afirmar que cada nova lei orçamentária é como um novo fôlego de vida que o Estado recebe(14). Para ele, o Estado "...existe no dinamismo da Receita conjugado com o dinamismo da Despesa..." (15)

Como toda norma jurídica a lei orçamentária também incide em um fato real e o juridiciza. Portanto, adverte Alfredo Augusto Becker que existem dois momentos a serem considerados com relação ao Orçamento Público. Esses dois momentos seriam exatamente o momento pré-jurídico, que antecede a juridicização do fato, e o momento jurídico, já depois da incidência da lei. No primeiro momento o orçamento público é um fato puramente econômico ou financeiro, ao contrário do segundo momento (após a criação e a incidência da Lei Orçamentária) quando torna-se um fato jurídico. O que era apenas econômico, passa a ser também jurídico(16).

Sob seu aspecto político o Orçamento demonstra como serão destinadas as verbas e quais os objetivos sociais a serem alcançados com essa distribuição(17).

Vamos nos deter apenas ao que nos interessa, ou seja, vamos concentrar nosso foco de atenção sobre o aspecto jurídico do Orçamento Público, observar como a matéria está disposta no texto constitucional e conhecer alguns dos principais princípios jurídicos que regem o Orçamento.

O aspecto jurídico do Orçamento caracteriza-se pelo fato de observar os preceitos constitucionais e legais(18). A nossa atual Constituição, destina um título (Título VI) específico para a Tributação e o Orçamento. No Capítulo II, Seção II, do referido título, encontramos os artigos que tratam dos orçamentos. É nos artigos 165 a 169, onde estão prescritas as regras que regulamentam os orçamentos.

O artigo 165, enumera três leis, todas de iniciativa do Poder Executivo: I- o plano plurianual; II- as diretrizes orçamentárias; e III- os orçamentos anuais.

Ainda de acordo com este mesmo artigo, a lei que instituir o plano plurianual deverá estabelecer, de forma regionalizada, as diretrizes, os objetivos e as metas da administração para as despesas de capital e outras delas decorrentes e para as relativas aos programas de duração continuada(19).

Cabe à lei de diretrizes orçamentárias: a)estabelecer as metas e as prioridades da administração pública, incluindo as despesas de capital para o exercício financeiro subseqüente; b) orientar a elaboração da lei orçamentária anual; c) dispor sobre as alterações na legislação tributária; e d) estabelecer a política de aplicação das agências financeiras oficiais de fomento(20).

A lei orçamentária é, na verdade, o conjunto de três categorias de orçamentos. Compreende, na primeira categoria, o orçamento fiscal dos Poderes da União, dos seus fundos, dos órgãos e entidades da administração direta e indireta, incluindo o orçamento das fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público. Na segunda categoria, estão os orçamentos de investimentos das empresas em que a União, direta ou indiretamente, detenha a maioria do capital social com direito a voto. Por último, dentro da terceira categoria, está o orçamento da seguridade social, abrangendo todas a entidades e órgãos vinculados à União, quer sejam da administração direta ou indireta; bem como o dos seus respectivos fundos e fundações(21).

Entretanto, para viabilizar a produção dos efeitos dos dispositivos orçamentários, a constituição prevê a criação de uma lei complementar. Cabendo à essa lei complementar dispor sobre o exercício financeiro, a vigência, os prazos, a elaboração e a organização do plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e da lei orçamentária anual; bem como, estabelecer normas de gestão financeira e patrimonial da administração direita e indireta, e estabelecer, também, as condições para a instituição e o funcionamento de fundos(22).

Convém observar que, como o Brasil é uma República Federativa, onde existem normas válidas para todo o território nacional e normas válidas somente para determinadas partes do território nacional(23), as regras impostas, pela Constituição Federal, aos planos orçamentários, servem como normas gerais para todos os entes da federação. O artigo 24 da Carta Magna, no seu inciso primeiro, estabelece que compete concorrentemente à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar sobre matéria de direito financeiro. Devem, portanto, todos os demais entes da federação (Estados, Distrito Federal e Municípios) elaborarem respectivamente o seu plano plurianual, a sua lei de diretrizes orçamentárias e a sua lei orçamentária anual, para que possam continuar sobrevivendo. Já que a lei orçamentária é de fundamental importância para a vida do Estado, pois sem ela o Estado não pode dar seqüência à consecução de suas finalidades e atribuições.

Atualmente, fala-se muito na necessidade de uma reformulação na estrutura jurídica do orçamento público, na construção de um novo instrumental jurídico a serviço do Estado(24). A antiga preocupação apenas com o equilíbrio entre as receitas e as despesas, que tratava o Orçamento como um fim em si mesmo(25), tem dado lugar a uma preocupação mais, podemos dizer, social ou humanista. O Orçamento deixa de ser um mero instrumento de controle de contas e passa a ser um importante instrumento de atuação do Estado na economia(26), por meio do qual passa a procurar promover um equilíbrio, dessa vez, sócio-econômico(27).

Também é ponto pacífico entre os doutrinadores que a lei orçamentária é lei somente no aspecto formal, por lhe faltar juridicidade, e consequentemente pelo fato de não produzir efeitos jurídicos(28). Por exemplo, se a arrecadação de receitas ou o montante das despesas não corresponder ao que estava previsto na Lei Orçamentária não há que se falar em violação de norma, nem em ato ilícito (contrário a direito). Segundo Becker, o que aconteceu foi que apenas "...o Estado não viveu no ritmo vital que antevira e desenhara..." (29). Outro fator importante que reforça esse caráter apenas formal da lei orçamentária é o fato de que a previsão de uma despesa não gera direito exigível judicialmente(30). Pontes de Miranda denomina a lei orçamentária de plano de gestão, formalmente legal. (31)

Existem alguns princípios que norteiam a elaboração do orçamento público. A seguir segue uma breve exposição desses princípios.

O princípio do equilíbrio(32), consiste no equilíbrio entre as receitas e as despesas. O princípio da universalidade(33), segundo o qual todas as receitas e despesas devem estar previstas na lei orçamentária. O princípio da anualidade(34) significa que para cada ano haja um orçamento(35). O princípio da exclusividade(36) pelo qual o texto da lei orçamentária não pode conter outra determinação que não especificamente a previsão da receita e a fixação das despesas. O princípio da unidade(37), onde todos os gastos e receitas devem ser apresentados em um único documento. O da não afetação(38) proíbe a vinculação direta das verbas públicas. E por último o princípio da programação(39), ou seja, o orçamento tem que ter conteúdo e forma de programação.

É importante, para finalizar, ressaltar o caráter de essencialidade da lei orçamentária para que o Estado possa continuar perseguindo as suas finalidades. O Estado, pois, como personificação da ordem jurídica, tem toda sua existência regulada pelo Direito, e, como não podia deixar de ser, toda sua atividade financeira, e aqui se inclui a elaboração da lei orçamentária, como vimos nestas breves linhas, também se encontra regulada por normas jurídicas.


NOTAS

  1. Cf. Paulo Nader, in Introdução ao Estudo do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 161.
  2. Cf. Gabriel Ivo, in Constituição Estadual: competência para elaboração da Constituição do Estado-membro. São Paulo: Editora Max Limonad, 1997. p. 75.
  3. Cf. Hans Kelsen, in Teoria Geral do Direito e do Estado. Brasília/São Paulo: Editora Martins Fontes, 1990. p. 262.
  4. Cf. Hans Kelsen, in Teoria Pura do Direito. 6.ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 317.
  5. Cf. Norberto Bobbio, in Teoria do Ordenamento Jurídico. 6.ª ed. Brasília: Editora UnB, 1995. p. 22.
  6. Idem, ibidem, p. 33.
  7. Idem, ibidem, p. 21.
  8. Cf. Hans Kelsen, in Teoria Pura do Direito. 6.ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 346.
  9. Idem, ibidem. Não confundir com a consagrada expressão "Estado de Direito" utilizada para designar um tipo especial de Estado, i. g., aquele que satisfaz aos requisitos da democracia e da segurança jurídica.
  10. Paulo Nader. Op. cit. p. 151.
  11. Hans Kelsen, in Teoria Pura do Direito. 6.ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 328.
  12. Cf. Geraldo Ataliba, in Apontamentos de Ciência das Finanças, Direito Financeiro e Tributário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1969. p. 33.
  13. Cf. Alfredo Augusto Becker, in Teoria Geral do Direito Tributário. 3.ª ed. São Paulo: Lejus, 1998. p. 231.
  14. Idem, ibidem, p. 232.
  15. Idem, p. 246.
  16. Idem, p. 229.
  17. Cf. Regis Fernandes de Oliveira e Estevão Horvath, in Manual de Direito Financeiro. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 70.
  18. Idem, ibidem.
  19. Cf. § 1.º do Artigo 165 da Constituição da República Federativa do Brasil.
  20. Cf. § 2.º do Artigo 165 da Constituição da República Federativa do Brasil.
  21. Cf. § 5.º, incisos I, II e III do Artigo 165 da Constituição da República Federativa do Brasil.
  22. Cf. § 9.º, incisos I e II do Artigo 165 da Constituição da República Federativa do Brasil.
  23. Cf. Gabriel Ivo. Op. cit. p. 81.
  24. Cf. Alfredo Augusto Becker. Op. cit. p. 215.
  25. Idem, ibidem, p. 218.
  26. Regis Fernandes de Oliveira e Estevão Horvath. Op. cit. p. 70.
  27. Cf. Alfredo Augusto Becker. Op. cit. p. 216.
  28. Idem, ibidem, p. 223.
  29. Idem. p. 234.
  30. Regis Fernandes de Oliveira e Estevão Horvath. Op. cit. p. 89.
  31. Cf. Comentários à Constituição de 1967, com a Emenda n.º 1 de 1969. Tomo III. Rio de Janeiro: Forense, 1987. p. 191.
  32. Regis Fernandes de Oliveira e Estevão Horvath. Op. cit., p. 72.
  33. Idem, ibidem.
  34. Idem. p. 73.
  35. Com relação a este princípio, de que para cada ano haja obrigatoriamente uma lei orçamentária específica, e pelo caráter essencial desta lei, alguns doutrinadores têm entendido que, (caso o ente da federação não consiga, dentro do prazo estabelecido, elaborar sua lei orçamentária anual), deverá a lei anterior ter sua eficácia prorrogada, com algumas pequenas modificações.
  36. Regis Fernandes de Oliveira e Estevão Horvath. Op. cit. p. 73.
  37. Idem. p. 74.
  38. Idem.
  39. Cf. José Afonso da Silva, in Curso de Direito Constitucional Positivo.16.ª ed. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 714.

BIBLIOGRAFIA

ATALIBA, Geraldo. Apontamentos de Ciência das Finanças, Direito Financeiro e Tributário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1969.

BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 3.ª ed. São Paulo: Lejus, 1998.

BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 6.ª ed. Brasília: Editora UnB, 1995.

IVO, Gabriel. Constituição Estadual: competência para elaboração da Constituição do Estado-membro. São Paulo: Editora Max Limonad, 1997.

KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Brasília/São Paulo: Martins Fontes, 1990.

_____________ Teoria Pura do Direito. 6.ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967, com a Emenda n.º 1 de 1969. Tomo III. Rio de Janeiro: Forense, 1987.

NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1999.

OLIVEIRA, Regis Fernandes de. HORVATH, Estevão. Manual de Direito Financeiro. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 16.ª ed. São Paulo: Malheiros, 1999.

Sobre a autora
Emanuel Acioli Almeida

acadêmico de Direito na Universidade Federal de Alagoas

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Emanuel Acioli. Direito. Estado. Lei orçamentária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 41, 1 mai. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1276. Acesso em: 29 set. 2024.

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