Há uma ligação muito forte entre o Direito e o Estado, até mesmo, e principalmente, no tocante à própria natureza destes. Uma compreensão do fenômeno jurídico que não leve em consideração a figura do Estado é, sem sombra de dúvidas, uma visão incompleta. O inverso também é verdadeiro.
Segundo o Professor Paulo Nader(1), existem pelo menos três concepções básicas pertinentes ao nível de relacionamento entre o Direito e o Estado, são elas: a dualística, a monística e a do paralelismo. A dualística, como o próprio nome dá a entender, parte do pressuposto de que o Direito e o Estado seriam duas coisas distintas, bem distintas, diga-se de passagem. Para a concepção monística, cujo exponencial encontra-se na pessoa de Hans Kelsen, Direito e Estado são exatamente a mesma coisa. E, por fim, para a concepção do paralelismo, Direito e Estado são entidades distintas que, não obstante, mantém uma relação de interdependência.
Faz-se necessário escolhermos uma das três concepções (dualística, monística e a do paralelismo) para, então, desenvolvermos todo o restante do nosso trabalho que é o de relacionar Direito, Estado e Lei orçamentária.
Escolhi desenvolver esta dissertação segundo a concepção monística, por entender ser ela, das três, a mais coerente e a mais próxima da realidade. Veja bem, a doutrina tradicional tem afirmado que são elementos constitutivos do Estado: o território, o povo (população) e o Poder Soberano; no entanto, todos esses conceitos são conceitos jurídicos. Por exemplo, o conceito de território nada mais é senão o âmbito de validade espacial das normas jurídicas, e o de povo, o âmbito pessoal de validade das normas jurídicas(2).
O Estado é, como entidade, uma ficção jurídica, e aceitar esta perspectiva de visualização do fenômeno não implica, necessariamente, em desconsiderar os outros aspectos do Estado, tais como o aspecto sociológico, o econômico, o político etc.
Passo, agora, a expor em linhas gerais os principais aspectos da concepção de Hans Kelsen com relação ao Estado e ao Direito, já que ele, como afirmei anteriormente, é o ilustre representante da concepção monística.
No seu Teoria Geral do Direito e do Estado, Kelsen afirmou ser o Estado, a personificação do Ordenamento Jurídico de determinada comunidade(3). No entanto, para que um Ordenamento Jurídico seja considerado um Estado, é preciso que tenha um caráter de uma organização centralizada, onde existam órgãos funcionando segundo o princípio da divisão do trabalho(4).
Mas o que seria, então, um Ordenamento Jurídico?
De acordo com Norberto Bobbio, Ordenamento Jurídico é uma organização complexa, a partir da qual uma determinada norma se torna eficaz, que determina a natureza e a entidade das sanções, as pessoas que devam exercê-las e a sua execução(5); onde, além daquelas normas que regulam as condutas das pessoas, existem outras normas denominadas normas de estrutura ou normas de competência, que regulam o processo de criação de novas normas(6).
O signo lingüístico "direito", para Bobbio, é designativo de um tipo de sistema normativo, e não de um tipo de norma. Segundo ele, "... só se pode falar de Direito onde haja um complexo de normas formando um ordenamento, e que, portanto, o Direito não é norma, mas um conjunto coordenado de normas, sendo evidente que uma norma jurídica não se encontra jamais só, mas está ligada a outras normas com as quais forma um sistema normativo." (7)
Decorre dessa identificação, que o Estado não subjaz ao Direito (como quer o pensamento tradicional), que a idéia de um Estado que prescinde do Direito é impensável(8), e que todo Estado é um Estado de Direito(9).
Por isso, diz-se que a cada nova Constituição um novo Estado, ou seja, a cada mudança ou alteração no Ordenamento Jurídico surge um novo Estado. Não é mais o mesmo Estado.
O Estado tem como finalidade precípua promover o bem-estar social dos seus cidadãos(10). Para a consecução de seu objetivo, atua através de seus órgãos, cada um com sua função específica, utilizando-se de pessoas, que a título de emprego, dele recebem uma contraprestação pelos serviços prestados(11). Para que possa manter os seus órgãos, e assim continuar desenvolvendo sua finalidade, o Estado lança mão do seu próprio patrimônio, ou seja, do Fisco, que é formado principalmente pela arrecadação de tributos instituídos sobre o patrimônio de todos os seus cidadãos. Este é o mecanismo de funcionamento do Estado, é assim que ele sobrevive.
Segundo a concepção aqui seguida, onde o Estado figura como a personificação do Ordenamento Jurídico, toda atividade estatal está regulada pelo Direito(12) e não há como ser diferente. Consequentemente, todo funcionamento da máquina estatal é regido por meio de normas jurídicas, que segundo seu caráter abstrato e genérico, garantem segurança aos administrados.
Pois bem, a lei que cuida do Orçamento Público, ou seja, que regula a arrecadação de receitas e a sua aplicação, é o produto legislativo mais importante para a sobrevivência do Estado(13), pois, como vimos, todo o seu mecanismo de funcionamento depende de recursos. Becker chega a afirmar que cada nova lei orçamentária é como um novo fôlego de vida que o Estado recebe(14). Para ele, o Estado "...existe no dinamismo da Receita conjugado com o dinamismo da Despesa..." (15)
Como toda norma jurídica a lei orçamentária também incide em um fato real e o juridiciza. Portanto, adverte Alfredo Augusto Becker que existem dois momentos a serem considerados com relação ao Orçamento Público. Esses dois momentos seriam exatamente o momento pré-jurídico, que antecede a juridicização do fato, e o momento jurídico, já depois da incidência da lei. No primeiro momento o orçamento público é um fato puramente econômico ou financeiro, ao contrário do segundo momento (após a criação e a incidência da Lei Orçamentária) quando torna-se um fato jurídico. O que era apenas econômico, passa a ser também jurídico(16).
Sob seu aspecto político o Orçamento demonstra como serão destinadas as verbas e quais os objetivos sociais a serem alcançados com essa distribuição(17).
Vamos nos deter apenas ao que nos interessa, ou seja, vamos concentrar nosso foco de atenção sobre o aspecto jurídico do Orçamento Público, observar como a matéria está disposta no texto constitucional e conhecer alguns dos principais princípios jurídicos que regem o Orçamento.
O aspecto jurídico do Orçamento caracteriza-se pelo fato de observar os preceitos constitucionais e legais(18). A nossa atual Constituição, destina um título (Título VI) específico para a Tributação e o Orçamento. No Capítulo II, Seção II, do referido título, encontramos os artigos que tratam dos orçamentos. É nos artigos 165 a 169, onde estão prescritas as regras que regulamentam os orçamentos.
O artigo 165, enumera três leis, todas de iniciativa do Poder Executivo: I- o plano plurianual; II- as diretrizes orçamentárias; e III- os orçamentos anuais.
Ainda de acordo com este mesmo artigo, a lei que instituir o plano plurianual deverá estabelecer, de forma regionalizada, as diretrizes, os objetivos e as metas da administração para as despesas de capital e outras delas decorrentes e para as relativas aos programas de duração continuada(19).
Cabe à lei de diretrizes orçamentárias: a)estabelecer as metas e as prioridades da administração pública, incluindo as despesas de capital para o exercício financeiro subseqüente; b) orientar a elaboração da lei orçamentária anual; c) dispor sobre as alterações na legislação tributária; e d) estabelecer a política de aplicação das agências financeiras oficiais de fomento(20).
A lei orçamentária é, na verdade, o conjunto de três categorias de orçamentos. Compreende, na primeira categoria, o orçamento fiscal dos Poderes da União, dos seus fundos, dos órgãos e entidades da administração direta e indireta, incluindo o orçamento das fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público. Na segunda categoria, estão os orçamentos de investimentos das empresas em que a União, direta ou indiretamente, detenha a maioria do capital social com direito a voto. Por último, dentro da terceira categoria, está o orçamento da seguridade social, abrangendo todas a entidades e órgãos vinculados à União, quer sejam da administração direta ou indireta; bem como o dos seus respectivos fundos e fundações(21).
Entretanto, para viabilizar a produção dos efeitos dos dispositivos orçamentários, a constituição prevê a criação de uma lei complementar. Cabendo à essa lei complementar dispor sobre o exercício financeiro, a vigência, os prazos, a elaboração e a organização do plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e da lei orçamentária anual; bem como, estabelecer normas de gestão financeira e patrimonial da administração direita e indireta, e estabelecer, também, as condições para a instituição e o funcionamento de fundos(22).
Convém observar que, como o Brasil é uma República Federativa, onde existem normas válidas para todo o território nacional e normas válidas somente para determinadas partes do território nacional(23), as regras impostas, pela Constituição Federal, aos planos orçamentários, servem como normas gerais para todos os entes da federação. O artigo 24 da Carta Magna, no seu inciso primeiro, estabelece que compete concorrentemente à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar sobre matéria de direito financeiro. Devem, portanto, todos os demais entes da federação (Estados, Distrito Federal e Municípios) elaborarem respectivamente o seu plano plurianual, a sua lei de diretrizes orçamentárias e a sua lei orçamentária anual, para que possam continuar sobrevivendo. Já que a lei orçamentária é de fundamental importância para a vida do Estado, pois sem ela o Estado não pode dar seqüência à consecução de suas finalidades e atribuições.
Atualmente, fala-se muito na necessidade de uma reformulação na estrutura jurídica do orçamento público, na construção de um novo instrumental jurídico a serviço do Estado(24). A antiga preocupação apenas com o equilíbrio entre as receitas e as despesas, que tratava o Orçamento como um fim em si mesmo(25), tem dado lugar a uma preocupação mais, podemos dizer, social ou humanista. O Orçamento deixa de ser um mero instrumento de controle de contas e passa a ser um importante instrumento de atuação do Estado na economia(26), por meio do qual passa a procurar promover um equilíbrio, dessa vez, sócio-econômico(27).
Também é ponto pacífico entre os doutrinadores que a lei orçamentária é lei somente no aspecto formal, por lhe faltar juridicidade, e consequentemente pelo fato de não produzir efeitos jurídicos(28). Por exemplo, se a arrecadação de receitas ou o montante das despesas não corresponder ao que estava previsto na Lei Orçamentária não há que se falar em violação de norma, nem em ato ilícito (contrário a direito). Segundo Becker, o que aconteceu foi que apenas "...o Estado não viveu no ritmo vital que antevira e desenhara..." (29). Outro fator importante que reforça esse caráter apenas formal da lei orçamentária é o fato de que a previsão de uma despesa não gera direito exigível judicialmente(30). Pontes de Miranda denomina a lei orçamentária de plano de gestão, formalmente legal. (31)
Existem alguns princípios que norteiam a elaboração do orçamento público. A seguir segue uma breve exposição desses princípios.
O princípio do equilíbrio(32), consiste no equilíbrio entre as receitas e as despesas. O princípio da universalidade(33), segundo o qual todas as receitas e despesas devem estar previstas na lei orçamentária. O princípio da anualidade(34) significa que para cada ano haja um orçamento(35). O princípio da exclusividade(36) pelo qual o texto da lei orçamentária não pode conter outra determinação que não especificamente a previsão da receita e a fixação das despesas. O princípio da unidade(37), onde todos os gastos e receitas devem ser apresentados em um único documento. O da não afetação(38) proíbe a vinculação direta das verbas públicas. E por último o princípio da programação(39), ou seja, o orçamento tem que ter conteúdo e forma de programação.
É importante, para finalizar, ressaltar o caráter de essencialidade da lei orçamentária para que o Estado possa continuar perseguindo as suas finalidades. O Estado, pois, como personificação da ordem jurídica, tem toda sua existência regulada pelo Direito, e, como não podia deixar de ser, toda sua atividade financeira, e aqui se inclui a elaboração da lei orçamentária, como vimos nestas breves linhas, também se encontra regulada por normas jurídicas.
NOTAS
- Cf. Paulo Nader, in Introdução ao Estudo do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 161.
- Cf. Gabriel Ivo, in Constituição Estadual: competência para elaboração da Constituição do Estado-membro. São Paulo: Editora Max Limonad, 1997. p. 75.
- Cf. Hans Kelsen, in Teoria Geral do Direito e do Estado. Brasília/São Paulo: Editora Martins Fontes, 1990. p. 262.
- Cf. Hans Kelsen, in Teoria Pura do Direito. 6.ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 317.
- Cf. Norberto Bobbio, in Teoria do Ordenamento Jurídico. 6.ª ed. Brasília: Editora UnB, 1995. p. 22.
- Idem, ibidem, p. 33.
- Idem, ibidem, p. 21.
- Cf. Hans Kelsen, in Teoria Pura do Direito. 6.ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 346.
- Idem, ibidem. Não confundir com a consagrada expressão "Estado de Direito" utilizada para designar um tipo especial de Estado, i. g., aquele que satisfaz aos requisitos da democracia e da segurança jurídica.
- Paulo Nader. Op. cit. p. 151.
- Hans Kelsen, in Teoria Pura do Direito. 6.ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 328.
- Cf. Geraldo Ataliba, in Apontamentos de Ciência das Finanças, Direito Financeiro e Tributário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1969. p. 33.
- Cf. Alfredo Augusto Becker, in Teoria Geral do Direito Tributário. 3.ª ed. São Paulo: Lejus, 1998. p. 231.
- Idem, ibidem, p. 232.
- Idem, p. 246.
- Idem, p. 229.
- Cf. Regis Fernandes de Oliveira e Estevão Horvath, in Manual de Direito Financeiro. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 70.
- Idem, ibidem.
- Cf. § 1.º do Artigo 165 da Constituição da República Federativa do Brasil.
- Cf. § 2.º do Artigo 165 da Constituição da República Federativa do Brasil.
- Cf. § 5.º, incisos I, II e III do Artigo 165 da Constituição da República Federativa do Brasil.
- Cf. § 9.º, incisos I e II do Artigo 165 da Constituição da República Federativa do Brasil.
- Cf. Gabriel Ivo. Op. cit. p. 81.
- Cf. Alfredo Augusto Becker. Op. cit. p. 215.
- Idem, ibidem, p. 218.
- Regis Fernandes de Oliveira e Estevão Horvath. Op. cit. p. 70.
- Cf. Alfredo Augusto Becker. Op. cit. p. 216.
- Idem, ibidem, p. 223.
- Idem. p. 234.
- Regis Fernandes de Oliveira e Estevão Horvath. Op. cit. p. 89.
- Cf. Comentários à Constituição de 1967, com a Emenda n.º 1 de 1969. Tomo III. Rio de Janeiro: Forense, 1987. p. 191.
- Regis Fernandes de Oliveira e Estevão Horvath. Op. cit., p. 72.
- Idem, ibidem.
- Idem. p. 73.
- Com relação a este princípio, de que para cada ano haja obrigatoriamente uma lei orçamentária específica, e pelo caráter essencial desta lei, alguns doutrinadores têm entendido que, (caso o ente da federação não consiga, dentro do prazo estabelecido, elaborar sua lei orçamentária anual), deverá a lei anterior ter sua eficácia prorrogada, com algumas pequenas modificações.
- Regis Fernandes de Oliveira e Estevão Horvath. Op. cit. p. 73.
- Idem. p. 74.
- Idem.
- Cf. José Afonso da Silva, in Curso de Direito Constitucional Positivo.16.ª ed. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 714.
BIBLIOGRAFIA
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BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 3.ª ed. São Paulo: Lejus, 1998.
BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 6.ª ed. Brasília: Editora UnB, 1995.
IVO, Gabriel. Constituição Estadual: competência para elaboração da Constituição do Estado-membro. São Paulo: Editora Max Limonad, 1997.
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Brasília/São Paulo: Martins Fontes, 1990.
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