Sumário: 1. Introdução; 2. Supranacionalidade: Soberania Compartilhada; 3. Efeito direto das normas comunitárias; 3.1.Recepção do direito internacional na ordem interna x aplicabilidade direta das normas comunitárias x aplicabilidade imediata; 3.2. Aplicabilidade direta x Efeito direto; 3.3. Efeito direto dos Tratados Constitutivos; 3.4. Efeito direto das diretivas; 3.5. Efeito direto horizontal; 3.6. A possibilidade de efeito direto no MERCOSUL; 4. Conclusões; Referências.
1.INTRODUÇÃO
O desenvolvimento do projeto de integração regional implementado na Europa reflete intensamente em inúmeros aspectos do conhecimento e estudo humano, seja no âmbito econômico, político, bem como na seara jurídica.
Deve-se ressaltar, contudo, que o processo de formação da União Europeia não é assim tão recente, mas remonta a meados do século XX, quando propriamente se inicia a integração europeia com a assinatura, em 18 de abril de 1951, do Tratado de constituição da Comunidade Europeia do Carvão e Aço (CECA) por Itália, Alemanha, França, Bélgica, Holanda e Luxemburgo, com o fito de colocar sob uma autoridade comum a produção franco-alemã de carvão e aço.
A partir de então, o que no início se demonstrava ser apenas uma conjugação de esforços de interesses puramente econômicos, passou a agregar novos conceitos e implicações até constituir a ideia hoje existente de Comunidade, cujo aspecto econômico é apenas uma parte, ainda que muito importante, do contexto em que se encaixa a União Europeia.
Todavia, é cediço que essa evolução não é alcançada com um simples estalo de dedos, mas se exige que a organização supere sucessivos graus ou fases de integração, iniciando-se geralmente pelo estabelecimento de zonas de tarifas preferenciais para depois lograr uma zona de livre comércio, a união aduaneira, o mercado comum e, por fim, a união econômica e monetária. Toda essa linha evolutiva, contudo, deve estar atrelada a uma nova concepção da soberania: a supranacionalidade.
2SUPRANACIONALIDADE: SOBERANIA COMPARTILHADA
Não resta dúvidas de que cada nível de integração alcançado corresponde a uma renúncia crescente de competências próprias de soberania nacional de cada Estado. Assim, no processo integracionista de uma comunidade, a partir de interesses políticos e econômicos de feição regional, a mentalidade dos países membros vai paulatinamente se modificando e surge, a partir daí, um novo conceito de soberania, que se contrapõe ao tradicional sem, contudo, negá-lo, a ponto de os Estados acatarem e respeitarem as normas emanadas de um poder "acima" deles – o poder supranacional.
O jurista argentino Roberto Dromi deixa clara essa relação entre o processo de integração e a noção de supranacionalidade ao dispor que
O processo de integração se caracteriza pela existência de organismos supranacionais que fixam, preparam ou coordenam normas que hão de reger a ação dos Estados integrados. A integração gera uma ´comunidade jurídica`, um direito próprio comum que não é um direito estrangeiro nem exterior. (DROMI: 1995, 66 apud REIS: 2001, 66, tradução nossa [01])
A supranacionalidade ou soberania compartilhada aparece então como a solução ao conflito entre o conceito de soberania tradicional e as necessidades de integração entre os Estados.
Ao contrário do que possa parecer, ou mesmo que a linguagem induza, não há hierarquia entre os órgãos comunitários e os Estados. Aliás, admitir o caráter de subordinação é incompatível com a preservação da soberania dos países pois, sendo assim, o que teríamos seria a formação de um grande Estado e não de uma comunidade de Estados. Talvez seja difícil conceber a existência de entes com poderes vinculatórios das políticas nacionais sem considerá-los superiores àqueles, mas esse é o ponto fundamental da consolidação de um bloco comunitário.
O que ocorre é que os Estados, ao resolverem integrar-se em uma comunidade, não precisam renunciar à sua soberania, nem a parcelas dela. Os membros, juntos, negociam quais as áreas em que seria mais proveitoso agir conjuntamente, em vez de fazê-lo de forma isolada. Logrado o consenso, os Estados arrogam as competências necessárias à Comunidade, que passarão a ser geridas pelos órgãos comunitários. São as chamadas "matérias reservadas". É daí que surge a ideia de soberania compartilhada, pois a comunidade passa a ser o espaço comum entre os países, do qual todos participam exercendo seu poder soberano.
Logo, o que há, em verdade, é a repartição de atribuições, pela qual os Estados aceitam que algumas de suas tradicionais competências passem a ser exercidas com exclusividade pelos órgãos comunitários. Assim, quanto maior o desenvolvimento obtido pelos Estados em sua iniciativa integracionista, maior será a quantidade de poderes deslocados para as esferas de decisão conjunta, os órgãos supranacionais.
Não se pode olvidar, contudo, que, nas demais áreas das quais resguardou a competência, o Estado soberano continua a decidir livremente, de acordo com suas regras internas e segundo suas conveniências e interesses, não se submetendo a nenhum órgão. Diz-se que em relação a essas matérias, há cooperação dos Estados integrantes, ao passo que nas competências delegadas, há de fato integração.
Celso Lafer propõe uma interessante analogia entre o processo de integração de Estados e um contrato plurilateral, como os contratos societários. O elemento fundamental, em ambos os casos, é o objetivo comum e a satisfação do interesse pessoal das partes depende da realização do escopo que compartilham. Logo, da mesma forma que não se pode dizer que os sócios de uma empresa perdem sua liberdade ao construí-la, também não se pode dizer que os Estados membros perdem sua soberania por participarem de uma ordem supranacional. (LAFER: 1982, 79)
Ademais, deve-se frisar que não é a Comunidade que tem a prerrogativa de definir as atribuições a que lhe são atribuídas, exercendo-as apenas em caráter derivado. Vige, portanto, o princípio da subsidiariedade, a que Márcio Monteiro Reis se refere atrelando-lhe três efeitos imediatos:
a)limita o âmbito de ação dos órgãos comunitários ao que for estabelecido pelo Tratado, respeitando sempre os objetivos da Comunidade;
b)estabelece que, nos domínios de competência concorrente entre a Comunidade e os Estados, os órgãos comunitários só atuarão se for entendido que assim os resultados seriam mais eficazes do que os Estados isoladamente poderiam obter; e
c)determina que a ação comunitária limite-se ao estritamente necessário para que possam ser alcançados os objetivos do Tratado. (REIS: 2001, 73)
Elizabeth Accioly Pinto de Almeida, em complemento, ressalta que
A nova ordem supranacional criada pelos Tratados Institutivos da Comunidade Européia revolucionou o conceito de soberania, principalmente no que concerne à aplicação de normas jurídicas que passam a estar sujeitas a um Tribunal de Justiça, que está acima dos Estados-membros, com a primazia do direito comunitário sobre o direito nacional. (ALMEIDA: 2002, 166)
Do trecho acima colacionado, mesmo sem conseguir extrair uma definição completa de supranacionalidade, podem-se inferir três aspectos inerentes à sua essência: primeiro, a existência de instâncias de decisão independentes do poder estatal; segundo, a superação da regra da unanimidade e do mecanismo de consenso da tomada de decisões; e terceiro, a primazia do direito comunitário sobre o direito interno.
Com relação ao primeiro elemento, cabe destacar que o sistema jurisdicional comunitário está assentado sob duas bases. De um lado, faz-se necessária a criação de um Tribunal de Justiça, sobre o qual recaia a função exclusiva de interpretação das normas comunitárias, em especial quando em conflito com o ordenamento nacional. No sistema europeu, é estruturado sobre dois órgãos: o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias e o Tribunal de Primeira Instância, este último criado em 1989 com a finalidade de auxiliar o TJCE face à multiplicação das demandas ali ajuizadas. Ocorre que os Tribunais comunitários sozinhos não serão suficientes para viabilizar o sistema de integração, mostrando-se imprescindível a colaboração dos Tribunais internos dos Estados membros, aos quais competirá fiscalizar a aplicação do ordenamento jurídico comunitário. A comunhão entre os Tribunais comunitários e nacionais será, então, condição sine qua non para a manutenção da ordem no bloco, posto que são eles os responsáveis por assegurar a repartição de competências entre os órgãos comunitários e os Estados.
No que concerne à segunda característica da noção de supranacionalidade, deve-se ter em conta que o modelo de resolução de conflitos com base na unanimidade entre as partes, vigente desde as origens da sociedade internacional de cooperação, viu-se esgotado ante a nova realidade de integração entre os Estados, consoante ressalta o professor Jorge Fontoura:
(...) supranacionalidade, vale dizer, em que as decisões deixam de ser tomadas por consenso e unanimidade, direito internacional público clássico, passando a valer a decisão da maioria dos países-sócios, com a transferência ou cessão de soberania à "alta autoridade", expressão cunhada pelo direito comunitário europeu. (FONTOURA: 2003, 223)
Como visto, a formação dos blocos regionais pressupõe a existência de objetivos comuns aos membros e, uma vez constituída a comunidade, esses objetivos serão elevados a uma posição de superioridade a qualquer outro interesse que venha a ter um Estado individualmente. O estabelecimento desses objetivos é feito através dos Tratados Constitutivos, estes sim demandantes de aprovação unânime dos participantes, e só mediante a alteração deles que se podem modificar as finalidades do grupo.
Desta feita, se é sobre os órgãos comunitários supranacionais que recai a responsabilidade de tomada de decisões no seio da comunidade e estão eles sempre guiados pelos objetivos firmados na carta constitutiva, não haveria por que exigir o consenso para adoção de toda e qualquer ação. Estes organismos estão a serviço da comunidade e não de interesses individuais de um ou outro Estado membro. Destarte, exigir a unanimidade significaria sobrelevar eventual interesse dissidente de um membro em detrimento da satisfação dos escopos comuns do bloco, representados pelos órgãos supranacionais.
Por fim, quanto ao terceiro dos elementos caracterizadores dessa nova noção de soberania compartilhada, o primado do direito comunitário sobre o direito nacional, foi dito anteriormente que os órgãos comunitários não são superiores aos Estados. Faz-se mister salientar, contudo, que as normas editadas por esses órgãos em decorrência das competências a eles atribuídas pelos Estados, estas sim serão hierarquicamente superiores às normas nacionais sobre mesma matéria.
Ao contrário do que à primeira vista se possa pensar, isto não é uma incongruência, pois essa subordinação do direito interno só existirá em relação àquelas atribuições específicas repassadas aos organismos comunitários. Qualquer normativa, oriunda dos poderes supranacionais mas referente a matérias que o Estado conservou sua competência soberana, será considerada nula, ficando os particulares livres para descumprir as regras comunitárias, agindo em consonância com o ordenamento interno.
Assim, bem entendida a noção de supranacionalidade, torna-se possível compreender as características do direito comunitário que se forma. Em primeiro lugar, pode-se dizer que o Direito Comunitário tem autonomia, o que significa que a ordem comunitária não é Direito Interno nem Internacional, mas um sistema específico e particular, constituindo um autêntico ordenamento jurídico. Ademais, como já dito, não se pode negar a supremacia absoluta e incondicional do direito comunitário sobre o direito interno dos Estados signatários, em relação às competências expressamente atribuídas aos órgãos supranacionais. E, por fim, talvez a principal característica do direito comunitário vem consubstanciada no atributo do efeito direto de suas normas, a ser analisado adiante.
3EFEITO DIRETO DAS NORMAS COMUNITÁRIAS
Antes de adentrarmos de fato no conteúdo deste atributo da norma, faz-se mister diferenciar a noção de recepção do Direito Internacional na ordem interna da ideia de aplicabilidade direta da norma comunitária.
Para tanto, deve-se fazer a distinção entre o Tratado entendido como o "acordo formal concluído entre sujeitos de Direito Internacional Público, e destinado a produzir efeitos jurídicos" (REZEK: 1984, 13), englobando nessa definição as convenções, os acordos, os pactos e os ajustes internacionais (PEREIRA: 1902 apud REZEK: 1984, 13), daquele Tratado instituidor da comunidade.
Para a primeira espécie, surge o problema da incorporação ao direito interno, enfrentado pelo Direito dos Tratados, que trata de questões como a teoria das fontes [02] e a prevalência do Direito Interno ou Internacional.
No estudo do Direito Internacional Público, costuma-se entender o processo de elaboração de um Tratado desdobrando-o em duas fases distintas. Na primeira, o Estado atua em conjunto com outras pessoas internacionais. É dividida também em duas etapas. Primeiro, tem-se a negociação, quando se credenciam os representantes de cada país signatário, define-se a sede de negociação, o tipo de acordo e ainda se nomeia o responsável pela troca ou depósito dos instrumentos de ratificação. Após essa fase, que se opera nos planos interno e externo e conclui-se pela apresentação do projeto, passa-se ao segundo ato, que é a assinatura, que pode se dar, inclusive, sob reservas, se não houver acordo sobre determinado ponto da negociação.
Firmado o projeto, o Tratado mostra-se perfeito, válido e exigível na ordem internacional. Passa-se, então, à segunda fase de seu processo de elaboração e validade, estabelecida dentro do território do Estado, que realiza os atos isoladamente. É a etapa facultativa, visto que depende da regulamentação constitucional dada por cada ordenamento jurídico e que o diferencia da teoria geral europeia das normas comunitárias.
Naqueles sistemas que dispensam a exigência da ratificação, gozando da característica do efeito direto, a que vamos nos ater mais adiante, o processo de elaboração e validade de um Tratado encerra-se, pois, com o ato da assinatura.
Todavia, tomando-se por base a sistemática adotada no direito brasileiro e na grande maioria dos ordenamentos jurídicos no mundo, para se adquirir validade também no plano interno, faz-se imprescindível proceder à ratificação, à promulgação, à publicação e ao registro do Tratado. No Brasil, a ratificação é cumprida através da edição de um decreto legislativo pelo Congresso Nacional, seguindo-se a promulgação por um decreto do Poder Executivo, a publicação no Diário Oficial da União e nos Anais do Itamaraty e o registro, momento este em que o Estado ou o organismo internacional signatário consolida sua responsabilização completa pelo cumprimento das regras estatuídas no Tratado (ARIOSI: 2004).
Já em relação às normas comunitárias, contudo, o processo é diferente em virtude da característica da aplicabilidade direta de suas disposições. Rompe-se o paradigma do Direito Internacional Público e, uma vez firmado o Tratado ou regulamento pelos órgãos supranacionais, suas disposições são válidas em todo o território e oponível, em regra, a qualquer um, independentemente de qualquer manifestação dos órgãos legislativo e executivo nacionais. Há uma espécie de recepção automática das normas, não sujeita a nenhum ato de transformação ou execução.
O exemplo do ordenamento jurídico italiano é elucidativo para a compreensão da distinção. Modelo padrão do sistema dualista radical, em que só tem valor jurídico interno o Tratado que for internalizado mediante lei stricto sensu, a partir da construção jurisprudencial do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, a teoria de incorporação permanece em vigor, salvo em relação às normas de direito comunitário, que produzem seus efeitos independentemente de qualquer ato legislativo interno.
Os Tratados tradicionais, portanto, regem-se pelas regras clássicas de Direito Internacional Público e subsistem inclusive em relação a países membros da comunidade, que continuam a utilizar-se desses acordos internacionais nas relações que trave com terceiros países e até mesmo com outros Estados membros da comunidade, no que toca às matérias que não foram expressamente atribuídas aos órgãos supranacionais.
Convém salientar, ainda, que não se deve confundir aplicabilidade direta com aplicabilidade imediata. Como bem assinalaram Rosemiro Pereira Leal, Allan Helber de Oliveira, Gustavo Gomes França e Juventino Gomes Miranda Filho:
Não é o "imediatismo" da aplicação da norma que a caracteriza como diretamente aplicável ou não. Independentemente de vacatio legis, de ato complementar da Comunidade ou do Estado-membro, a norma comunitária é diretamente aplicável por se inserir automaticamente no ordenamento jurídico interno e não em razão do tempo necessário para que surta efeito (LEAL: 2001, 148)
Se, pela regra geral de recepção dos tratados, que esteve sempre presente no estudo do Direito Internacional Público, eram os Estados que decidiam quando e como receber na ordem interna a disciplina normativa exterior, de acordo com a nova sistemática introduzida pelo Direito Comunitário, esse poder de decisão sai da esfera das autoridades nacionais e passa aos órgãos supranacionais, aos quais cabe instituir as novas regras de disciplina dentro do espaço comunitário.
3.2Aplicabilidade direta x Efeito direto
Até o momento, não nos preocupamos em diferenciar as noções de aplicabilidade direta e efeito direto das normas comunitárias. Maria Luísa Duarte, contudo, alerta para as diferenças existentes entre uma e outra, como se depreende de suas próprias palavras, in verbis:
A aplicabilidade direta, como já demonstrado, pressupõe a inserção da norma comunitária no direito doméstico, independentemente de qualquer manifestação de recepção. O efeito direto é noção construída pela jurisprudência do TJ e diz respeito à conseqüência da incorporação do preceito comunitário ao ordenamento jurídico nacional: sua invocação perante a jurisdição nacional. Assim, efeito direto é a qualidade da norma comunitária pelo critério da criação automática de direitos subjetivos tuteláveis em juízo (DUARTE: 1992, 76 apud LEAL: 2001, 149).
Cláudia Lyra Nascimento, em complemento, sintetiza a distinção:
Por eficácia direta entende-se a possibilidade de serem essas normas invocadas pelos particulares, quanto aos direitos e obrigações judiciárias, quando houver sua violação; e, por aplicabilidade imediata [03], a efetiva aplicação da norma, logo após sua publicação, sem necessidade de processo de reconhecimento ou incorporação no ordenamento jurídico nacional. (NASCIMENTO: 2006, 180)
Desta feita, não obstante na maioria das vezes sejam tratadas como sinônimas, observa-se que a aplicabilidade direta tem um caráter mais formal, de dispensa da adoção de atos procedimentais, ao passo que o efeito direto apresenta caráter nitidamente material, criando direitos e obrigações aos destinatários.
3.3Efeito Direto dos Tratados Constitutivos
Colocado de lado as questões terminológicas, chegamos à conclusão de que o efeito direto ou eficácia direta das normas comunitárias significa que estas despregam a plenitude de seus efeitos, de maneira uniforme em todos os Estados membros, a partir de sua entrada em vigor e durante todo o tempo que durar sua validade.
Em consequência, as normas comunitárias criam direitos e obrigações para todos aqueles que possam ver-se afetados por seu âmbito de aplicação, podendo ser invocadas ante as autoridades públicas, que têm o dever de salvaguardar esses direitos e deveres.
Observe-se, contudo, que a noção de efeito direto não veio explícita nos Tratados Constitutivos das Comunidades Europeias, o que causava diversidade de interpretação entre os ordenamentos jurídicos internos dos Estados membros, como destaca Luiz Fernando Voss Chagas Lessa:
A análise das relações entre o direito internacional e o direito interno na Europa exige, ainda, que se aborde a questão das relações entre direito comunitário e o direito interno dos Estados integrantes da União Européia. Ao contrário do que seria de esperar, a doutrina dualista parece prevalecer, mesmo que com adaptações. Na Grã-Bretanha, a necessidade de incorporação se mantém, mesmo diante de normas convencionais firmadas entre membros da União Européia. Na Itália, a jurisprudência predominante firmou que, até que o tratado seja aprovado pelo parlamento, ato que ao mesmo tempo em que autoriza a ratificação da convenção edita uma ordem de execução determinando a aplicação interna dos dispositivos internacionais, o tratado não vige internamente. Algumas vezes, para que o dispositivo internacional produza seus efeitos dentro da República Italiana, faz-se necessário ainda a adaptação de diplomas internos a fim de possibilitar a plena aplicação do direito internacional. Do mesmo modo, para a doutrina e a jurisprudência alemãs, a doutrina dualista formulada por Triepel prevalece, mesmo nos casos em que a norma de direito comunitário. A exceção a essa regra são as normas de direito comunitário derivado, formulado a partir da delegação prevista pelos parágrafos 1º dos artigos 23 e 24 da Lei Fundamental (LESSA: 2004, 133).
Assim, a ideia de efeito direto em concreto foi uma construção essencialmente jurisprudencial, cujos contornos ficaram pela primeira vez delineados no acórdão do assunto nº 26/62 (Vand Gend & Loos), de 05 de fevereiro de 1963.
O caso: uma empresa holandesa (Van Gend & Loos) comprava produtos químicos à Alemanha, pagando os correspondentes direitos aduaneiros para entrada dos produtos na Holanda. Ocorre que dito país aumentou as tarifas alfandegárias, não obstante o antigo art. 12 do Tratado das Comunidades Europeias determinasse que os Estados membros se abstivessem de estabelecer entre si novos direitos de aduana de importação e exportação ou exações de efeito equivalente, bem como de incrementar os que já estivessem aplicando em suas relações comerciais recíprocas.
O Tribunal holandês, que conhecia do caso, decidiu propor questão prejudicial ao Tribunal de Luxemburgo para saber se as novas tarifas alfandegárias constituíam ou não um ilícito. Em outros termos, questionava se um particular poderia fazer valer direitos individuais baseando-se em preceitos dos Tratados Constitutivos, já que o citado dispositivo apenas se referia aos Estados, sem fazer menção, em momento algum, aos particulares.
Caso essa pergunta fosse feita no âmbito dos tradicionais tratados de Direito Internacional Público, certamente a resposta estaria condicionada à sua incorporação ao ordenamento jurídico interno. Todavia, tratando-se de normas comunitárias que, como visto, gozam do atributo da aplicabilidade direta, dispensando qualquer procedimento formal de transposição para o direito interno, a conclusão é distinta.
E foi por este caminho que enveredou o Tribunal Comunitário, decidindo que, embora destinadas em princípio a regular as relações entre os Estados membros, podiam sim as disposições dos Tratados ser invocadas pelos particulares que, deste modo, podiam deduzir direitos, ante as jurisdições nacionais, das obrigações assumidas por seus Estados no seio da Comunidade (CARRILLO SALCEDO; PELÁEZ MARÓN, 2006).
Para o Tribunal, as Comunidades Europeias são algo mais que simples organizações internacionais. São, na verdade, uma comunidade de povos e uma comunidade de Estados, e não só uma estrita organização de Estados [04].
Em consequência desse entendimento, podemos inferir duas conclusões principais acerca do efeito direto. Em primeiro lugar, as disposições dos Tratados podem produzir efeitos jurídicos por si mesmas, criando direitos e obrigações sem necessidade de normas nacionais para sua aplicação. Já a segunda conclusão pode ser vista sob duas facetas. Tanto podem os particulares fazer valer ante os poderes públicos nacionais os direitos que derivam das normas comunitárias, como também é dever dos Poderes Públicos assegurar e proteger os referidos direitos individuais.
3.4Efeito direto das diretivas
Não remanescem dúvidas, portanto, que o efeito direto é plenamente aplicável às normas comunitárias originárias, representadas pelos Tratados constitutivos e as normas posteriores que os modificaram.
O debate, então, deveria se centrar nas normas que dos Tratados derivam, componentes do que chamamos de Direito Comunitário Derivado, que abarca tudo aquilo não compreendido nas normas originárias. Nesse grupo, enquadramos tanto normas de caráter não vinculante, como as recomendações e os ditames, os quais, todavia, não serão objeto de estudo mais aprofundado neste trabalho, como também normas de cumprimento obrigatório pelos Estados membros: os regulamentos, as diretivas e as decisões, cuja distinção se opera principalmente pelo alcance atingido por suas disposições.
Dessa feita, os regulamentos se caracterizam pelo alcance geral de suas disposições, pela obrigatoriedade em todos os seus elementos e pelo efeito direto, gerando direitos e obrigações por si mesmos para os órgãos e sujeitos dependentes de ordenamento estatal e proibindo qualquer atividade por parte dos Estados que possa por em xeque a imediata efetividade de suas disposições. Distinguem-se das decisões por faltarem a essas o aludido alcance geral, haja vista não serem aplicadas a situações objetivamente determinadas e a sujeitos contemplados de forma geral e abstrata, mas sim a destinatários específicos.
A grande controvérsia centra-se, então, na diretiva, espécie de norma comunitária que não obriga em todos os seus elementos como os Regulamentos e as Decisões mas, pelo contrário, traz em seus termos apenas uma obrigação de resultado, deixando as autoridades nacionais livres para eleger a forma e os meios de atingir aquele fim. Os efeitos jurídicos de suas disposições, pois, somente admitem concretude com a chamada norma de transposição, quando os Estados regulam no plano interno as disposições impostas pela diretiva.
O problema das diretivas surge, portanto, quando o Estado não elabora a norma de transposição nos prazos previstos ou o faz de forma incompleta ou incorreta, carecendo, pois, de aplicabilidade direta.
Desta feita, para superar essa ausência de aplicabilidade direta, fazia-se necessário dar à diretiva uma nova roupagem, similar ao regulamento, detalhando e precisando as obrigações de tal modo que se reduzisse ao mínimo a margem de atuação dos Estados.
Coube à Corte Comunitária, então, tal tarefa, e aos poucos foi se outorgando à diretiva uma nova fisionomia, não contrária, mas sim diferente a que vinha definida nos Tratados Constitutivos, com o fito de assegurar-lhe permanentemente um efeito útil às suas disposições. Para isso, atuou sobre duas bases fundamentais: garantir a obrigação de resultado e delimitar, em função desta obrigação, o alcance da liberdade de eleição das formas e meios pelo Estado, consubstanciadas especialmente em três acórdãos exemplares do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias.
O primeiro acórdão significativo a este respeito foi prolatado em 04 de dezembro de 1974, no julgamento do processo nº 41/74 (assunto Van Duyn c. Grã-Bretanha). Tratava-se mais uma vez de uma holandesa, agora pessoa física, que emigrou para a Inglaterra com o objetivo de ocupar posto de trabalho nos serviços de uma seita religiosa da qual participava. Todavia, no momento de sua entrada no território britânico, teve seu visto negado e foi expulsa por supostas razões de ordem pública.
Levada à questão ao TJCE através de reenvio judicial provocado pela Câmara de Lordes inglesa, o Tribunal decidiu que, por se tratar de uma obrigação para os Estados membros em favor de particulares, a diretiva "exige que tal obrigação possa ser invocada embora haja sido enunciada num ato normativo que não tem de pleno direito um efeito direto no seu conjunto" (REIS: 2001, 186-187).
Em outra sentença célebre, no caso Ratti (processo nº 148/78), de 05 de abril de 1979, o Tribunal Comunitário considerou legítimo apartar a aplicação da lei nacional que contrariava disposição contida em diretiva, cujo prazo para a execução de medidas estatais já havia decorrido sem qualquer iniciativa por parte do Estado obrigado. Assim se pronunciou a Corte de Justiça:
Que se em virtude das disposições dos artigos 189 (hoje 249), os regulamentos são diretamente aplicáveis e, por conseguinte, suscetíveis por sua natureza de produzir efeitos jurídicos, não se deriva disso que outras categorias de atos não possam, em nenhum caso, produzir efeitos análogos; que seria incompatível com o efeito obrigatório que o artigo 189 (hoje 249) reconhece à diretiva excluir, em princípio, que a obrigação que impõe possa ser invocada por pessoas afetadas; que, particularmente, nos casos em que as autoridades comunitárias houveram obrigado por via de diretiva os Estados membros a adotar um comportamento determinado, o efeito útil de tal ato se encontraria debilitado se os administrados se vissem impedidos de alegá-la em via judicial e os órgãos jurisdicionais impedidos de tomá-la em consideração enquanto elemento de direito comunitário (REIS: 2001, 187).
O TJCE expôs, então, uma visão da diretiva que vai mais além de considerá-la como um ato jurídico que esgota sua obrigatoriedade no mandato dado ao Estado, para referir-se a ela como um elemento de Direito Comunitário destinado a produzir seus efeitos em relação aos particulares.
Complementando essa nova concepção da diretiva, sobreveio em 19 de novembro de 1991 novo acórdão, prolatado nos autos do processo nº 6/90 (assunto Francovich). Tratava-se de caso em que, diante da decretação de falência da empresa em que trabalhavam, dois cidadãos italianos, cujos salários não haviam sido pagos, recorreram ao Judiciário contra o Estado Italiano por não ter adaptado o ordenamento jurídico interno à diretiva sobre proteção dos trabalhadores assalariados em caso de insolvência do empresário. Proposta a questão pelo órgão judiciário italiano ante o TJCE, este Tribunal concluiu que
(...) a plena eficácia das normas comunitárias seria posta em causa e a proteção dos direitos que reconhece seria enfraquecida, se os particulares não tivessem a possibilidade de obter reparação quando seus direitos fossem lesados por uma violação do direito comunitário imputável aos Estados-membros. (...) o direito comunitário impõe o princípio segundo o qual os Estados-membros são obrigados a reparar os danos causados aos particulares por violações do direito comunitário que lhes sejam imputáveis. (...) Se um Estado desconhece a obrigação que lhe incumbe em virtude do artigo 189, terceira alínea, do tratado, de tomar todas as medidas necessárias para atingir o resultado prescrito por uma diretiva, a plena eficácia desta norma de direito comunitário impõe um direito à reparação (REIS: 2001, 188).
Infere-se, pois, que o que pretendia a correspondente Diretiva era outorgar aos trabalhadores assalariados alguns direitos dos quais haviam sido privados pela omissão do Estado, que não havia ajustado o direito nacional ao previsto naquela norma comunitária, nem que para isso fosse necessário reconhecer à diretiva e às outras normas comunitárias a força de gerar uma obrigação indenizatória do Estado membro frente aos particulares pelos danos sofridos por estes.
O efeito direto da diretiva aparece, portanto, como um corretivo frente ao Estado infrator, independentemente de qualquer outra medida sancionadora que possa ser tomada pelas instituições comunitárias.
Logicamente, o reconhecimento do efeito direto de algumas disposições de uma diretiva não exonera o Estado de sua obrigação de executar por inteiro suas disposições mediante a adoção de medidas internas.
Desta feita, como visto, entende a Jurisprudência comunitária que se bem uma diretiva não é na sua totalidade suscetível de gozar do efeito direto, isso não impede que algumas de suas disposições possam sim ser invocadas pelos particulares e aplicadas pelos poderes públicos.
Todavia, o TJCE não deixou que essa invocabilidade e o efeito direto das diretivas fossem interpretados de maneira absoluta. Condicionou seu reconhecimento à observação no caso concreto de três condições: (1) a expiração do prazo dado aos Estados membros para sua aplicação interna; (2) a ausência, insuficiência ou deficiência da adaptação e (3) o cumprimento pela diretiva invocada dos requisitos do efeito direto, ou seja, que do ponto de vista de seu conteúdo, fosse suficientemente precisa e incondicional.
O que importa, pois, é que o beneficiário e o direito protegido estejam bem definidos na própria norma comunitária sem necessidade de normas de execução nacionais ou comunitárias.
3.5Efeito direto horizontal
Acima, restou claro que o efeito direto da diretiva só poderá ser invocado quando o conteúdo normativo da norma comunitária tenha a precisão suficiente para sustentar uma pretensão jurídica ou um direito e esteja formulado de maneira incondicional. Mas em que relações poderá ser dito atributo invocado?
Quando observadas as normas comunitárias originárias, depreende-se que elas apresentam efeito direto não só nas relações verticais dos particulares frente ao Estado, bem como do Estado frente aos particulares e nas relações horizontais entre os particulares.
Em relação aos Regulamentos, gozam estes igualmente de efeito direto tanto nas relações verticais como nas relações horizontais. Em muitas ocasiões, o TJCE fez referência a que, devido a suas características, o regulamento não oferece dúvidas quanto a seu efeito direto sempre que reúna os requisitos de claridade e precisão e não deixem margem alguma de apreciação às autoridades nacionais.
No que toca às Decisões, o Tribunal de Luxemburgo deixou claro que, por se tratar de um ato obrigatório em todos seus elementos para o destinatário designado, dotam-se de efeito direto e invocabilidade ante os poderes públicos internos.
Questão complexa, contudo, refere-se às Diretivas, visto que se tratam de normas que impõem o alcance de um resultado a seus Estados destinatários em um prazo também determinado. Uma diretiva corretamente executada não gera por si mesma direitos e obrigações para os particulares, o que só será possível através da chamada "norma de transposição".
O efeito direto da diretiva, portanto, pode produzir-se unicamente nos casos em que os Estados membros não procedam à transposição adequada da diretiva no prazo fixado. Ademais, a princípio, contempla-se apenas nas relações verticais do particular frente ao Estado, e tão só neste sentido. Como a diretiva é obrigatória apenas para o Estado, que por sua vez, com base nela, imporá obrigações aos particulares, não pode aquele exigir o cumprimento de tais obrigações aos particulares afetados.
Não há, logo, efeito vertical inverso. O Estado, pois, não pode fazer cumprir uma diretiva que ele mesmo não respeitou, devendo, ainda, suportar a invocação dos direitos ou benefícios que os particulares pudessem deduzir em seu favor.
Finalmente, no que concerne às relações horizontais, uma diretiva não executada corretamente não pode, por si só, criar obrigações a cargo de um particular, tampouco pode, em consequência, ser invocada. Um particular, portanto, não pode exigir de outro o cumprimento das obrigações impostas em uma diretiva não transposta ou transposta incorretamente.
Resta claro, destarte, que as diretivas possuem apenas o chamado efeito direto vertical, não sendo possível sustentar a existência de efeito direto nas relações horizontais, já que o referido ato comunitário não tem o condão de criar obrigações aos particulares, mas tão só aos Estados, únicos destinatários daquele. Fica vedado ao particular, assim, pretender impor um direito seu contra outro particular em face de uma diretiva.
3.6A possibilidade de efeito direto no MERCOSUL
Quando analisada a questão no âmbito do bloco sul-americano, constatamos uma aparente antinomia entre dois dispositivos do Protocolo de Ouro Preto [05].
Por um lado, o artigo 40 estabelece que, uma vez aprovada a norma, os Estados membros adotarão as medidas necessárias para a sua incorporação ao ordenamento jurídico nacional, que entrará em vigor simultaneamente nos Estados, mas apenas após todos comunicarem sua incorporação à Secretaria Administrativa do MERCOSUL.
Todavia, em contradição, o artigo 42 do mesmo documento legal é expresso ao dispor que "as normas emanadas dos órgãos do Mercosul previstos no Artigo 2 deste Protocolo terão caráter obrigatório e deverão, quando necessário, ser incorporadas aos ordenamentos jurídicos nacionais mediante os procedimentos previstos pela legislação de cada país".
Ora, seria ou não exigida a prévia incorporação das normas do MERCOSUL para que estas gerassem direitos e obrigações nos limites internos dos Estados partes?
Discorrendo sobre a questão, Cláudia Lyra Nascimento destaca que:
(...)é forçoso concluir que, em seu art. 40, vem aceita a necessidade de incorporação aos ordenamentos jurídicos nacionais dos Estados Partes, como a forma de entrada em vigor das normas mercosulinas em cada um dos países. (...) Essa alternativa da simultaneidade foi a saída encontrada para substituir o princípio da aplicação imediata, até o presente momento impossível, para se evitar a incerteza daqueles que pretendem criar vínculos jurídicos nos Estados Partes quanto à efetiva vigência das normas mercosulinas. Isso porque, além da necessidade de incorporação, a própria duração desse processo era variável entre os países e, mais, dentro de um mesmo país. (NASCIMENTO: 2006, 178).
A resposta ao questionamento acima está, pois, no artigo 2º do referido Protocolo ("são órgãos com capacidade decisória, de natureza intergovernamental, o Conselho do Mercado Comum, o Grupo Mercado Comum e a Comissão de Comércio do MERCOSUL").
Em sua estrutura, portanto, não se encontram instituições de caráter supranacional, mas órgãos de natureza intergovernamental, cujas decisões se amparam no princípio da cooperação entre os Estados membros e, apesar de seu caráter imperativo, não constituem qualquer óbice à existência de normas internas que lhes sejam incompatíveis ou que as revoguem.
Neste sentido, vale trazer à colação a lição de Cláudia Cínara Locateli:
A intergovernamentabilidade, adotada pelo processo de integração do Mercosul, tem como característica manter atrelada as decisões do bloco econômico à vontade política dos Estados-membros. As decisões resultam exclusivamente do consenso, sua estrutura institucional e seus funcionários dependentes exclusivamente dos interesses dos Estados-Partes. Em decorrência da adoção da intergovernamentabilidade as normas produzidas no âmbito integracionista devem ser internalizadas para produzirem efeitos jurídicos. Não há distinção entre adotar no ordenamento jurídico nacional normas advindas do Mercosul ou aquelas produzidas nas relações com terceiros países. Este procedimento burocrático ocasiona excessiva lentidão, tornando-se empecilho ao desenvolvimento integracionista que busca pela celeridade na aplicabilidade de suas decisões.
Em contraposição ao modelo intergovernamental adotado pelo Mercosul, a supranacionalidade (...) revolucionou o direito internacional por criar uma nova dimensão para o direito, ou seja, o direito da integração, evidenciado a partir de órgão com poderes independentes dos Estados-membros, capazes de ditar normas tidas como obrigatórias a todos os membros. (...) A supranacionalidade caracteriza-se pela prevalência das decisões comunitárias sobre o interesse individual dos Estados-membros, contando com uma estrutura institucional autônoma e independente e que dispõe de funcionários próprios. As normas produzidas na comunidade são dotadas de primazia e aplicabilidade direta, contando com o auxílio de um Tribunal de Justiça permanente, responsável pela aplicação uniforme das regras comunitárias. (LOCATELI: 2002)
Assim, ausente a característica da supremacia desse Direito de Integração, os conflitos entre as normas internas e as normas do MERCOSUL são solucionados da mesma forma que os conflitos envolvendo os tradicionais tratados de Direito Internacional, ou seja, pela aplicação da teoria monista, com a primazia do direito interno ou do direito internacional, ou pela prevalência da teoria dualista, pela qual as duas ordens convivem sem qualquer relação de hierarquia entre elas.
Vale salientar que a Constituição Argentina, desde 1994, autoriza seu Congresso Nacional a aprovar tratados de integração que deleguem competências a órgãos supranacionais. Na mesma direção, a Constituição Paraguaia de 1992 prevê a cessão ou transferência de parte de sua soberania em favor de um organismo de integração (HIRT: 2005, 182). Em ambas as reformas Constitucionais, contudo, apesar de consagrarem a criação de órgãos supranacionais, não atribuíram aplicabilidade direta e efeito direto às normas do MERCOSUL uma vez que condicionaram sua vigência à aprovação por maioria absoluta de suas Câmaras Legislativas.
Quando analisada a futura possibilidade de aplicação do efeito direto de eventuais normas comunitárias do MERCOSUL no ordenamento jurídico brasileiro, o questionamento principal que se faz é: seriam ou não necessárias alterações no texto constitucional vigente?
O parágrafo único do artigo 4º da Carta Magna de 1988, norma programática que elenca os princípios que regem as relações internacionais do país, consagra a integração regional como meta ao dispor que "a República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações".
Entretanto, utilizando-se como parâmetro o modelo de integração europeu, o artigo 84 do documento constitucional já traz o primeiro obstáculo a se superar ao estabelecer que "compete privativamente ao Presidente da República: (...) VIII - celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional".
Em complemento, o artigo 49 assenta que "é da competência exclusiva do Congresso Nacional:I - resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional".
Como ficaria então a questão da aplicabilidade direta das normas editadas no âmbito do MERCOSUL? Teriam vigência imediata e incondicionada dentro dos limites do território brasileiro ou, para isso, dependeriam da concordância do Congresso Nacional?
Ademais, uma vez incorporada ao direito interno, seja por intervenção legislativa ou de forma automática, a norma comunitária assume que status jurídico?
A interpretação do disposto no parágrafo 3º do artigo 5º da Carta Política, a contrario sensu, indica que, em regra, terão os Tratados força de lei ordinária federal ao expressar que "os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais".
Recentemente, em 03 de dezembro de 2008, no julgamento do RE 466.343 / SP, em que se discutia a possibilidade de prisão do depositário infiel, autorizada (mas não imposta) pela Constituição Federal no art. 5º, inciso LXVII, mas em contradição com o Pacto de São José da Costa Rica, ratificado pelo Brasil em 25 de setembro de 1992, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, seguindo tese defendida pelo Min. Gilmar Mendes, em detrimento do entendimento esposado pelo decano Min. Celso de Mello, decidiu que o referido Tratado teria status de norma supralegal, com eficácia paralisante sobre a legislação ordinária com ele incompatível, consoante se infere do trecho contido no Informativo nº 531 do STF, relativo a acórdão prolatado na mesma seção nos autos do HC 87585/TO, in verbis:
Em conclusão de julgamento, o Tribunal concedeu habeas corpus em que se questionava a legitimidade da ordem de prisão, por 60 dias, decretada em desfavor do paciente que, intimado a entregar o bem do qual depositário, não adimplira a obrigação contratual — v. Informativos 471, 477 e 498. Entendeu-se que a circunstância de o Brasil haver subscrito o Pacto de São José da Costa Rica, que restringe a prisão civil por dívida ao descumprimento inescusável de prestação alimentícia (art. 7º, 7), conduz à inexistência de balizas visando à eficácia do que previsto no art. 5º, LXVII, da CF ("não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel;"). Concluiu-se, assim, que, com a introdução do aludido Pacto no ordenamento jurídico nacional, restaram derrogadas as normas estritamente legais definidoras da custódia do depositário infiel. Prevaleceu, no julgamento, por fim, a tese do status de supralegalidade da referida Convenção, inicialmente defendida pelo Min. Gilmar Mendes no julgamento do RE 466343/SP, abaixo relatado. Vencidos, no ponto, os Ministros Celso de Mello, Cezar Peluso, Ellen Gracie e Eros Grau, que a ela davam a qualificação constitucional, perfilhando o entendimento expendido pelo primeiro no voto que proferira nesse recurso. O Min. Marco Aurélio, relativamente a essa questão, se absteve de pronunciamento. (HC 87585/TO, rel. Min. Marco Aurélio, 3.12.2008)
A doutrina ainda não se uniformizou quanto à abrangência das conclusões desse julgamento, se o status de norma supralegal revestiria somente os Tratados sobre direitos humanos que não se submetam ao quorum qualificado de três quintos, se extensível a toda espécie de Tratados, celebrados antes ou após a CF/88, ou mesmo apenas àqueles firmados antes da Carta Magna de 1988 que não se submeteram ao procedimento de aprovação instituído pela EC nº 45.
Não há consenso na doutrina tampouco o STF se pronunciou esclarecendo as dúvidas que pairam sobre o tema. Todavia, salvo se a Suprema Corte vier a modificar sua interpretação, como o texto constitucional ressalvou tão-só a situação dos tratados sobre direitos humanos, conclui-se daí que as demais espécies de tratados, que constituem a grande maioria dos instrumentos firmados no âmbito do Mercosul, estarão, logo, sujeitas à aprovação pelo quorum simples exigidos às leis ordinárias.
Essa exegese é em seguida corroborada pelas disposições do art. 102, III, "b", que fixa a competência do STF para julgamento, mediante recurso extraordinário, das causas em que seja declarada a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal, além do art. 105, III, "a", pelo qual ao STJ compete julgar os recursos especiais quando a decisão recorrida contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência.
Deve-se frisar, entretanto, que os referidos tratados têm apenas força de lei ordinária, não se confundindo com ela, visto que inexiste referência expressa no processo legislativo esculpido na Constituição Federal de regras procedimentais disciplinando a votação, o quorum, revisão, emendas, etc.
No julgamento do Recurso Extraordinário nº 80.004/SE, em que o Supremo Tribunal Federal, ainda sob a égide da Constituição de 1967, proclamou a utilização da teoria dualista em nosso ordenamento jurídico, o voto do Ministro Cunha Alves consagra o status jurídico de lei ordinária dos Tratados incorporados à ordem interna, nos seguintes termos:
Com efeito, se a Lei Uniforme transformou-se em direito positivo brasileiro, evidente que pode ser modificada ou revogada, como qualquer outro diploma legal. Do contrário, transformar-se-ia qualquer lei que procedesse de algum tratado em super lei, em situação superior à própria Constituição Brasileira. (...) Portanto, ou o Tratado não se transforma, pela simples ratificação, em lei ordinária, no Brasil, ou, então, poderá ser revogado ou modificado pelo Congresso, como qualquer outra lei. (STF, RE 80004/SE, Pleno, Relator: Ministro XAVIER DE ALBUQUERQUE, julgado em 01/06/1977, DJ Data: 29/12/1977, p. 9433).
Interpretando-os com status de lei ordinária, decorre que os Tratados poderiam ser revogados por lei federal posterior ou mesmo se estivesse em desacordo com o texto constitucional.
A Carta Magna de 1988 introduziu o artigo 4º, parágrafo único, mas não criou mecanismos capazes de concretizar dita regra programática. Desta feita, não se pode falar, ao menos a princípio, em aplicabilidade direta ou efeito direto no Brasil das normas do MERCOSUL, consoante se depreende do entendimento do Supremo Tribunal Federal, externado no julgamento da Carta Rogatória nº 8.279, in fine:
(...)A recepção de acordos celebrados pelo Brasil no âmbito do MERCOSUL está sujeita à mesma disciplina constitucional que rege o processo de incorporação, à ordem positiva interna brasileira, dos tratados ou convenções internacionais em geral. (...) Embora desejável a adoção de mecanismos constitucionais diferenciados, cuja instituição privilegie o processo de recepção dos atos, acordos, protocolos ou tratados celebrados pelo Brasil no âmbito do MERCOSUL, esse é um tema que depende, essencialmente, quanto à sua solução, de reforma do texto da Constituição brasileira, reclamando, em conseqüência, modificações de jure constituendo. Enquanto não sobrevier essa necessária reforma constitucional, a questão da vigência doméstica dos acordos celebrados sob a égide do MERCOSUL continuará sujeita ao mesmo tratamento normativo que a Constituição brasileira dispensa aos tratados internacionais em geral.(...)
O SISTEMA CONSTITUCIONAL BRASILEIRO NÃO CONSAGRA O PRINCÍPIO DO EFEITO DIRETO E NEM O POSTULADO DA APLICABILIDADE IMEDIATA DOS TRATADOS OU CONVENÇÕES INTERNACIONAIS.
- A Constituição brasileira não consagrou, em tema de convenções internacionais ou de tratados de integração, nem o princípio do efeito direto, nem o postulado da aplicabilidade imediata. Isso significa, de jure constituto, que, enquanto não se concluir o ciclo de sua transposição, para o direito interno, os tratados internacionais e os acordos de integração, além de não poderem ser invocados, desde logo, pelos particulares, no que se refere aos direitos e obrigações neles fundados (princípio do efeito direto), também não poderão ser aplicados, imediatamente, no âmbito doméstico do Estado brasileiro (postulado da aplicabilidade imediata).
- O princípio do efeito direto (aptidão de a norma internacional repercutir, desde logo, em matéria de direitos e obrigações, na esfera jurídica dos particulares) e o postulado da aplicabilidade imediata (que diz respeito à vigência automática da norma internacional na ordem jurídica interna) traduzem diretrizes que não se acham consagradas e nem positivadas no texto da Constituição da República, motivo pelo qual tais princípios não podem ser invocados para legitimar a incidência, no plano do ordenamento doméstico brasileiro, de qualquer convenção internacional, ainda que se cuide de tratado de integração, enquanto não se concluírem os diversos ciclos que compõem o seu processo de incorporação ao sistema de direito interno do Brasil. Magistério da doutrina.
- Sob a égide do modelo constitucional brasileiro, mesmo cuidando-se de tratados de integração, ainda subsistem os clássicos mecanismos institucionais de recepção das convenções internacionais em geral, não bastando, para afastá-los, a existência da norma inscrita no art. 4º, parágrafo único, da Constituição da República, que possui conteúdo meramente programático e cujo sentido não torna dispensável a atuação dos instrumentos constitucionais de transposição, para a ordem jurídica doméstica, dos acordos, protocolos e convenções celebrados pelo Brasil no âmbito do MERCOSUL. (STF, CR-AgR 8279/AT, Pleno, Relator: Ministro CELSO DE MELLO, julgado em 17/06/1998, DJ Data: 10/08/2000, p. 06).
Pelo entendimento da Corte Máxima brasileira, então, fazem-se necessárias profundas alterações no vigente texto constitucional para que se possa falar em efeito direto. Neste sentido, a doutrina de Francisco Pedro Jucá propõe
o estabelecimento de um regime constitucional especial para as normas relativas ao Mercosul, inclusive prevendo a possibilidade de cessão ou transferência de soberania, condicionadas a plebiscito, autorizando e, ainda, estabelecendo controle prévio de constitucionalidade para esses tratados. (JUCÁ: 2002)
Corroboro com esse entendimento, o que aliás poderia ser concretizado através da alteração do texto constitucional, incluindo um dispositivo junto ao art. 4º, § único da CF, retro transcrito, que excepcione a incidência daquelas regras formais de incorporação em relação às normas editadas dentro dessa noção de integração regional. Desta forma, ficaríamos diante de uma dupla sistemática. As regras de incorporação dos atos internacionais ao direito interno continuariam em vigor tanto para os Tratados celebrados com terceiros países fora do território comunitário bem como para aqueles acordos firmados entre Estados membros da Comunidade mas relativos a matérias não reservadas à competência dos órgãos supranacionais.
Entretanto, para isso se tornar realidade, não bastam as alterações no texto constitucional brasileiro, que de nada adiantarão se não conseguirmos construir de fato uma noção de supranacionalidade e harmonização legislativa entre os membros, em substituição à atual incongruência legislativa e intergovernabilidade praticada no âmbito do MERCOSUL.
Faz-se mister, portanto, superar as arestas entre os Estados membros do acordo e colocar a integração regional como um programa de Estado e não apenas de Governo, sob pena de permanecermos para sempre como uma simples organização internacional.