4 Princípio inquisitório e a verdade material
O princípio da legalidade limita a atuação da atividade administrativa. Por decorrência dele, a autoridade fiscal deve buscar aplicar a lei corretamente. Como o dever jurídico tributário surge com a ocorrência do fato da vida real previsto ou descrito em lei (ocorrência do fato imponível descrito na hipótese de incidência), a comprovação da realidade fática que gerou a obrigação tributária é de suma importância para obediência do princípio da legalidade. Observa-se, assim, que a atividade administrativa, por força e em obediência ao princípio da legalidade, deve buscar alcançar a verdade material.
Sendo do conhecimento do Fisco os fatos praticados pelo contribuinte, o princípio da legalidade objetiva exige que o valor do tributo seja liqüidado de acordo com a realidade e autenticidade desses fatos.
A autoridade fiscal, impulsionada pelo dever de aplicar corretamente a lei de ofício, tem de apurar o valor do tributo de acordo com os verdadeiros fatos praticados pelo contribuinte, investigando-os sem qualquer interesse no resultado final, já que o princípio da legalidade objetiva exige do Fisco uma atuação oficial e imparcial para obtenção da verdade dos fatos [25].
A autoridade fiscal, no exercício de sua competência legal de exigir o pagamento do tributo, tem de agir, por impulso próprio (de ofício), para conferir se a declaração fornecida pelo contribuinte é verdadeira, ou para obter, caso as informações não estejam conforme a realidade dos fatos, por omissão própria ou imprópria, como falsidade material ou ideológica, ou até mesmo, por simples erro ou equívoco, a verdadeira conduta sujeita à tributação com o uso dos deveres-poderes colocados à sua disposição (do Fisco) pelo legislador tributário [26].
Esta atividade é marcantemente inquisitória, em busca da verdade material. No procedimento de investigação para a descoberta da verdade material, a autoridade fiscal busca, por meios instrutórios vastíssimos, formar sua convicção, que não está limitada à existência de regras legais norteadoras dos meios de prova.
É, pois, com fundamento no princípio da legalidade, que a atividade de lançamento busca alcançar a verdade material, utilizando-se do princípio inquisitório.
Segundo Alberto Xavier [27], o procedimento fiscal para efetivar o lançamento tributário é marcadamente inquisitório em razão de caber à autoridade fiscal dirigir a investigação dos fatos tributários, com obediência ao princípio da verdade material, afetando, desta forma, os meios de obtenção das provas necessárias para o pagamento do tributo.
4.1 Instrumentos de alcance da verdade material
A autoridade administrativa, na busca da verdade material, não está sujeita a formalismos rígidos ou a obediência a formas sacramentais. Diante da atuação da autoridade administrativa, não vigora o princípio da verdade formal, em que as formas dos atos, prazos, distribuição de ônus de prova e a sistematização dos procedimentos são rigorosamente previstos e obedecidos. Em busca da verdade dos fatos, afasta-se os formalismos em prol da busca da verdade material e correta aplicação do princípio da legalidade.
Isto evidencia que não é pertinente na atividade de lançamento o problema da repartição do ônus da prova, porquanto a autoridade fiscal possui livre convicção para formação da verdade material.
A liberdade investigatória na busca da verdade dos fatos mais próxima da realidade (verdade material), sem que rígidas formalidades condicionem o seu convencimento, não significa que no procedimento administrativo fiscal não se tenha de coletar os meios de prova que sedimentaram a livre convicção do titular do órgão fiscal.
Se o ato administrativo é resultante de um livre convencimento da autoridade, firmado unilateralmente, o cidadão ou contribuinte sujeito às conseqüências jurídicas desse ato tem o direito de questionar a sua conformidade com a lei de regência, motivo pelo qual não se pode prescindir da apropriada comprovação dos dados apurados pela autoridade competente.
Assim, não está se afirmando que a liberdade investigatória exime o Fisco de comprovar as alegações que firmaram o seu convencimento. Os fatos devem ser comprovados. Contudo, pelas características da atividade administrativa fiscal, os meios empregados para comprovar a realidade fática não seguem regras formais. Por meio do princípio inquisitório, busca-se alcançar e comprovar a verdade material.
4.2 Dever do contribuinte de prestar informações
No processo judicial, competindo ao juiz encerrar um conflito de interesse entre duas pessoas, pelo menos, cada parte envolvida no litígio deve ter o interesse de convencer o juiz sobre a certeza de sua verdade.
Para Chiovenda, provar significa formar o convencimento do juiz sobre a existência ou inexistência dos fatos relevantes do processo. Carnelutti, a respeito do tema, afirma:
Com efeito, em linguagem corrente, provar significa demonstrar a verdade de uma proposição afirmada. Agora bem: no campo jurídico, a comprovação dos fatos controvertidos por parte do juiz pode não derivar da busca de sua verdade, e sim dos processos de fixação formal... Se a lei compreende tais processos sob o nome de prova, isto significa que o conteúdo próprio do vocábulo na linguagem jurídica se altera e se deforma. Provar, com efeito, não quer dizer a demonstração da verdade dos fatos discutidos, e sim determinar ou fixar formalmente os mesmos fatos mediante procedimentos determinados.
Conseqüentemente, num processo, as partes devem ter o interesse de provar os fatos favoráveis à sua argumentação, constituindo o ônus da prova uma mera faculdade, e não um dever jurídico, pois o seu atendimento visa a obter uma vantagem no processo, não sofrendo qualquer sanção o descumprimento do ônus ou da carga da prova, salvo a não obtenção do efeito útil desejado.
O regime jurídico da função administrativa fiscal não guarda compatibilidade com o regime jurídico da função jurisdicional, especialmente com a maneira de se demonstrar a verdade dos fatos praticados pelo contribuinte.
O dever de pagar o tributo surge no dia em que o contribuinte realiza aquela conduta descrita hipoteticamente na lei como suficiente e necessária para o surgimento da relação jurídica tributária. Este dever jurídico de pagamento do tributo deve obedecer aos ditames legais. Assim, se para a Administração há o dever de obediência ao princípio da legalidade e da verdade material, para o particular há também o dever de demonstrar a realidade dos fatos.
Conseqüentemente, não tem o contribuinte um mero ônus de provar os fatos que praticou, porém, um dever jurídico de informar à autoridade fiscal como praticou o fato jurídico tributário e todas as condições fáticas relevantes para a determinação do valor da tributação.
Ressalta-se, assim, que o contribuinte também possui o dever de contribuir para a busca da verdade material.
Caso não haja o cumprimento deste dever jurídico por parte do contribuinte, o Fisco deve se utilizar do princípio inquisitório e buscar a verdade material, perseguindo, assim, o ideal de cumprir corretamente a lei.
O dever imposto pela lei à autoridade fiscal de controlar o correto pagamento do tributo e de exigir o seu pagamento, quando for o caso, exige que a autoridade administrativa tenha um comportamento ativo, no sentido de tomar as iniciativas apropriadas para determinar o valor do tributo, sem para isto ficar dependendo da disposição de colaborar do contribuinte, já que o contribuinte não tem ônus ou interesse de provar algo, porém o dever legal de declarar e informar as condições em que ocorreu o fato gerador.
5 Conclusão
O princípio da legalidade é um dos pilares estruturais de um Estado de Direito. Por força dele, a Administração deve se submeter à vontade da lei, de forma que sua atuação está vinculada a ela.
A atividade administrativa de lançamento segue as normas e princípios que regem a Administração Pública. Em decorrência disso, deve obedecer ao princípio da legalidade.
Em busca da aplicação do princípio da legalidade, a autoridade deve praticar o ato jurídico de lançamento com base na verdade material, o que deve ser feito utilizando-se do princípio inquisitório.
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Notas
- NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Teoria do lançamento tributário. São Paulo: Resenha Tributária, 1973. p. 24.
- BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1972. p. 318.
- DÓRIA, Antonio Roberto Sampaio. Da lei tributária no tempo. São Paulo: Obelisco, 1968. p. 321.
- MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 122.
- BRITO, Edvaldo. Lançamento. São Paulo: RT, 1987.
- BORGES, José Souto Maior. Lançamento tributário. São Paulo: Malheiros, 1999.
- GRECO, Marco Aurélio. Do lançamento. São Paulo: Resenha Tributária, 1987. p. 154-155. (Caderno de Pesquisas Tributárias, 12).
- ATALIBA, Geraldo. Apontamentos de ciência das finanças: direito financeiro e tributário. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1969. p. 277.
- BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. Rio de Janeiro: Forense, 1970. p. 208.
- FALCÃO, Amílcar. Fato gerador da obrigação tributária. Rio de Janeiro: Forense, 1964. p. 115.
- FANUCCHI, Fábio. Curso de direito tributário brasileiro. 4. ed. São Paulo: Resenha Tributária, 1976. v. 1. p. 273-274.
- AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 322.
- DERZI, Misabel Abreu Machado; NASCIMENTO, C. V. do. Comentários ao Código Tributário Nacional. Rio de Janeiro: Forense, 1997. p. 353.
- CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 253.
- Também neste sentido: MARTINS, Ives Gandra. Do lançamento. 1988. (Caderno de Pesquisas Tributárias, 12); MORAES, Bernardo Ribeiro de. Compêndio de direito tributário. Rio de Janeiro: Forense, 1984. p. 580; GUIMARÃES, Ylves José de Miranda. Do lançamento. Ibidem, p. 310; VELOSO, Carlos Mário da Silva. O arbitramento em matéria tributária. São Paulo: RT, 1987. p. 200; CORRÊA, Walter Barbosa. Lançamento tributário e ato administrativo nulo. São Paulo: RT, 1977. p. 33; BONILHA, Paulo C. B. Da prova no processo administrativo tributário. São Paulo: LTR, 1992. p. 31; XAVIER, Alberto. Do lançamento: teoria geral do ato do procedimento e do processo tributário. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 45.
- Op. cit., p. 781-782.
- SEIXAS FILHO, Aurélio Pitanga. Princípios fundamentais do direito administrativo tributário: a função fiscal. São Paulo: Forense, 2000. p. 97 ss.
- DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 11. ed. São Paulo: Atlas, 1999. p. 67.
- ALESSI, Renato. Instituciones de derecho administrativo. Buenos Aires: Bosh, 1970. p. 9.
- SEIXAS FILHO, op. cit., p. 139-140.
- Ibid., p. 146.
- Ibid., p. 5.
- FANTOZZI, Augusto. La solidarietà nel diritto tributario. Torino, Utet: 1968. p. 230 e 231 apud SEIXAS, Aurélio Pitanga.
- VON TURH, Andreas. Tratado de las obrigaciones. Madrid: Reus, 1934. t. 2. p. 203.
- SEIXAS FILHO, op. cit., p. 46.
- Ibid, p. 45.
- XAVIER, op. cit., p. 125.