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Dissídio coletivo, ação civil pública e a efetivação do princípio protetivo nas negociações coletivas

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Agenda 24/07/2009 às 00:00

sumário: Introdução; 1 Estado Liberal, Estado Social e o Direito do Trabalho; 2 Dissídio coletivo e poder normativo; 2.1 Poder normativo; 2.2 O poder normativo e o pós-positivismo; 2.3 Emenda Constitucional n. 45 de 2004; 2.4 Observações críticas sobre a necessidade de tutela dos grupos trabalhadores nas negociações coletivas, em vista da ausência de equivalência das autonomias privadas coletivas; 2.5 Exame da constitucionalidade da exigência do comum acordo; 3 Ação civil pública; Conclusão; Referência das fontes citadas.


resumo

A evolução do Direito do Trabalho deu-se sob a égide do Estado Social, cujo valor prevalente é o da igualdade material. Este princípio, no Direito do Trabalho, é traduzido pelo princípio da proteção, e em nome dele as negociações coletivas entre partes desiguais devem ser tuteladas, como forma de efetivar os ideais do Estado Social, ainda não concretizados no Brasil. Inicialmente o instrumento processual coletivo existente para atingir tal fim era o dissídio coletivo. Em razão do poder normativo que era atribuído ao Judiciário Trabalhista, era possível a intervenção estatal para o fim de garantir o justo equilíbrio da equação capital x trabalho. Com o esvaziamento do poder normativo pela Emenda Constitucional n. 45 de 2004, o instrumento mais adequado que há à disposição dos jurisdicionados para este fim é a ação civil pública, a qual é a síntese do desenvolvimento do processo coletivo, mais efetiva até que a ação de dissídio.


INTRODUÇÃO

O presente estudo parte da premissa de que a tutela coletiva do trabalhador é mais adequada ao contexto de massa em que as relações jurídicas se desenrolam hoje e de que, pelo menos no Brasil, ainda quando reunidos em sindicatos, os trabalhadores necessitam da tutela estatal protetiva que conduza ao atingimento de um maior equilíbrio substancial entre as partes, visado pelo Estado Social. Nesse passo, objetiva analisar o desenvolvimento dos principais instrumentos coletivos de tutela trabalhista, a saber, da ação de dissídio coletivo e da ação civil pública.

Pretende-se mostrar como a realidade trabalhista brasileira é complexa e prescinde da visão simplista que conduz a "soluções" absolutas de autotutela coletiva via negociação, tendo presente que, aqui, os ideais de igualdade substancial do Estado Social ainda não foram concretizados, de modo que é necessária a intervenção protetora estatal. Intenta-se, ainda, demonstrar o pioneirismo do desenvolvimento dos instrumentos de tutelas coletivas no Direito do Trabalho, desvinculando do poder normativo o ideal corporativista, ao expor suas efetivas origens e seus traços pós-positivistas. E, por fim, quer-se ponderar como a ação civil pública representa o esforço de síntese do desenvolvimento do processo coletivo e em que medida serve de sucedâneo da esvaziada ação de dissídio coletivo.

O tema reveste-se de atualidade na medida em que – desde a introdução da exigência de "comum acordo" para o ajuizamento do dissídio coletivo pela Emenda Constitucional n. 45 de 2004 –, a efetivação do princípio constitucional da proteção nas negociações coletivas mostra-se hesitante e encontra reservas por parte dos aplicadores do Direito, em virtude do esvaziamento do instrumento processual que tradicionalmente veiculava dita pretensão. É, portanto, curial que se trate do tema das tutelas coletivas do princípio protetivo, a fim de inculcá-lo na cultura juslaboral e de proporcionar a efetiva concretização dos princípios declarados por um Estado que se pretende Social.

Utilizou-se de método dedutivo e de pesquisa fundamentalmente bibliográfica, para expor o que se consideram os principais modos como o direito de o trabalhador obter condições progressivamente mais equilibradas pode ser efetivamente tutelado.


1 Estado liberal, estado social e o direito do trabalho

Não é possível tratar das tutelas coletivas de proteção ao trabalhador sem situar historicamente o próprio Direito Coletivo do Trabalho e sem percorrer, ainda que brevemente, a sua evolução.

Muito sucintamente, o Direito Coletivo do Trabalho surge com o próprio Direito do Trabalho – aliás, o Direito do Trabalho surge a partir de reivindicações coletivas – como reação ao evidente desgaste que a ordem jurídica liberal, inaugurada com a Revolução Francesa e com ápice na Revolução Industrial, apresentava ao fim do século XIX e início do século XX.

Referida ordem liberal, como é sabido, surgiu no século XVIII com as revoluções burguesas, em oposição ao Estado Absolutista até então vigente. Visava primordialmente à garantia da liberdade individual, a qual deveria ser assegurada pelo Estado (mínimo), e pressupunha que todos são livres e iguais em direitos, e que a vontade é elemento essencial da política e da economia. No âmbito jurídico, estes valores foram traduzidos pelo princípio da autonomia da vontade, máxima expressão do individualismo e do voluntarismo clássicos, o qual significa que os indivíduos são livres para, conforme lhes determine suas vontades, contratar, deixar de contratar e, ainda, e principalmente, definir o conteúdo do contrato e os limites das obrigações que querem assumir. A liberdade trabalhista era assegurada apenas individualmente, como corolário dos valores liberais, sendo proibidas as associações de classe desde a extinção das corporações de ofício pela Revolução Francesa (Lei Le Chapellier e Código Napoleônico).

O ideário liberal levado às suas últimas consequências, associado a fenômenos como a urbanização e a massificação social, redundou na exploração de milhares de pessoas, que ficaram – em razão da "liberdade" que possuíam de trabalhar ou não – expostas a condições subumanas de trabalho. De fato, os ideais liberais desconsideravam de todo que a presunção de igualdade entre as pessoas não é absoluta e que, ausente a intervenção do Estado, as relações sociais e econômicas seriam sempre desequilibradas, pendendo para o lado economicamente mais forte e contribuindo para o aumento gradativo da distância econômica separativa das partes.

A constatação da desigualdade material entre os indivíduos resultou na reação da sociedade à ordem jurídica estabelecida, que já não se amoldava mais à realidade existente, e na consequente decadência do voluntarismo clássico no Direito Privado, com a relativização dos seus conceitos e adoção de uma postura estatal crescentemente legislativa e interventora [01]. O nascente Estado, dito Social, estrutura, a partir de então, um direito das desigualdades, que procede a discriminações (positivas ou negativas) de certos grupos a fim de atingir um equilíbrio concreto [02], adotando a ideia de igualdade substancial como o eixo central do Estado, no lugar antes reservado à liberdade.

E, não por acaso, foram os direitos trabalhistas os primeiros a serem reconhecidos pela nova ordem jurídica. Com efeito, as lutas de classe foram o fator decisivo para a ruptura da ordem jurídica clássica, sendo na esfera trabalhista onde primeiro se identificou a desigualdade substancial entre os indivíduos e se buscou corrigi-la. Américo Plá Rodriguez afirma que:

Enquanto no direito comum uma constante preocupação parece assegurar a igualdade jurídica entre os contratantes, no Direito do Trabalho a preocupação central parece ser a de proteger uma das partes com o objetivo de, mediante essa proteção, alcançar-se uma igualdade substancial e verdadeira entre as partes (...).

O fundamento deste princípio está ligado à própria razão de ser do Direito do Trabalho. Historicamente, o Direito do Trabalho surgiu como conseqüência de que a liberdade de contrato entre pessoas com poder e capacidade econômicas desiguais conduzia a diferentes formas de exploração. Inclusive mais abusivas e iníquas. O legislador não pode mais manter a ficção de igualdade existente entre as partes do contrato de trabalho e inclinou-se para uma compensação dessa desigualdade econômica desfavorável ao trabalhador com uma proteção jurídica a ele favorável o direito do trabalho responde fundamentalmente ao propósito de nivelar desigualdades.

Vê-se, pois, que o Direito do Trabalho (Coletivo e Individual) desenvolveu-se sobre a linha mestra e para a concretização do princípio da igualdade material [03], para o qual se voltam os princípios específicos da disciplina laboral, dentre os quais o mais importante é o princípio da proteção. Pelo princípio da proteção, pretende-se dotar a parte econômica e juridicamente mais fraca (o trabalhador) e a parte jurídica e economicamente mais forte (o empregador), de um relativo equilíbrio, que assegure razoável justiça nas relações trabalhistas, equacionando a relação capital-trabalho. É corolário do princípio da equidade, segundo o qual se deve tratar igual os iguais e desigual os desiguais, na medida em que se desigualem.

Nesse contexto, é que, já na fase embrionária do Estado Social, desenvolveu-se o Direito do Trabalho. De início, no que toca ao âmbito coletivo, que é o que aqui interessa, passou-se a admitir as associações de trabalhadores (em 1824, na Inglaterra), as Trade Unions (em 1830, também na Inglaterra) e as associações trabalhadoras francesas (em 1884, Lei Waldeck-Roussou); e, finalmente, a Constituição de Weimar, na Alemanha de 1919 [04], considerada, juntamente com a Constituição do México de 1917, o marco inaugural do Estado Social, os direitos laborais passaram a ter importância constitucional. O direito coletivo trabalhista foi gradativamente evoluindo, com a criação da OIT após a segunda grande Guerra Mundial e as suas convenções a respeito [05], porém persiste incompleta em muitos países, dada a ausência de total liberdade sindical, oriunda da intervenção do Estado neste domínio. Do Direito Coletivo do Trabalho pátrio podem ser mencionadas como normas de destaque a Lei Áurea (Lei n. 3.353 de 1888); a Constituição de 1891, que reconheceu a liberdade de associação; a Constituição de 1934, que foi a primeira a tratar de direitos trabalhistas; a Constituição de 1937, que adotou o corporativismo italiano, no que toca à organização sindical [06], cuja disciplina persiste parcialmente até os dias atuais; a Consolidação das Leis do Trabalho de 1943, que prevê de modo sistêmico o dissídio, os acordos e as convenções coletivos; e, finalmente, a Constituição Federal de 1988, que trata, em seus artigos 7º a 10, do Direito Coletivo do Trabalho.

Merece destaque o fato de que a defesa dos interesses trabalhistas somente foi levada a efeito em virtude da atuação massiva dos trabalhadores que, individualmente, de pouco seriam capazes. Tanto que para Américo Plá Rodrigues "a união dos trabalhadores se situa no inicio do fenômeno trabalhista e constitui a resposta natural à injustiça e à exploração dos empresários" [07]. O doutrinador Fernando Noronha, ao dissertar sobre a transição de valores liberais para sociais, aduz em reforço que:

O Direito do Trabalho firmou-se contra estes princípios (do liberalismo), respondendo à necessidade de dar tutela à classe social dos trabalhadores assalariados que, se não era nova, estava em expansão, multiplicada sobretudo com o processo de industrialização, desde o início da fase histórico-econômica dita do capitalismo industrial. Tanto lá fora como entre nós, este ramo jurídico autonomizou-se quando as massas trabalhadoras se organizaram, para tentarem libertarem-se, se não totalmente pelo menos em parte, das chamadas "leis econômicas do mercado" – e também das leis jurídicas que assimilavam o contrato de trabalho a uma locação e a disciplinavam a par da locação de coisas [08].

O tratamento coletivo dado pioneiramente às lides trabalhistas, cumpre destacar, inspirou o sistema atual de processo civil coletivo, formado pela Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347 de 1985) e pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078 de 1990), e que volta a ser aplicado na seara trabalhista, conforme será visto adiante. A este propósito, Maurício Godinho Delgado ensina que:

Interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos existem, inevitavelmente, no universo regulado pelo Direito do Trabalho. Aliás, esse campo do Direito foi o primeiro a despontar na Idade Contemporânea enfocando e regulando condutas, interesses e direitos massivos, sendo essa, por várias décadas, uma de suas peculiaridades em contraponto aos demais ramos jurídicos. Apenas na segunda metade do século XX é que outros campos estruturaram-se no Direito, de modo claro e sistemático, em torno de temas, relações, interesses e pretensões de caráter massivo – é o que se passou com os novos Direito Ambiental e Direito do Consumidor, por exemplo. No caso do Brasil, o destaque pioneiro do Direito do Trabalho é flagrante. Segundo diagnóstico de Nelson Nery Júnior, a primeira vez que o direito positivo do país preocupou-se com a tutela de interesses de massa foi "na área do processo trabalhista. A ação de dissídio coletivo (CLT 856 e ss.) é forma de defesa, na Justiça do Trabalho, de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos". Arremata o autor que deve-se "à CLT, portanto, o pioneirismo em tratar, no âmbito legislativo, da problemática da tutela dos direitos transindividuais em juízo" [09].

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Diz-se que a disciplina de processo civil coletivo, inspirada no Direito do Trabalho, volta a ser nele aplicada porque – exceto no que toca à previsão de dissídio coletivo para a tutela de interesses transindividuais trabalhistas, que conforme se verá demonstrou inúmeros inconvenientes –, a disciplina processual trabalhista manteve um enfoque processual individualista, típico do liberalismo que a antecedeu, e inadequado, via de consequência, à tutela dos interesses transindividuais trabalhistas. De fato, os interesses trabalhistas, dada a sua abrangência e alcance social, não podem ser considerados meramente privados. Na verdade, eles estão situados entre o interesse geral e o individual. Tanto que, para Amarildo Carlos de Lima [10], a tutela dos direitos trabalhistas na perspectiva individual, desde então e até hoje, constitui entrave ao exercício do Direito, muito próximo de sua negativa, seja em função da pouca expressão quando considerado de forma individual, seja diante da fragilidade do indivíduo diante do agente transgressor, o que é ainda mais evidenciado quando decorrente de uma relação de desigualdade fática e jurídica entre seus protagonistas, como no Direito do Trabalho, em que uma das partes, em função da relação de emprego, está vinculada pela subordinação jurídica e dependência econômica.

Vê-se, assim, que todo o Direito do Trabalho foi desenvolvido em vista da obtenção da igualdade material, oposta àquela meramente formal imperante no Estado Liberal, e que o tratamento coletivo das lides laborais, em virtude de suas características próprias, é mais adequado à sua efetiva tutela.

Estas as principais considerações pertinentes às origens e evolução histórica do Direito Coletivo do Trabalho. Com elas em conta, passa-se a apreciar dois dos principais instrumentos processuais coletivos (que existem e existiram) para a tutela e concretização dos mencionados princípios da igualdade material e da proteção.


2 DISSÍDIO COLETIVO E PODER NORMATIVO

O chamado dissídio coletivo é forma de heterocomposição de conflitos de pessoas coletivas. Na lição de Sérgio Pinto Martins, consiste no "processo que vai dirimir os conflitos coletivos do trabalho, por meio de pronunciamento do Poder Judiciário, criando ou modificando condições de trabalho para certa categoria ou interpretando determinada norma jurídica" [11].

Pode ser de natureza jurídica, quando voltado ao esclarecimento da interpretação que deve ser dada a normas jurídicas de categorias particulares [12], ou de natureza econômica (ou de interesses), quando cria novas regras e condições de trabalho, e, para grande parte da doutrina, não se confunde com outros tipos de tutela coletiva.

O procedimento do dissídio está regulado pelos artigos 616 e seguintes da CLT e não será objeto de estudo mais aprofundado, de vez que refoge ao objeto do presente trabalho. Basicamente, tem-se que as partes devem ajuizá-lo após esgotadas todas as tentativas possíveis de autocomposição ou excluída a arbitragem, de comum acordo (art. 114, § 2º, da CF), perante o TRT que tem jurisdição sobre a base territorial do sindicato peticionante, ou perante o TST, no caso de o sindicato abranger localidades sob mais de uma jurisdição. Devem ser observados, ainda, os seguintes pressupostos processuais: autorização assemblear, conforme artigo 859 da CLT; inexistência de norma coletiva em vigor (art. 14 da Lei 7.783 de 1989); e observância da época própria para ajuizamento (art. 616, § 3º, da CLT) [13].

A petição inicial, além dos requisitos comuns dos artigos 282 do CPC e 840 da CLT, deve conter: representação conforme artigo 856; número de vias igual ao número de entidades suscitadas; qualificação dos suscitantes e indicação de sua delimitação territorial; indicação do quorum de deliberação da assembleia e das causas do conflito; as bases da conciliação e a prova de que houve tentativa de autocomposição; pedidos de forma clausulada; e data e assinatura. Não cabe reconvenção, dada a natureza dúplice do dissídio, oposição, vez que o opoente não teria participado da negociação prévia, e tampouco os efeitos da revelia [14].

A sentença que decide dissídio jurídico será declaratória; já a que decide dissídio econômico será, para a maior parte da doutrina, constitutiva e dispositiva, na medida em que dispõe sobre novas normas.

Esta última deve ser tomada com base em juízo de equidade, respeitadas as condições convencionadas anteriormente, e tem limites controvertidos pela doutrina. A sua maioria, no entanto, aponta, com base em precedente do STF, que ela deve ater-se ao "vazio legislativo", este conceito jurídico indeterminado. Alguns sustentam a possibilidade de estabelecer normas mais favoráveis que as previstas legalmente, desde que estas sejam de conteúdo mínimo [15], ao passo em que outros discordam, aduzindo que mesmo nestes casos, a norma mais favorável somente poderia decorrer de lei ou acordo ou convenção coletiva [16]. O debate é longo, mas dado o esvaziamento do poder normativo pela Emenda 45, que será visto adiante, não é mais de tamanho interesse.

O fato é que a sentença normativa proferida em dissídio econômico possui características peculiares, na medida em que, por meio dela, o Judiciário Trabalhista pode inovar originariamente na ordem jurídica. É o que se chama de poder normativo.

2.1 Poder Normativo

O poder normativo foi positivado no Brasil em 1934 e teve como fonte de inspiração a Carta del Lavoro do regime fascista de Benito Mussolini [17]. Suas origens, no entanto, apesar de a maior parte da doutrina atribuir ao regime fascista, é-lhe bem anterior. Com efeito, já em 1893, com a criação dos Collegi italianos, pensava-se "numa implícita eficácia paralegislativa da jurisprudência deles", e assim também ocorria na Austrália e na Nova Zelândia [18].

No Brasil, o poder normativo era, em princípio, afeto a órgão do Poder Executivo e limitava-se ao disposto em lei (sua eficácia era contida, de acordo com os mais gabaritados doutrinadores [19]), de modo que atuante apenas no branco da lei [20]. A partir da Constituição Federal de 1988, no entanto, a limitação ao contido na lei foi excluída do texto constitucional, de modo que a sentença proferida em dissídio coletivo passou a possuir a peculiaridade de, de fato, poder estabelecer normas e condições de trabalho, inovando na ordem jurídica posta pelo Legislativo (com a edição de atos normativos primários, isto é, sujeitos apenas à Constituição, no que toca à sua validade). Com efeito, nas Constituições anteriores a 1988 (de 1946 e de 1967) previam que a lei iria estabelecer os casos em que as decisões nos dissídios coletivos poderiam estabelecer normas e condições de trabalho, ao passo em que a Constituição Federal de 1988 previu apenas que, não obtendo êxito na negociação coletiva ou na arbitragem, as partes poderiam ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica.

O objetivo do constituinte de 1988, ao atribuir competência legislativa ao Judiciário Trabalhista, foi o de acompanhar o "dinamismo das relações econômico-trabalhistas, cuja rápida evolução e alteração nas condições da prestação de serviços exige que a consequente regulamentação jurídica do novo contexto socioeconômico seja também rápida" [21]. Tinha em vista, analisando-se o contexto em que a Constituição foi promulgada (sob os valores do Estado Social – a Constituição Cidadã), efetivar o mencionado ideal socializante de igualdade material, tanto que as decisões deveriam ser tomadas com base na equidade. O Judiciário, estando mais próximo dos conflitos de interesses das categorias e de sua realidade social, estaria mais apto a adequar a realidade jurídica à fático-econômica do que o Legislativo. Com isso, poderia concretizar os referidos ideais de igualdade material do Estado Social, por meio de tutela protetiva, concedida em sede de dissídio econômico.

O escopo do instituto, embora louvável, não foi alcançado a contento por diversas razões e, ainda, o seu mau uso ocasionou consequências indesejadas.

Ives Gandra Martins Filho, após estudo comparativo de ordenamentos jurídicos estrangeiros, aponta como inconvenientes do poder normativo o enfraquecimento da liberdade negocial, na medida em que as partes, sabendo da possibilidade de recurso ao Judiciário, pouco se esforçam para a solução autocompositiva dos conflitos; o desconhecimento pelo Judiciário Trabalhista, das reais condições do setor; a demora nas decisões, o que trinca o âmago do instituto, já que esvazia a sua razão de ser; a generalização das condições de trabalho pelo Judiciário para diferentes atividades econômicas; incompatibilidade com a democracia pluralista e representativa, vez que a intervenção estatal compromete a autonomia sindical; maior índice de descumprimento da norma coletiva, devido à ausência de adequação entre o provimento jurisdicional e a realidade econômica [22].

Além disso, é recorrente a crítica dos estudiosos do assunto, no sentido de que a atribuição de competência legislativa ao Judiciário ofende o princípio da separação dos poderes, já que a função do Judiciário é jurisdicional, e não legiferante, nos termos da teoria de Montesquieu.

A despeito de todos os inconvenientes havidos, e sem olvidar que a solução ideal é autocompositiva [23], no entanto, tem-se que não é a má aplicação do instituto que o torna, em si, ruim. A sua instituição, como visto, ocorreu para o nobre fim de acompanhar com maior eficiência a defasagem entre a norma e o fato social, concretizando os ideais do Estado Social, e, se bem observado, a maioria das críticas que lhe são feitas, são na verdade dirigidas aos operadores que lidam com ele.

O desconhecimento real das condições do setor, por exemplo, é característico dos sujeitos envolvidos com o instituto do poder normativo, e não dele próprio. O desconhecimento é de juízes e também de alguns sindicatos que veiculam pretensões absurdas, olvidando qualquer dado mais sólido de realidade. Solução menos radical para este inconveniente perpassaria pela persecução do conhecimento necessário à justa composição do litígio e pelo diálogo mais aberto e mais profundo entre Estado, sindicatos, empresas e sociedade.

Do mesmo modo a demora nas decisões, é gerada por deficiências estruturais do Poder Judiciário, que padece de sobrecarga de trabalho. Dita deficiência é que acaba forçando a generalização das condições de trabalho e, via de consequência, o maior índice de descumprimento da norma coletiva, vez que a solução adotada revela-se inadequada a determinadas realidades.

Os alegados enfraquecimento da liberdade negocial e o paternalismo decorrente da certeza de que haverá atuação do Poder Judiciário, por sua vez, tampouco constituem desvantagens intrínsecas do instituto, pois o que enfraquece as entidades sindicais é a ausência da efetiva exigência de esgotamento prévio das vias negociais antes do ajuizamento do dissídio, e não o poder normativo em si.

De fato, não obstante a Constituição preveja, desde 1988, que as negociações coletivas tenham sido previamente frustradas, para a admissão do dissídio, a praxe até a EC 45 era de o admitir ao menor sinal de insucesso, sem exigir que as partes insistissem até o esgotamento na negociação. Ora, ao assim proceder, o Judiciário não estava de fato cumprindo com a determinação constitucional, de modo que era a sua atuação indevida que ocasionava o insucesso da representação sindical e não o poder que lhe era atribuído.

Tanto é assim no período iniciado em 1998, em que o Tribunal Superior do Trabalho cancelou precedentes normativos seus e passou a extinguir dissídios por ausência de demonstração do esgotamento das tentativas de negociação coletiva, a atuação normativa foi sensivelmente reduzida [24] e, via reflexa, as negociações coletivas estimuladas.

Aos sindicatos, por sua vez, caberia uma atuação mais séria, tanto no sentido de negociar todo o possível antes de ajuizar o dissídio, quanto no de colaborar para a ciência do julgador, e sua própria, no que toca à realidade da categoria.

Até mesmo a crítica de que a previsão contida no artigo 114, § 2º, da Constituição Federal, com redação anterior à Emenda Constitucional n. 45, ofende à separação dos poderes poderia ser mitigada se vista sob uma ótica pós-moderna, em que o Poder Judiciário assume dimensão bem maior do que aquela que lhe foi atribuída pela teoria montesquiana de mera "boca da lei" [25]. Demais disso, não se pode olvidar que o poder normativo foi exceção ao princípio da separação dos poderes prevista pelo próprio constituinte originário, de modo que – frente o princípio da unidade da Constituição – deve ser com este harmonizado, mesmo sendo-lhe contraditório.

Por fim, não há defeito intrínseco ao poder normativo, nem mesmo no que diz respeito à incompatibilidade com a democracia pluralista e representativa apontada por Ives Gandra Martins Filho, em razão de suas origens corporativistas, porque como visto anteriormente (item 2.1) as origens do poder normativo são anteriores ao regime totalitário italiano. Ainda que fossem corporativas as suas origens, no entanto, o defeito seria passível de ser sanado pela intervenção contida do Judiciário, limitada à proteção apenas e tão-somente necessária à persecução do efetivo equilíbrio entre as partes negociantes das condições laborais.

Assim, vê-se que a crítica que se faz ao poder normativo, no mais das vezes, não é efetivamente relacionada ao instituto, mas àqueles que o aplicam e utilizam, de modo que não serve como argumento para o seu esvaziamento. Doutro modo, ter-se-ia que admitir que outros institutos que não funcionem bem (e que não são poucos), também fossem extintos pela mesma razão.

Contudo, é inegável que, apesar das possíveis (e difíceis) soluções apontadas para a correta aplicação do poder normativo, ele de fato fracassou em atingir o seu escopo de acompanhar as transformações sociais e econômicas concretizando o ideal de igualdade – o que é lamentável, ainda mais se considerar que tampouco o Poder Legislativo, que é quem afinal deveria fazê-lo, é capaz de acompanhá-las [26], dando aos trabalhadores e empregadores normas justas que efetivamente espelhem a realidade juslaboral e econômica. De modo que resta buscar a tutela dos direitos protetivos por outras vias mais efetivas.

2.2 O poder normativo e o pós-positivismo

Pertinente, por derradeiro, algumas considerações de ordem filosófica.

Como adiantado alhures, a teoria clássica da separação dos poderes foi desenvolvida em um contexto liberal de oposição ao absolutismo, em que se objetivava a contenção dos poderes estatais. Para Montesquieu, o julgador seria meramente a "boca da lei", não podendo ir além, para moderar nem a sua força e nem o seu rigor [27]. O pensador temia o abuso do poder de julgar, o qual considera "terrível entre os homens".

Com a consolidação das liberdades conquistadas e a ascensão do Estado Social, mitigou-se o valor então supremo da segurança jurídica e superou-se, no âmbito da filosofia do direito, o chamado positivismo jurídico, adentrando-se na era denominada pós-positivismo.

Desta era, destaca-se o reconhecimento da normatividade dos princípios [28] e a necessidade de adoção de normas mais perenes e duradouras (no caso, os princípios), dado que ao legislador é inviável acompanhar a dinamicidade dos reclamos sociais com o atual processo legislativo, democrático, porém lento.

No pós-positivismo, a transformação do Estado e do Direito, e a consequente a adoção de normas cada vez mais abertas (princípios), ocasionou uma verdadeira transferência de atribuições entre os poderes. Se antes era ao Legislativo que cumpria a detalhada previsão normativa de regras fechadas e inflexíveis, de modo que era dispensável qualquer atividade hermenêutica do julgador, agora, atribui-se a este o papel de dizer o direito no caso concreto, amoldado-o ao contexto em que a lide encontra-se inserida, o que implica a necessidade de uma atuação intelectiva maior do Poder Judiciário, que considere aspectos valorativos e políticos atinentes a cada caso. O Judiciário deixa de ser a mera "boca da lei", e a parca responsabilidade que possuía de atuar como poder nulo, mero repetidor do texto legal, cede espaço à mencionada responsabilidade de dizer o direito efetivamente, dando concretude ao conteúdo vago dos princípios, e efetividade aos direitos previstos pelo Estado Social, os quais, como se sabe, exigem uma atuação positiva, nem que para isso, tenha que intervir em áreas originariamente afetas aos outros poderes (como no caso em que o legislativo não dá conta de acompanhar as transformações sociais, por exemplo).

Aliás, natural que, ampliando-se as atribuições do Estado (Social), ampliem-se também as do Poder Judiciário que adquire, assim, um papel antes inimaginado de intervir incisivamente na atuação dos demais poderes e mesmo nas relações entre particulares, pois, se é responsável por fazer observar as leis e a Constituição, obrigatoriamente deve intervir na atuação dos sujeitos que não as cumprem. Com isso, o Judiciário "resgata o status de legitimidade do ordenamento, uma vez que a existência do Estado de Direito pressupõe o respeito as suas normas" [29]. Tanto que, para Lênio Streck,

As inércias do executivo e a falta de atuação do legislativo passam a poder ser supridas pelo judiciário, justamente mediante a utilização dos mecanismos previstos na Constituição que estabeleceu o Estado Democrático de Direito. Ou isto, ou tais mecanismos legais/constitucionais podem ser expungidos do texto magno [30].

O fato é que, a partir daí, as relações entre os três poderes foram sensivelmente afetadas e a supremacia de que o Poder Legislativo gozava cede espaço ao Poder Judiciário, que agora exsurge como o "terceiro gigante" [31], capaz de frear os outros poderes com o seu poder (o poder freia o poder) e de implementar a concretização dos direitos fundamentais, donde a sua semelhança atual com o sistema de freios e contrapesos americano.

Pois bem. Nessa toada, não há como deixar de traçar um paralelo entre as noções pós-positivistas de atuação judicial com a previsão do poder normativo feita pelo constituinte de 1988. Com efeito, observa-se que a intenção deste, de possibilitar que o acompanhamento normativo das transformações sócio-econômicas fosse mais eficiente e ágil [32], é muito semelhante à intenção daqueles que reconhecem o caráter normativo dos princípios. Isso porque, tanto a concretude dos princípios e quanto o acompanhamento das transformações mencionado, ambos de conteúdo vago e não pré-definido, seria dado pelo Judiciário. A atuação judicial, em um e noutro caso, é muito mais ampla do que aquela que lhe seria possível em um contexto positivista e liberal, e, de certo modo, "invade" um espaço que rigorosamente seria do legislativo, visto que a concretização de sua atuação implica escolhas políticas.

Adamovich, nesse mesmo sentido, assinala que:

A escolha que faz o Tribunal se defere ou não um determinado percentual de reajuste salarial para recompor as perdas provocadas pela carestia aos salários dos empregados de determinada atividade é, em sua essência, da mesma natureza que aquela que faz um juiz ao decidir se interdita ou não certa fábrica que polui o meio ambiente. Em ambas confrontam-se valores, desfrutando o órgão julgador de uma liberdade de escolha político-ideológica maior, na medida em que os preceitos legais explícitos não resolvem direta e imediatamente tão altas indagações [33].

O poder normativo, assim, apesar de todas as críticas, parece ter representado um dos primeiros institutos pós-positivistas, ao lado da normatividade dos princípios. Por meio dele permitia-se uma atuação judicial incisiva e apta a efetivar os valores do Estado Social, na medida em que conferia ao julgador o poder de dizer o conteúdo do princípio protetivo, conforme a realidade sócio-econômica por si aferida com maior precisão. Adamovich menciona que é no exercício das jurisdições de equidade que

encontrar-se-iam o poder normativo nos velhos dissídios coletivos da Justiça do Trabalho, sob uma visão que o liberta de suas feições fascistas, e a nova concepção politizada de jurisdição presente nas ações coletivas de garantia da cidadania. Reunir-se-iam em seus propósitos de construção de uma nova cidadania, a partir da descentralização da função legislativa de governo, com outorga de uma parcela dela ao Poder Judiciário, para adaptá-la à dinâmica estrutural de crise de certas relações sociais, mormente em países economicamente desenvolvidos, porém ainda socialmente retardatários, como o Brasil [34].

Mais uma vez nota-se o desenvolvimento pioneiro do Direito do Trabalho e talvez, paradoxalmente, isso tenha contribuído para o insucesso do poder normativo, na medida em que previsto em um cenário complexo que, de um lado, ainda não foi completamente amadurecido para captar e bem dosar esta transformação e, de outro lado, mostra-se por vezes mais avançado do que as próprias noções pós-positivistas de intervenção judicial, quando se considera que a intervenção estatal chega a ser, em certa medida, desnecessária, dado o avanço da organização sindical que, quando forte (minoria), dispensa a tutela estatal [35].

Por oportuno, cabe destacar que a doutrina do pós-positivismo, atenta ao fato de que um maior poder deve vir acompanhado de maior legitimação, sustenta que a legitimidade das decisões judiciais virá de processos de construção dialógica da decisão judicial [36], calcada em critérios racionais de correção material, aqui entendida como aceitabilidade racional apoiada em argumentos, e pelo abandono do mero cumprimento dos ditames lógico-dedutivos, monologicamente conduzidos [37].

Este foi um dado ignorado pelos aplicadores que se utilizaram do poder normativo – o descumprimento corriqueiro das decisões normativas pela falta de correspondência com a realidade o demonstra – sendo outro fator capaz de explicar o seu insucesso.

2.3 Emenda Constitucional n. 45 de 2004

Diante do insucesso na aplicação do instituto do poder normativo, a reforma do Judiciário levada a cabo pela Emenda Constitucional n. 45 de 2004, acabou por limitá-lo sobremaneira, senão mesmo por esvaziá-lo de todo, ao incluir na redação do artigo 114, § 2º, da Constituição Federal, a exigência de ‘comum acordo’ entre as categorias em litígio para o ajuizamento de dissídio coletivo.

Veja-se o teor do dispositivo citado:

§ 2º Recusando-se qualquer das partes à negociação coletiva ou à arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica, podendo a Justiça do  Trabalho decidir o conflito, respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente

A ideia dos constituintes derivados foi a de fortalecer a representação sindical, por meio do estímulo à autocomposição, considerada melhor que a heterocomposição judicial, no que foram aplaudidos pela maioria dos doutrinadores, dentre os quais Andréa Presas Rocha [38]:

Nos parece que o Legislador Reformador teve em mente a salutar valorização da composição dos conflitos coletivos diretamente pelas partes envolvidas, uma vez que a alteração do texto constitucional privilegia a negociação direta entre os interlocutores sociais, pondo de lado a intervenção estatal, antes aviada pelo poder normativo atribuído à Justiça do Trabalho.

O fato é que, para a maioria dos doutrinadores [39], a nova exigência transformou a disciplina dos dissídios coletivos em um sistema de arbitragem pública, na medida em que exige o consenso dos litigantes na solução do conflito pelo Judiciário, acabando, sem meias palavras, com o alcance primitivo do poder normativo.

2.4 Observações críticas sobre a necessidade de tutela dos grupos trabalhadores nas negociações coletivas, em vista da ausência de equivalência das autonomias privadas coletivas

Consoante a maior parte da doutrina, a extinção do poder normativo, para expurgar de vez a herança corporativista, deveria ter vindo acompanhada da necessária reforma sindical, com o fim da unicidade e da contribuição compulsória, estendendo os benefícios alcançados pelos sindicatos apenas aos seus associados, e, sobretudo, acompanhada do incremento da consciência coletiva dos trabalhadores. Somente desta forma seria possível o efetivo fortalecimento das bases sindicais, agora calcadas em concorrência e na prevalência da mais representativa.

Até que isso ocorra, no entanto, e torne efetiva a autonomia privada coletiva, não há negar a necessidade de intervenção estatal de tutela da parte hipossuficiente, ainda que reunida em associações sindicais.

Observa-se que – sob a bandeira de estimular o fortalecimento dos sindicatos – a alteração constitucional acaba por exigir da classe trabalhadora um nível de coesão que não exige de mais nenhum grupo hipossuficiente da sociedade. Os consumidores, por exemplo, não são obrigados por lei ou pela Constituição a se unirem em grupos para discutirem com seus fornecedores o conteúdo das cláusulas de um contrato de adesão – que lhes é tão imposto quanto um contrato de trabalho –, porque a lei lhes assegura o recurso ao Judiciário para anularem ou diminuírem as cláusulas abusivas, com base no princípio da justiça contratual.

Estas cláusulas, cabe lembrar, no mais das vezes têm conteúdo econômico, senão imediato, ao menos mediato. E nem por isso diz-se que o Judiciário, ao extirpá-las de um contrato de consumo intervém em esfera (econômica) que não lhe é afeta, enfraquecendo o associativismo e criando novas normas para aqueles contratos de adesão. Bem ao contrário, o controle do conteúdo contratual feito pelo Judiciário é festejado como verdadeiro avanço das tutelas coletivas, porque, mesmo quando associados, reconhece-se a hipossuficiência dos consumidores.

Ademais, é oportuno mencionar que o fundamento da intervenção estatal no conteúdo dos contratos padronizados e de adesão, no Direito do Consumidor, que – invariavelmente vai redundar em intervenção no domínio econômico das partes contratantes –, é o princípio da justiça contratual, um dos pilares da moderna ciência contratualista. Este princípio reflete os valores do Estado Social, na medida em que visa à obtenção de um efetivo equilíbrio entre as partes contratantes que são originariamente desiguais (consumidor e fornecedor). No Direito Consumerista, corresponde ao que no Direito do Trabalho representa o princípio da proteção e, tanto quanto o princípio da proteção, representa a especificação daquele valor social de igualdade substancial, na medida em que permite que seja dado tratamento desigual a partes desiguais (consumidor e trabalhador são hipossuficientes), realizando o ideal de equidade. Tanto lá, como cá, há uma parte hipossuficiente que necessita da proteção estatal, ainda quando unida em associações, pois estas nem sempre são capazes de restabelecer a igualdade material entre as partes. Substancialmente, as intervenções em um e noutro domínio são da mesma natureza.

E o poder normativo, mais do que simplesmente promover a intervenção estatal na liberdade sindical concretizando ideais corporativistas de controle da atividade sindical, tinha o fito de garantir esta proteção, na medida em que – ao autorizar a intervenção estatal na obtenção de uma negociação justa – permitia que as negociações coletivas fossem dotadas de um razoável equilíbrio, concretizando o ideal de igualdade material do Estado Social em que ele se originou, à semelhança do que ocorre com o princípio da justiça contratual.

Tanto esta observação é pertinente que Marcus Orione Gonçalves Correia [40] chama atenção para o fato de que disciplinas inspiradas no Direito do Trabalho, como o Direito Contratual e o Processo Civil Coletivo, permitiram-se incursões mais incisivas, no sentido de ultrapassar concepções liberais, do que o próprio Direito do Trabalho. Leciona o mencionado autor:

Desta forma, cremos que as diversas conquistas obtidas pelo Direito comum, no que concerne aos fenômenos coletivos, merecem servir como revitalizante para o Direito laboral, que deve repensar suas estruturas coletivas. É inadmissível que o Direito Civil se tenha permitido incursões fora da ultrapassada concepção liberal, e o Direito do Trabalho, que primeiro prestigiou as relações coletivas, se tenha acomodado em torno de conquistas que não atendem mais a estas mesmas relações no seu campo específico de atuação.

Ora, se tanto lá, no Direito do Consumidor (que foi inspirado no Direito do Trabalho), como cá, no Direito do Trabalho, há intervenção estatal no domínio negocial das partes – pois não há negar que o Judiciário intervém nesse domínio quando exclui ou diminui o conteúdo das cláusulas contratuais – por que apenas a intervenção da Justiça Laboral é considerada nociva ao incremento da chamada sociedade civil organizada, notadamente quando se considera que os sindicatos já representam sua mais avançada forma? É dizer, se os sindicatos já representam o que há de mais consolidado em termos de sociedade civil organizada, não há por que impedir que eles recorram ao Judiciário para obterem tutela que garanta o equilíbrio efetivo das negociações coletivas, como ocorre no âmbito consumerista o qual, repete-se, inspirou-se na disciplina laboral.

Está-se lhes exigindo que tenham força equivalente a das empresas, mas parece-se olvidar o fato de que, pelo menos no Brasil, persistem hipossuficientes, necessitando da tutela estatal [41]. Com efeito, não se pode deixar de ter em conta a complexidade do cenário trabalhista no Brasil, em que coexistem em um mesmo cenário (poucos) sindicatos fortes o bastante para se igualarem em poder de barganha às empresas ou sindicatos de categoria econômica e (muitos) sindicatos que não possuem, ainda, o mesmo alcance jurídico-econômico que os sindicatos patronais.

Isso se deve não apenas à má-vontade na gestão sindical dos trabalhadores, mas principalmente à falta de consciência associativista que, aliás, não surpreende, na medida em que em todas as demais áreas de interesse (no Brasil), e não só na trabalhista, não há coesão social suficiente para o implemento da chamada sociedade civil organizada, esta sim capaz de reivindicar, do Estado e das demais instituições (empresas, escolas, igreja), seus interesses com efetividade.

Quando tal existir de modo efetivo, aí sim não haverá mais necessidade de que o Estado intervenha no sentido de tutelar os interesses de grupo, como objetivado pela reforma constitucional que extinguiu o poder normativo em suas feições originais, pois eles próprios conseguirão seus objetivos de forma negociada. Haverá, então, um neoliberalismo legítimo, em que a presença do Estado é menor, mas em razão da real desnecessidade de intervenção, e não porque foi imposta por lobbies econômicos politicamente vitoriosos.

Até que isso ocorra, no entanto, isto é, até que todos os sindicatos tenham o poder de barganha razoavelmente equivalente ao dos empregadores e sindicatos econômicos, e tornem efetiva a autonomia privada coletiva [42], é necessária a intervenção do Estado, sob pena de desequilíbrio ainda maior de relações que já são, em si, desequilibradas.

Na companhia de Eduardo Henrique Raymundo von Adamovich, pode-se dizer, portanto, que

Não é o poder normativo, que é um dos elementos especializadores da jurisdição trabalhista, em si mesmo, como se viu, um instrumento autoritário, uma vez que pode também ser usado em direção ao pluralismo jurídico e pelo próprio Estado, para a tutela dos chamados ‘excluídos’, quando estes não tenham organização e expressão política bastante para participarem de processos livres de negociação, não numa postura paternalista que põe toda a autonomia coletiva sob controle governamental, mas o equilibrado reconhecimento da liberdade a quem pode exercê-la e da tutela a quem dela precisa. (...)

Sendo efetiva tal autonomia (coletiva), como pode acontecer, v.g., com a feitura de reformas constitucionais que permitam a promulgação e a efetiva vigência entre nós da Convenção 87, da Organização Internacional do Trabalho, poder-se-á pensar na autotutela negociada e no amadurecimento de tais relações coletivas do trabalho no Brasil, mas ainda assim, é sempre bom não esquecer do enfraquecimento da atividade sindical que é produto da fragmentação dos interesses, das tecnologias e formas de trabalho e, sobretudo, do novo modo de produção capitalista, que deixa largos contingentes de pessoas à margem de qualquer espécie de tutela, inscrevendo-as, portanto, entre aquelas que só se põem tutelas com o exercício pelos órgãos do Estado ou representativos da cidadania de suas funções institucionais na defesa daquelas coletividades [43].

Vólia Bonfim Cassar esclarece, também a este propósito, que

hoje o direito do trabalho vive em uma fase de transição, onde se questiona o paternalismo estatal a intervenção estatal em regras privadas. Alguns pretendem a total desregulamentação (...) outros, apesar de reconhecerem algumas mudanças no direito do trabalho, ainda percebem que o Brasil ainda não pode ser visto como país que efetivou o welfare state (o bem estar social). O Brasil ainda tem trabalho escravo ou em condições análogas, ainda tem exploração do trabalho do menor, condições subumanas de trabalho e legislação trabalhista muito desrespeitada. Por isso, não se pode defender o total afastamento do Estado desta relação privada, não se pode pretender a privatização dos direitos trabalhistas, o retrocesso de um grande avanço conquistado a duras penas. Neste sentido os princípios constitucionais visto como norma de eficácia plena, da proteção ao trabalhador (art. 7º, caput) e o da função social da empresa (art. 170) devem limitar a onda de flexibilização que vem contaminando os tribunais trabalhistas e a legislação [44].

Resta, assim, buscar a admissão de instrumentos de tutela alternativos que sejam capazes de, tanto quanto o dissídio coletivo, tutelar o princípio da proteção nas negociações coletivas. Um destes instrumentos é a ação civil pública, que será vista adiante, que, se não é capaz de obter a mesma tutela potencialmente alcançável pelo dissídio, pode obter outra semelhante e, quiçá, até mais efetiva. Aliás, se há algum fundamento para o esvaziamento do dissídio coletivo, este seria a possível existência de instrumento mais eficaz a suprir a sua falta.

2.5 Exame da constitucionalidade da exigência do comum acordo

Concorde-se ou não com a extinção do poder normativo [45], não há como dizê-la inconstitucional.

A defesa da sua constitucionalidade ou inconstitucionalidade vem sendo feita pela doutrina conforme se o considere o poder normativo exercício de função jurisdicional ou não. Aqueles que consideram que a exigência de comum acordo viola a CF por malferimento do princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário (art. 5º, XXXV, da CF), o fazem considerando que a atuação do Poder Judiciário na solução dos dissídios coletivos é jurisdicional. Aqueles que, ao contrário, consideram-na constitucional, o fazem tendo em conta a faceta legiferante presente nesta modalidade de heterocomposição: uma vez que o Judiciário atua de forma atípica ao julgar dissídios coletivos de natureza econômica, não estaria no exercício da jurisdição, e, portanto, esta atividade poderia ser extinta, já que somente a jurisdição é inafastável.

Como se sabe, a sentença normativa tem natureza híbrida. Nos dizeres de Carnellutti "tem alma de lei e corpo de sentença" [46]. Não há como desconsiderar que possui duas faces, pena de apreciação incompleta da questão: a face sentencial, que representa o exercício do poder jurisdicional típico de solução do conflito de interesses; e a face legal, que representa o exercício atípico de função legislativa pelo Judiciário.

E de fato, ao considerar a exclusão do Poder Normativo sob a ótica dispositiva (de criar novas normas e condições de trabalho) não há como deixar de a reconhecer como constitucional, vez que não se trata de exercer jurisdição, esta sim inafastável. Deve-se ter em conta que subtrair a possibilidade de legislar ao Poder Judiciário não ofende, em si, o princípio da inafastabilidade, que é voltado à atividade jurisdicional em decorrência do monopólio da jurisdição que o Estado chamou para si. Ou seja, o que não pode ser subtraído do Judiciário é a sua atividade judicante e não legiferante, como ocorre no estabelecimento de novas normas.

Todavia, ao considerar-se a sua face jurisdicional de solucionador de conflitos, tem-se que a medida somente se coaduna com o princípio da infastabilidade do Poder Judiciário na medida em que haja outro, ou outros, instrumento de tutela coletiva, tão efetivo quanto o dissídio coletivo e que garanta o recurso ao Estado-juiz para a solução dos conflitos de interesses coletivos.

E, considerando que de fato existem outros instrumentos que garantam a solução de conflitos de interesses trabalhistas coletivos, consubstanciado essencialmente na ação civil pública que será estudada adiante, não é possível vislumbrar a inconstitucionalidade da exigência de comum acordo, ainda que excluído o poder legiferante atipicamente atribuído ao Poder Judiciário Trabalhista, já que, como visto, uma vez que este não integra a atividade jurisdicional, é passível de ser afastado ou diminuído.

Sobre a autora
Bruna Bonfante

Servidora pública do Tribunal de Justiça de Santa Catarina

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BONFANTE, Bruna. Dissídio coletivo, ação civil pública e a efetivação do princípio protetivo nas negociações coletivas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2214, 24 jul. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13209. Acesso em: 23 dez. 2024.

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