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Sobre a criminalização da "violação de prerrogativas do advogado".

Paleorrepressão de sentido impróprio

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4. INCONSTITUCIONALIDADE. PREVISÃO TÍPICO-PENAL ALHEIA AO PROGRAMA PENAL DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

Bem se sabe que o Direito Penal deve ter natureza fragmentária. Isso é mais verdadeiro quanto se vive sob a égide de um Estado Democrático de Direito, como é o caso. Logo, o legislador infraconstitucional não pode, ao seu inteiro talante, "decidir" o que deva ou não ser criminalizado no Brasil. Não se poderia, p.ex., "criminalizar" a conduta consistente em praticar tal ou qual ato libidinoso, quando os parceiros, maiores e capazes, deliberam consensualmente praticá-lo. Tampouco se poderia "criminalizar" o ato de pertencer a tal ou qual torcida uniformizada. Nem mesmo se pode criminalizar, no Brasil, o próprio incesto, se consentido por pessoas maiores, livres e capazes. Isso porque todos esses aspectos, se têm relevância na perspectiva ético-social ou sociocultural, são irrelevantes do ponto de vista constitucional, notadamente à mercê da primazia das liberdades na Carta de 1988.

Dito de outro modo, há um programa penal constitucional ínsito à Constituição da República Federativa do Brasil, ao qual deve se ater o legislador ordinário. Nem todas as condutas sociais são passíveis de criminalização, ao bel-prazer do legislador; há, também aqui, limites mais ou menos claros. Só se podem criminalizar condutas que lesem ou ameacem de lesão bens jurídicos com estrito status constitucional (vida, honra, liberdade, propriedade, segurança coletiva, probidade administrativa, etc.); outros aspectos, sem explícita dimensão tuitivo-constitucional (como, p.ex., orientações sexuais ou político-ideológicas, tradições culturais, meras prerrogativas profissionais, etc.), não admitem criminalização em tese.

Nesse diapasão, lê-se, em CLAUS ROXIN, que

"El punto de partida correcto consiste en reconocer que la única restricción previamente dada para el legislador se encuentra en los principios de la Constitución. Por tanto, un concepto de bien jurídico vinculante políticocriminalmente sólo se puede derivar de los cometidos, plasmados en la Ley Fundamental, de nuestro Estado de Derecho basado en la libertad del individuo, a través de los cuales se le marcan sus límites a la potestad punitiva del Estado. En consecuencia se puede decir: los bienes jurídicos son circunstancias dadas o finalidades que son útiles para el individuo y su libre desarrollo en el marco de un sistema social global estructurado sobre la base de esa concepción de los fines o para el funcionamiento del propio sistema. [...] De tal concepto de bien jurídico, que le viene previamente dado al legislador penal, pero no es previo a la Constitución, se pueden derivar una serie de tesis concretas". [05]

ROXIN segue apresentando as teses concretas derivadas da estrita vinculação do bem jurídico-penal face à Constituição, pontuando que não podem ser objeto do Direito Penal, por implícita vedação constitucional, (a) as cominações penais arbitrárias (como, e.g., exigir que os cidadãos tributem reverência a um símbolo qualquer); (b) as meras imoralidades (como, e.g., práticas sexuais atípicas, desde que consentidas entre pessoas maiores, livres e capazes); (c) as finalidades puramente ideológicas (como lamentavelmente houve, ao tempo da Alemanha nazista, com vistas a tutelar a "manutenção da pureza do sangue alemão"); e (d) os preceitos penais que criam ou asseguraram desigualdades entre iguais. [06]

Nessa linha, pode-se reconhecer a inconstitucionalidade do PLC n. 83/2008 ao menos por dois motivos:

(i) criminalizar-se-á onde, a rigor, não se pode criminalizar, pois as prerrogativas gerais dos advogados ― à diferença das prerrogativas judiciais (artigo 95 da CRFB) ― não tem status constitucional expresso, à exceção da inviolabilidade por atos e manifestações no exercício da profissão (i.e., um aspecto muito específico do rol geral de prerrogativas legais), e, ainda assim, nos limites da lei ordinária (artigo 133 da CRFB);

(ii) promover-se-á preceito penal que assegurará a desigualdade entre iguais, já que não existem "crimes de violação de direitos e prerrogativas profissionais" para outras tantas categorias de profissionais liberais, como médicos, engenheiros, contadores, etc. (e que, não raro, têm também "prerrogativas"; assim, e.g., a do médico, enquanto testemunha, em silenciar quanto ao estado de saúde de seus pacientes ― artigo 207 do CPP ―, ou a de não servir no tribunal do júri em caso de necessidade de dispensa ― artigo 436, par. único, XI, "a", 1ª parte, do CPP).

Com efeito, até por uma questão de isonomia (artigo 5º, caput, da CRFB), a criminalização das condutas violadoras de direitos e prerrogativas profissionais de advogados renderá ensejo a que, no futuro próximo, todas as outras profissões que, em alguma circunstância, detenham direitos especiais ou prerrogativas, venham a reclamar, no Congresso Nacional, a aprovação de leis disciplinando os respectivos crimes de violação. Isso para não falar das prerrogativas republicanas, ínsitas aos membros da Magistratura e do Ministério Público, que detêm inclusive assento constitucional e, todavia, não são objeto de norma penal específica. Tudo a demonstrar que, no programa penal da Constituição de 1988, os direitos e prerrogativas profissionais liberais não admitem tutela penal estrita, por opção sistemática do legislador constituinte.

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5. CONFLITO DA CONDUTA CRIMINALIZADA COM A IMUNIDADE DE EXERCICIO PROFISSIONAL DE MAGISTRADOS, MEMBROS DO MINISTÉRIO PÚBLICO E ADVOGADOS

Doutro turno, é notório que o ordenamento jurídico estabelece imunidades no exercício profissional a diversos responsáveis pela administração da Justiça, dentre outros.

"In casu", os agentes públicos envolvidos com a aplicação da Justiça têm, pela própria natureza de suas atribuições, imunidade no exercício das mesmas. Do contrário, o membro do Ministério Público que promove a denúncia-crime e acusa alguém da prática de certo ilícito penal veria sobre si, em todo caso, pender a espada de Dâmocles: absolvido o réu (mesmo que por insuficiência de provas), poderia ser processado e julgado por calúnia. O mesmo raciocínio se aplicaria ao Juiz que proferiu a sentença condenatória por crime e que veio a ser reformada por razões quaisquer. Não por outra razão, dispõe o artigo 41 da LOMAN que, "salvo os casos de impropriedade ou excesso de linguagem, o magistrado não pode ser punido ou prejudicado pelas opiniões que manifestar ou pelo teor das decisões que proferir". Também não escapariam dessas conseqüências nefastas os advogados, quando assistentes de acusação ou patrocinadores de queixas-crimes, se não lhes aproveitasse a imunidade do artigo 133,"in fine", da CRFB.

Por isso é que o ordenamento jurídico constitucional e legal reconhece a imunidade nestas atividades, inclusive para o advogado, sendo certo que o próprio Estatuto da OAB assegura ao advogado a prerrogativa de não ser processado por crimes contra a honra praticados no exercício da atividade profissional (artigo 7º, §2º).

Ocorre que diversos dos direitos e prerrogativas previstos em lei para os advogados são objeto de controvérsia quanto ao seu alcance e forma de aplicação, até mesmo por serem genéricos e insuficientemente descritivos.

Nesse encalço, são recorrentes os casos em que o juiz, o membro do Ministério Público, a autoridade policial, demais autoridades da Administração Pública e, por vezes, parlamentares, especialmente nas comissões de inquérito, interpretam de um ou de outro modo a prerrogativa ou direito invocado pelo advogado.

Acaso aprovada a lei, verificando-se nas instâncias competentes que a interpretação dada pelo juiz, pelo membro do Ministério Público ou pelo parlamentar foi equivocada e que o direito do advogado foi realmente violado, o agente público seria naturalmente processado, podendo ser a final condenado por crime de violação de prerrogativa. Quanto aos crimes contra a honra, p.ex., há fundada doutrina entendendo que a inviolabilidade do artigo 133 da CRFB e do artigo 7º, §2º, da Lei 8.906/94 não alcança os notórios excessos, absolutamente desnecessários para a defesa profissional dos interesses do cliente (como quando, p.ex., se assacam contra o juiz ou o promotor palavras de baixo calão, em audiência ou em petições). Veja-se, a propósito, o escólio de FÁBIO MEDINA OSÓRIO [07] e de CEZAR ROBERTO BITENCOURT [08] (que hoje pertence ao Conselho Federal da OAB); ou, ainda, o próprio teor da ADIn n. 1127-8, em cujo bojo exarou-se liminar suspendendo a eficácia do artigo 7º, §2º, do Estatuto do Advogado, na parte que incluía o desacato entre as hipóteses de imunidade processual dos advogados.

Exemplos ingentes dessa situação (incerteza quanto ao conteúdo das normas que estatuem direitos ou prerrogativas a advogados) dá-se ao ensejo das próprias CPI´s, em que há usualmente sérios limites à participação do advogado, como também ao ensejo do julgamento de certas modalidades de recursos nos tribunais, quando a lei ou os regimentos não prevêem a possibilidade de manifestação de advogados. Não se franqueando a palavra ao patrono, dar-se-á o novel crime?

A se reconhecê-lo, estaríamos diante do odioso "crime de hermenêutica", incriminando-se a conduta do juiz, do delegado de polícia, do parlamentar ou de qualquer outro que viesse a interpretar a legislação com independência técnica, no exercício de sua função. Apenas por ousar interpretar o sistema em desfavor de um advogado, estar-se-ia sujeito à sanção penal, desde que o entendimento perfilhado não prevalecesse em superior instância... Nada mais absurdo.


6. INCONVENIÊNCIA DA POLÍTICA GENERALIZADA DE CRIMINALIZAÇÃO DE CONDUTAS BANAIS – PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO PENA MÍNIMA

Não bastasse, impende recordar que estamos em tempos de Direito Penal mínimo. E é assim notadamente porque o sistema penal contemporâneo revelou-se gravemente ineficaz em relação a seus escopos primeiros (tutela de bens jurídicos de máxima relevância e pacificação social). Disse-o, com muita felicidade, o há pouco finado ALESSANDRO BARATTA, com todo o traço humanista que lhe era peculiar (veja-se, a respeito, Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal, passim [09]). Nessa linha, a política de criminalização generalizada de condutas jamais é vista com bons olhos pelos estudiosos da ciência criminal; e, já por isso, causou espécie que entidades de renome na seara penal e processual penal, como o INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS - IBCCrim, que noutros ensejos cerrou fileiras para a crítica à legislação paleorrepressiva, houvesse agora silenciado a respeito do malfadado PL n. 83/2008.

Na verdade, a pretendida "lei de violação de prerrogativas", no afã de dar mais efetividade às garantias e prerrogativas dos advogados, criminaliza condutas banais, de somenos relevância social. No limite, até mesmo questões contratuais relativas a honorários, entre os próprios advogados, poderiam render discussões na órbita criminal, tomando-se por "vítima" aquele que não recebesse o que lhe estaria assegurado pelo ordenamento legal. Da mesma forma (como já ilustrado supra), qualquer modo de tratamento "não urbano" dispensado ao causídico, como também a omissão de atendimento pessoal ao advogado ou, ainda, a violação mesma de direitos do advogado empregado (não raro pelo próprio advogado-empregador), poderiam, em tese, configurar "crimes".

Como se vê, passa-se da esfera de ilícito administrativo, civil e trabalhista, ou por vezes da mera irregularidade processual, para a esfera punitiva do Direito Penal, com uma fúria que é, "venia concessa", injustificável. Esta política fere a lógica do razoável e o principio da proporcionalidade; fere, pois, o Princípio da Intervenção Mínima, tão caro ao Direito Penal democrático.

Se as normas de direito "não-penal" bem resolvem o contexto conflitivo, com amplo amparo civil, processual e administrativo (para isso, as corregedorias dos Tribunais, das polícias civis e militares e do Ministério Público), não há porque o Estado adotar medidas extremas, tornando "criminosa" toda violação de direito, ainda que verdadeira. O Direito Penal deve ser reservado para as condutas ilícitas mais graves do meio social, i.e., aquelas que trazem em si afetações qualificadas aos bens jurídicos de máxima relevância jurídico-constitucional (supra, tópico n. 4).

O novo tipo penal, assim genérico e aberto, virá apenas para confundir os operadores na interpretação das normas penais existentes; ou, para mais, servirá para lhes retirar a efetividade social, ante a banalização do manejo criminal em tal seara.


7. INIBIÇÃO CONCRETA DAS AUTORIDADES NA ATUAÇÃO DE COMBATE AO CRIME ORGANIZADO

O tema da violação de prerrogativas ganhou evidência com os diversos episódios da história nacional recente, amplamente divulgados na mídia, e as sucessivas investigações que envolveram autoridades do Estado, inclusive magistrados, parlamentares, membros do Ministério Público e advogados.

Observa-se que não houve grande reserva ou mobilização de magistrados e de outras autoridades, como categorias organizadas, quando, por ordem judicial, algumas delas sujeitaram-se a medidas de busca e apreensão e similares, colimando-se sempre a garantia da prova em processos envolvendo o crime organizado (assim, p.ex., na «Operação Hurricane», durante a qual chegaram a ser devassadas residências e gabinetes de desembargadores). Nem mesmo no Parlamento chegou a haver tamanha indignação contra os procedimentos realizados por determinação judicial, com observância das normas legais e dentro dos parâmetros do Estado de Direito, inclusive em gabinetes de deputados federais.

Houve, todavia, desproporcional clamor das entidades dos advogados, sobretudo em relação a toda e qualquer ordem judicial dirigida à devassa de escritórios ou residências de advogados, a despeito de haver ou não fundada suspeita de envolvimento em crimes.

Por certo, a criminalização da conduta de "violação de prerrogativa e direito de advogado" tem o mesmo efeito prático da famigerada "lei da mordaça", contra a qual outrora se bateu, aliás veementemente, a própria OAB. Seria uma "lei de peias" para a autoridade judicial, que, caso emitisse ordem judicial fundada em sua convicção de verossimilhança, visando à garantia de provas, estaria sempre "ameaçada" de, no futuro, ver-se processada criminalmente, desde que sobreviesse a absolvição do advogado envolvido (mesmo que, insista-se, a absolvição se desse na forma do artigo 386, VI, do CPP...).

Com isso, emerge um inexorável efeito colateral dessa lei: o flagrante papel inibitório na ação de autoridades judiciais, membros do Ministério Público e policiais, especialmente nas operações de investigação do crime organizado. E o que é pior: efeito inibitório em prol de uma única categoria profissional, com evidente violação à isonomia constitucional.

Evidentemente, jamais foi esse o propósito da Ordem dos Advogados do Brasil ao eriçar, com tal estridência, a bandeira do PL n. 83/2008. Entretanto, ao cabo e ao fim, uma vez aprovada, tal lei poderá chegar ao extremo de facilitar e estimular a prática do crime organizado, em todas as suas modalidades (narcotráfico, tráfico de armas, lavagem de dinheiro, crimes contra a administração pública, etc.), pela via insuspeita do recurso aos "serviços advocatícios", cooptando-se para tanto advogados desonestos, que contariam com novel escudo normativo para ocultar as suas atividades ilícitas, em flagrante desvio de finalidade da norma.

Dito de outro modo, a inconteste boa-fé da expressiva maioria dos advogados brasileiros, como ainda a do próprio legislador federal que agora faz coro com os desideratos de liberdade institucional daquele ofício, poderiam servir instrumentalmente à tutela do crime, não dos direitos de defesa.

Sobre os autores
Saulo Fontes

Juiz Titular da 2ª Vara do Trabalho de São Luís do Maranhão. Mestre pela Universidade Federal de Pernambuco. Membro da Comissão Legislativa da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA).

Guilherme Guimarães Feliciano

Professor Associado II do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Juiz Titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté/SP. Doutor pela Universidade de São Paulo e pela Universidade de Lisboa. Vice-Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – ANAMATRA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FONTES, Saulo; FELICIANO, Guilherme Guimarães. Sobre a criminalização da "violação de prerrogativas do advogado".: Paleorrepressão de sentido impróprio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2219, 29 jul. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13242. Acesso em: 22 nov. 2024.

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