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Leis municipais: controle abstrato de constitucionalidade

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Agenda 10/08/2009 às 00:00

6. NOÇÃO DE PRECEITO FUNDAMENTAL

Nem a Constituição nem a lei dizem o que é preceito fundamental. A primeira limita-se a prescrever que a arguição de seu descumprimento é da competência do STF; a segunda, que essa arguição tem por objeto evitar ou reparar lesão a preceito dessa natureza.

Preceito é norma, regra, ordem, determinação. A Constituição é o conjunto basilar das normas e regras do sistema jurídico. Sob esse aspecto, qualquer disposição constitucional poderia ser compreendida como preceito fundamental, porque as normas constitucionais consubstanciam os alicerces do ordenamento jurídico. Mas se toda e qualquer norma constitucional pudesse ser, para essa finalidade, considerada preceito fundamental, então o enunciado do art. 102, § 1°, da Constituição, compreenderia toda e qualquer disposição da Lei Maior e a ADPF se confundiria com outras ações de índole constitucional, especialmente com a ADIN e a ADC.

Fundamental é o que serve de base, que é essencial, necessário, indispensável. É o que não deve faltar, que não pode ser acidental.

Se não podemos, sob esse enfoque, reputar como preceito fundamental toda e qualquer norma constitucional, impõe-se restringir sua noção àquelas que servem de pilares estruturantes do ordenamento constitucional, às que constituem o suporte do sistema, às que se identificam com o solo firme sobre o qual ele se apóia.

Para Luís Roberto Barroso [05], que sinaliza para "aquelas que se singularizam por seu caráter estrutural ou por sua estatura axiológica", sua noção "importa o reconhecimento de que a violação de determinadas normas – mais comumente princípios, mas eventualmente regras – traz consequências mais graves para o sistema jurídico como um todo". Esse autor cita, exemplificativamente, as normas que albergam "os fundamentos e objetivos da República, assim como as decisões políticas estruturantes, (...) agrupados sob a designação geral de princípios fundamentais" (arts. 1° a 4°), "os direitos fundamentais (...), o que abrangeria, genericamente, os individuais, coletivos, políticos e sociais" (art. 5°e seguintes), "as normas que se abrigam nas cláusulas pétreas (art. 60, § 4°) ou delas decorrem diretamente", bem como "os princípios constitucionais ditos sensíveis (art. 34, VII), que são aqueles que por sua relevância dão ensejo à intervenção federal" [06].

Célio Armando Janczeski [07] também se refere a rol semelhante de preceitos fundamentais, incluindo os princípios da ordem econômica (art. 170) e da ordem tributária (art. 145 e seguintes).

José Afonso da Silva [08] conceitua-os como "aqueles que conformam a essência de um conjunto normativo constitucional" (...), "que conferem identidade à Constituição". Para ele os preceitos fundamentais "diferenciam-se dos demais preceitos constitucionais por sua importância, o que se dá em virtude dos valores que encampam e de sua relevância para o desenvolvimento ulterior de todo o Direito".

Embora a doutrina desempenhe papel relevante quanto à conceituação do que se deva entender por preceito fundamental, certo é que o STF já decidiu, por votação unânime, ser de sua competência "o juízo acerca do que se há de compreender, no sistema constitucional brasileiro, como preceito fundamental" (ADPF 1-7-RJ, DJU de 7.11.2003). Nesse precedente, o princípio fundamental que o arguente teve por violado era o da separação de poderes (CR, art. 2°), que o tribunal não questionou como tal. A arguição não foi conhecida, mas o fundamento de tal decisão repousou na natureza do ato considerado como infringente de preceito fundamental: o tribunal entendeu não ser "enquadrável, em princípio, o veto, devidamente fundamentado, pendente de deliberação política do Poder Legislativo – que pode, sempre, mantê-lo ou recusá-lo, – no conceito de ato do Poder Público, para os fins do art. 1°, da Lei n° 9.882/1999". Dessa forma, não há como fugir à realidade: preceito fundamental é ou será aquele que o STF definir como tal.


7. INEXISTÊNCIA DE OUTRO MEIO EFICAZ

Estabelece o § 1°, do art. 4° da Lei 9.882/1999, ser inadmissível a ADPF "quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade". Ou seja, se existir no ordenamento jurídico instrumento processual apto a remediar o dano, não cabe a propositura da ADPF.

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Excluídas as exegeses radicais [09] e para que a ADPF não se transforme em instrumento sem valia e eficácia, deve-se interpretar o preceito legal restritivo de forma a evitar a inutilidade do mecanismo de controle abstrato previsto no § 1° do art. 102 da Constituição.

Qual a compreensão que se deve dar à expressão "outro meio eficaz de sanar a lesividade"? Se a ela se der alcance que englobe as diversas ações que o ordenamento processual contempla, inclusive aquelas de origem constitucional (v.g., mandado de segurança, mandado de injunção, habeas corpus, habeas data), certamente a ADPF jamais será admissível, porque dificilmente se imaginaria uma lesão para a qual não houvesse remédio processual tendente a evitá-la ou repará-la. Interpretação dessa amplitude torna inócua a norma constitucional, porque ignora a prescrição de que para a defesa da integridade dos preceitos fundamentais existe a ADPF e de que a competência para decidi-la cabe ao STF. O constituinte não ignorava, certamente, que o ordenamento jurídico, notadamente o direito processual, contempla a possibilidade de qualquer lesão ser passível de deslinde pelo Poder Judiciário, tanto que o inciso XXXV, do art. 5° da Constituição veda, terminantemente que a lei exclua de sua apreciação lesão ou ameaça a direito.

Nesse quadro, se o constituinte instituiu remédios processuais próprios para o desate judicial de determinadas ofensas ao ordenamento jurídico e também criou a ADPF com a finalidade por ele preceituada, esta não se subordina àqueles nem pressupõe o esgotamento dos respectivos trâmites processuais. Não parece razoável, portanto, pretender sujeitar a admissibilidade da ADPF à inexistência de qualquer outro meio processual hipoteticamente hábil à reparação da lesão a preceitos fundamentais.

De outra parte, o legislador ordinário também não subordinou a admissibilidade da ADPF ao vácuo processual; caso o tivesse feito, cometeria afronta ao próprio § 1°, do art. 102 da Constituição. A prescrição legal inadmite a ADPF única e exclusivamente se "houver outro meio eficaz de sanar a lesividade" e não qualquer outro meio. Nos termos da lei, é cabível a concessão de medida liminar na ADPF, inclusive por decisão individual do relator ad referendum do tribunal, podendo essa decisão cautelar "consistir na determinação de que juízes e tribunais suspendam o andamento de processos ou os efeitos de decisões judiciais, ou de qualquer outra medida que apresente relação com a matéria objeto da arguição de descumprimento de preceito fundamental, salvo se decorrentes de coisa julgada" (art. 5°). A decisão proferida pelo tribunal, para a qual se exige quorum qualificado (art. 8°), deve fixar "as condições e o modo de interpretação e aplicação do preceito fundamental" e "terá eficácia contra todos e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Público" (art. 10). Que outro mecanismo processual existe apto a produzir eficácia semelhante à da ADPF? Em outras palavras, qual o juiz ou tribunal dotado de poder jurídico capaz de suspender o andamento de processos ou os efeitos de decisões judiciais ainda não transitadas em julgado e que possa proferir decisão cujos efeitos se irradiam contra todos e vinculam o Poder Público?

O outro meio eficaz de sanar a lesividade, cuja existência seria capaz de obstar a admissibilidade da ADPF, haverá de ser um remédio processual com a idoneidade de produzir os efeitos que a ADPF pode desencadear. O parâmetro de eficácia do outro meio referido pela lei há de ser a própria ADPF, isto é, esse outro meio obstativo da admissibilidade da arguição deve ser dotado, pelo menos em tese, de eficácia idêntica à da ADPF. Não basta que existam outros instrumentos ou mecanismos processuais hábeis à discussão da ofensa a preceito fundamental; é indispensável que eles possuam eficácia assemelhada à da ADPF. É o que pode ocorrer, por exemplo, em relação à ADIN e ou à ADC, às quais, dadas as circunstâncias de cada caso, podem representar outro meio eficaz de sanar a lesividade, impedindo, destarte, a propositura da ADPF.

Essa regra legal está fadada a causar muito polêmica e, quiçá, decisões em diversos sentidos. Num dos casos apreciados, o STF asseverou que "a mera possibilidade de utilização de outros meios processuais, contudo, não basta, só por si, para justificar a invocação do princípio da subsidiariedade, pois, para que esse postulado possa legitimamente incidir – impedindo, desse modo, o acesso imediato à arguição de descumprimento de preceito fundamental – revela-se essencial que os instrumentos disponíveis mostrem-se capazes de neutralizar, de maneira eficaz, a situação de lesividade que se busca obstar com o ajuizamento desse writ constitucional" [ADPF 17 (AgRg) - AP, RTJ 184/373]. No voto proferido, o relator, Ministro Celso de Mello, referiu-se a outras decisões que, em atenção ao dito princípio da subsidiariedade, não conheceram das argüições propostas (ADPF 3-CE, ADPF 18-CE, ADPF 12-DF, ADPF 13-SP). No caso por ele relatado, o Ministro Celso de Mello acompanhado pela unanimidade de seus pares, também não conheceu da arguição [10], porque "no caso destes autos, ante a exposição objetiva dos fatos e fundamentos jurídicos do pedido, mostra-se evidente que há outros meios processuais – notadamente a ação popular constitucional – cuja utilização tornará possível neutralizar, em juízo, de maneira inteiramente eficaz, o estado de suposta lesividade decorrente dos atos ora impugnados" (RTJ 184/379). Data vênia, não é a ação popular instrumento processual capaz de impedir a propositura de ADPF, se os demais requisitos desta estiverem satisfeitos, porque a ação popular não é dotada de eficácia similar à arguição.


8. A COMPETÊNCIA MUNICIPAL

O art. 30 da Constituição arrola as matérias de competência municipal. Entre elas destacam-se a de "legislar sobre assuntos de interesse local" (inciso I), a de "instituir e arrecadar os tributos de sua competência" (inciso III), cujo elenco está previsto no art. 156 (impostos sobre a propriedade predial e territorial urbana, sobre transmissão onerosa inter vivos de bens imóveis e sobre serviços definidos em lei complementar), a de "criar, organizar e suprimir distritos" (inciso IV), a de "organizar e prestar, (...), os serviços públicos de interesse local, incluído o transporte coletivo" (inciso V) e "promover, (...), adequado ordenamento territorial" (planejamento e controle do uso, parcelamento e ocupação do solo urbano – inciso VIII).

A aparente singeleza das matérias de competência municipal desfaz-se quando desdobradas na variedade dos assuntos que elas abrangem. A atribuição de legislar sobre assuntos de interesse local é questão repleta, há anos, de dificuldades e divergências e debatida no Judiciário com frequência. Por exemplo, a questão relativa à fixação do horário de funcionamento do comércio local, sempre objeto de dissenso, já foi, na vigência da Constituição de 1988, levada inúmeras vezes à apreciação do STF. Este já editara, antes da Constituição em vigor, a Súmula 419 [11], cuja tese não foi suficiente para orientar a interpretação do tema, tendo em 24.9.2003 sido publicada a Súmula 645 [12].

A localização espacial de determinados estabelecimentos comerciais também é assunto compreendido na competência municipal, mas que, dependendo da forma como é disciplinada pode configurar ofensa ao princípio da livre concorrência. A Súmula 646 do STF [13] cristaliza interpretação do tribunal sobre hipótese de ofensa a esse princípio. No entanto, quando julgada lei municipal que exigia, para a instalação de postos de revenda de combustíveis, distância mínima de duzentos metros de estabelecimentos escolares, igrejas e supermercados, ela foi considerada constitucional (RE 235.736-MG, 1ª Turma, RTJ 180/1.144). Outros temas também tem merecido análise do STF (v.g., estacionamento de veículos, limitações ao direito de construir, tarifas de serviço público, serviços funerários) [14].

No campo tributário muitas são também as questões que o STF tem sido chamado a deslindar. Quanto ao imposto sobre serviços, a compatibilidade de legislações municipais com normas e princípios constitucionais é tema que, não raro, está presente nas pautas do tribunal. O imposto sobre a transmissão onerosa inter vivos de bens imóveis também ocupou espaço na agenda do tribunal, sobrevindo a Súmula 656 do STF [15]. A progressividade do imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana foi objeto de várias decisões antes da nova redação dada pela EC 29/2000 ao § 1° do art. 156, dando origem à Súmula 668 do STF [16]. Relativamente às taxas de serviço ou de polícia várias foram as leis municipais cuja constitucionalidade foi discutida no STF, com destaque para as de localização e funcionamento, de conservação de estradas, de limpeza pública e de iluminação.

Essa variedade de temas relacionados à competência municipal só chegou a ser decidida pelo STF depois de longo percurso processual. Como não se admitia o controle concentrado da constitucionalidade de atos dessa natureza, a única alternativa para o deslinde de sua conformidade com a Lei Magna, ainda que esses atos transgredissem preceitos constitucionais fundamentais, era através do controle difuso. Dessa forma, mesmo que ostensivamente inconstitucionais, sua apreciação pelo STF dependia da iniciativa, em cada caso, de pessoa dotada de legítimo interesse, isto é, apenas por meio da solução de litígios intersubjetivos era viabilizada a apreciação da higidez constitucional desses atos.

Não significa dizer, por outro lado, que a ADPF, acaso já disciplinada por lei, fosse o instrumento adequado para a solução de todas essas controvérsias. E, certamente, não o será doravante, se o ato municipal não afrontar preceito constitucional fundamental que autorize sua propositura. Mas é inegável que, a partir da Lei 9.882, de 1999, o deslinde de controvérsia sobre a constitucionalidade de ato do Poder Público municipal ou de lei ou ato normativo municipais pode e deve resolvido pela via da arguição de descumprimento de preceito fundamental, evitando-se efetivamente sua transgressão e, especialmente, o penoso e perigoso percurso da marcha processual a que submetido o controle difuso de constitucionalidade.

Sobre o autor
Antonio Joaquim Ferreira Custódio

Advogado. Procurador do Estado de São Paulo aposentado. Autor de "Constituição Federal Interpretada pelo STF" (Juarez de Oliveira, 9ª edição).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CUSTÓDIO, Antonio Joaquim Ferreira. Leis municipais: controle abstrato de constitucionalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2231, 10 ago. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13295. Acesso em: 23 nov. 2024.

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