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Leis municipais: controle abstrato de constitucionalidade

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Agenda 10/08/2009 às 00:00

9. CONSIDERAÇÕES FINAIS.

Sabido que a ADPF não constitui instrumento processual hábil ao debate de toda e qualquer ofensa à Constituição, mas é remédio idôneo ao deslinde da contrariedade a preceito constitucional fundamental, conveniente ressaltar as cautelas a serem tomadas para deflagrar eficientemente sua propositura.

Combinando-se o discurso da norma constitucional (art. 102, § 1°) com o teor normativo das disposições da Lei 9.882, de 1999, para a propositura da ADPF constituem requisitos materiais indispensáveis (i) um ato do Poder Público (ii) que cause lesão a preceito fundamental, não havendo (iii) qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade. Se o ato do Poder Público for normativo, a lei impõe como condição a existência de controvérsia judicial relevante sobre a aplicação do preceito fundamental. Já observamos que essa condição legal não se afeiçoa ao texto da Constituição, esperando-se que a jurisprudência a afaste. É suficiente, para desencadear a arguição, que um ato do Poder Público, normativo ou não, descumpra preceito fundamental, não havendo outro meio eficaz para evitar a infringência perpetrada pelo ato, ou para reparar a lesão por ele causada.

Os requisitos formais são os elencados no art. 3° da Lei 9.882, de 1999, que define o conteúdo mínimo da petição inicial, que poderá ser indeferida se não for caso de arguição, faltar algum dos requisitos ou ela for inepta. A comprovação da existência de controvérsia judicial relevante sobre a aplicação do preceito fundamental só é exigível "se for o caso" (inciso V), vale dizer, se existir a controvérsia e sua demonstração não impuser prova de difícil obtenção. A comprovação da controvérsia, ao contrário do que sugere a letra da lei, não é requisito de admissibilidade da arguição. Ela torna-se indispensável, no entanto, se o autor almejar decisão liminar consistente na suspensão do andamento de eventuais processos em curso ou dos efeitos de decisões judiciais já prolatadas (art. 5°, §3°).

Enquanto a jurisprudência não assentar interpretação que arrede a comprovação da existência de controvérsia relevante, é de boa cautela praticar a distinção entre atos de caráter normativo daqueles que não o são. Não se deve, entretanto, esquecer que qualquer ato não normativo do Poder Público, notadamente o administrativo, é e deve ser praticado, por força do princípio da legalidade, com respaldo em lei. Se o ato administrativo for lesivo a preceito fundamental, ele é que deve ser questionado através da ADPF e não o ato normativo que lhe serve de suporte, sob pena de, impugnado este, correr o autor da ADPF o risco de vê-la inadmitida se não provar a existência de controvérsia judicial relevante, que pode não existir efetivamente, ser desconhecida ou de difícil ciência.

Ainda que a discussão da lesividade do ato envolva a interpretação de seu fundamento normativo, não será este o objeto da ADPF e, consequentemente, a comprovação da existência de controvérsia judicial relevante, se constitucional fosse, não pode ser exigida. Deve-se atentar, outrossim, que o questionamento da lesividade de um ato do Poder Público não passa, necessariamente, pela apreciação da constitucionalidade da lei ou ato normativo que lhe sirva de sustentáculo, ou que tenha, errônea ou indevidamente, sido invocado como seu fundamento legal. Muitas vezes, o ato lesivo emerge da inapropriada interpretação das normas constitucionais, incluídos os preceitos fundamentais, e ou dos atos normativos que o regulam. Vale dizer, a ofensa a preceito fundamental pode ser fruto da atividade exegética do agente público e não do ato normativo correta ou incorretamente considerado como seu suporte jurídico.

A ofensa a preceito fundamental é pressuposto substancial da arguição, como previsto na norma constitucional (art. 102, § 1°). Ainda que o ato do Poder Público municipal, normativo ou não, contrarie várias normas constitucionais, se nenhuma delas for enquadrável no conceito de preceito fundamental, a arguição é inadmissível. Em tal caso, a constitucionalidade do ato somente pode ser discutida através de ação própria aforada pelo legitimado ativo, isto é, no âmbito do controle difuso. É, sem dúvida, questão central que, dada a imprecisão conceitual, obstará, certamente, algumas arguições. Sendo do STF a palavra final sobre o que se deve compreender como preceito fundamental, conforme visto em item precedente, a incerteza predominará até que a jurisprudência venha a fixar orientação mais segura.

A inexistência de outro meio eficaz de sanar ou prevenir a lesividade do ato é outro requisito fadado a gerar divergências. A interpretação deve ser estrita, sob pena de tornar letra morta a norma constitucional e inócua a lei que a regulamenta, como já salientado em item precedente.

Questão de extrema importância prática é a legitimidade para a arguição. O art. 2° da lei contempla, apenas, aqueles que o são para a ação direta de constitucionalidade (inciso I). O veto ao inciso II desse artigo, já referido linhas antes, sepultou qualquer possibilidade da arguição ser proposta por quem não figure no elenco do art. 103 da Constituição. Em relação a atos do Poder Público municipal, o rol taxativo dos legitimados à propositura da arguição constituirá sério empecilho ao ajuizamento. A lei deveria, tendo em conta essa peculiaridade (arguição em relação a ato municipal), ter contemplado, pelo menos, a legitimidade ativa da Mesa da Câmara de Vereadores e ou do Procurador-Geral de Justiça do Estado. Não o tendo feito, resta aos interessados diretos esperarem a iniciativa de algum dos legitimados ativos para a ADIN.

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O § 1°, do art. 2º da lei, admite que o interessado represente ao Procurador-Geral da República para que este a ajuíze. Evidentemente o interessado deverá elaborar representação consistente, porque deve, inicialmente, convencê-lo da existência dos requisitos substanciais à propositura. A possibilidade dessa representação já era admitida pelo STF em relação à ação direta. Em hipótese na qual entidade sindical pleiteou o ajuizamento de ADIN, o tribunal, considerando a representação formulada como "provocatio ad agendum", reputou legítimo o comportamento da entidade, considerando-o como "pleito que traduz o exercício concreto do direito de petição" [ADIN (MC) 1.247-4, RDA 201/213 e RTJ 168/754].

A representação ao Procurador-Geral não é a única alternativa. A provocação para agir também pode ser endereçada a qualquer outro legitimado ativo, especialmente ao Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e a partido político com representação no Congresso Nacional, dos quais não se exige o requisito da pertinência temática [17] [ADIN 3, RT 142/363; Embargos de Declaração na ADIN 363-1, RT 738/199; ADIN (MC) 1.396-3, RT 731/173 e RTJ 163/530; ADIN 1.407, RTJ 176/578]. Esse requisito é exigível quando a demanda constitucional é aforada por confederações nacionais, entidades de classe de âmbito nacional, Mesas de Assembleias Legislativas, Câmara Legislativa do Distrito Federal e Governadores dos Estados e do Distrito Federal [ADIN (MC) 1.096, RTJ 158/441].

Se a ADPF não constitui o remédio para a moléstia que se alastrou pela estrutura judiciária do País, ela pode contribuir para uma melhor prestação dos serviços judiciários. A responsabilidade pela efetividade desse instrumento processual na solução de controvérsias de natureza constitucional e, por decorrência, para a redução do inusitado volume de demandas que congestiona essa estrutura é de todos. A parcela de maior responsabilidade recai, evidentemente, sobre os legitimados ativos para a propositura da arguição e sobre o Supremo Tribunal Federal, aos quais cabe dar a esse instrumento a melhor e mais profícua utilização. Ao Poder Público em geral, notadamente aos Poderes Executivos, que necessita abdicar de interpretações que satisfaçam, apenas, os interesses individuais ou grupais dos detentores temporários do Poder. E de cada um dos indivíduos, aos quais cabe provocar a atuação das autoridades responsáveis visando a minimização de desvios que, além de rasgarem a Constituição, enfraquecem a sociedade.


Notas

  1. Controle Concentrado de Constitucionalidade, obra conjunta com Ives Gandra da Silva Martins, Saraiva, 2001, p. 53.
  2. Para outras indicações, ver minha Constituição Federal Interpretada pelo STF, 9ª ed., 2008, Editora Juarez de Oliveira.
  3. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) e o controle de constitucionalidade da lei tributária municipal. Célio Armando Janczeski, Revista Tributária e de Finanças Públicas, Editora Revista dos Tribunais, Ano 16 – 83 – novembro-dezembro 2008, p. 75.
  4. Controle Concentrado de Constitucionalidade, cit., p. 124.
  5. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro, 3ª edição revista e atualizada, 2ª tiragem Saraiva, 2009, p. 266.
  6. O Controle... cit., p. 267.
  7. A Arguição de Descumprimento... cit., p. 80.
  8. Comentário Contextual à Constituição, 6ª edição, Malheiros, 2009, p. 554.
  9. Luís Roberto Barroso (O Controle... cit., p. 273/274) refere autores que sustentam a inconstitucionalidade do dispositivo ou que entendem que a arguição somente deveria ser admitida após esgotadas as vias normais de controle de constitucionalidade.
  10. Segundo o voto do relator, a arguição foi ajuizada pelo Governador do Estado do Amapá, "com o objetivo de obter a declaração de nulidade dos atos de nomeação e de investidura de seis (6) Desembargadores do Tribunal de Justiça local, em ordem a viabilizar a cessação de gravíssimas transgressões que – segundo sustenta – teriam sido praticadas, naquela unidade da Federação, contra princípios constitucionais de valores essenciais, consagrados nos arts. 1°, III, e 5°, XXXVII, LIII e LIV, todos da Carta Política".
  11. Súmula 419: "Os municípios têm competência para regular o horário do comércio local, desde que não infrinjam leis estaduais ou federais válidas".
  12. Súmula 645: "É competente o município para fixar o horário de funcionamento de estabelecimento comercial".
  13. Súmula 646: "Ofende o princípio da livre concorrência lei municipal que impede a instalação de estabelecimentos comerciais do mesmo ramo em determinada área".
  14. Ver minha Constituição Federal Interpretada pelo STF, Editora Juarez de Oliveira, 9ª ed., 2008.
  15. Súmula 656: "É inconstitucional a lei que estabelece alíquotas progressivas para o imposto de transmissão inter vivos de bens imóveis – ITBI – com base no valor venal do imóvel".
  16. Súmula 668: "É inconstitucional a lei municipal que tenha estabelecido, antes da Emenda Constitucional n° 29, de 13.9.2000, alíquotas progressivas para o IPTU, salvo se destinada a assegurar o cumprimento da função social da propriedade urbana".
  17. O requisito da pertinência temática é, segundo deflui de decisões do STF, "a adequação entre finalidades estatutárias e o conteúdo material da norma" [ADIN (MC) 1.114-6, DJU de 30.9.1994]. Exige o tribunal, para reconhecer a legitimidade ativa, por exemplo, das confederações sindicais e das entidades de classe de âmbito nacional, que haja um "vínculo objetivo de pertinência entre o conteúdo material das normas impugnadas (...) e a competência ou os interesses" de quem propõe ação direta de inconstitucionalidade. Esse requisito não é exigível pelo tribunal em relação a alguns legitimados (por exemplo, o Conselho Federal da OAB, os partidos políticos, o Procurador-Geral da República), porque, quanto a eles, entende o tribunal que sua legitimidade é ampla e irrestrita.
Sobre o autor
Antonio Joaquim Ferreira Custódio

Advogado. Procurador do Estado de São Paulo aposentado. Autor de "Constituição Federal Interpretada pelo STF" (Juarez de Oliveira, 9ª edição).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CUSTÓDIO, Antonio Joaquim Ferreira. Leis municipais: controle abstrato de constitucionalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2231, 10 ago. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13295. Acesso em: 23 dez. 2024.

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