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A re-significação dos direitos individuais à luz da nova conjuntura sócio-jurídica brasileira

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Agenda 29/08/2009 às 00:00

5.DIREITO DE DEFESA E DEVER DE PROTEÇÃO

Diante de tantas transformações, a sociedade reconstruiu seu modelo de Estado, exigindo um desempenho efetivo do Poder Público. Na vigência do neoconstitucionalismo, os direitos fundamentais adquiriram novas significações para além da garantia enquanto direitos negativos.

Gilmar Mendes (2008) nota a multiplicidade de significados atribuídos aos direitos fundamentais na nova ordem constitucional. Esta re-significação não eliminaria a condição de negatividade, isto é, a concepção basilar, denotada aos direitos de primeira geração. "Enquanto direito de defesa, os direitos fundamentais asseguram a esfera de liberdade individual contra interferências ilegítimas do Poder Público" (MENDES, 2002, p.3). A reconstrução deste significado implica um acréscimo, uma nova forma de reconhecer os direitos individuais.

As liberdades surgiram, ao longo da história, das reivindicações sociais frente ao opressor. A liberdade de consciência e crença é fruto das guerras de religião, enquanto as liberdades civis aparecem como imposições estatais, nos governos despóticos. As exigências primitivas tinham como meta limitar o poder abusivo, tendo sido transformadas em direitos positivados quando foram protegidas por uma constituição (BOBBIO, 1992, p.74-79). Nota-se, destarte, que as liberdades despontaram para frear excessos do Estado e da Igreja, mas seus objetivos foram se ampliando à medida que a sociedade evoluiu.

Essa modificação na forma como se compreendem os direitos é relatada por Norberto Bobbio (1992), em "A era dos direitos", no qual o autor constata que a evolução social influencia diretamente na imagem que se faz dos direitos humanos, alterando e aditando inclusive os chamados direitos individuais ou de liberdade.

Esses direitos foram constituídos inicialmente a partir da ideia liberalista de não-intervencionismo estatal, sendo objetivo das Constituições resguardar o cidadão do arbítrio do Estado. Essa era uma preocupação concreta na França do séc. XVIII, após décadas de abusos pelo monarca. As necessidades da contemporaneidade, no entanto, fizeram surgir novas demandas, e, embora não tenham eliminado o significado anterior, enfraqueceram-no.

Os múltiplos significados dos direitos fundamentais estão relacionados à Carta brasileira de 1988, a qual protege amplamente tais direitos em capítulos extensos, afirmando expressamente sua aplicabilidade imediata. A efetivação deste dispositivo exige uma atuação concreta do Poder Público, alterando a antiga compreensão de que a garantia constitucional aos direitos individuais referir-se-ia simplesmente a uma limitação da ingerência estatal [09].

A sociedade não mais aceita a ideia de um Estado passivo, não intervencionista, que se abstém de qualquer atuação para não entrar na esfera pessoal dos cidadãos. Hoje, consoante afirma Mendes (2001, p.5), "a garantia dos direitos fundamentais enquanto direitos de defesa contra intervenção indevida do Estado e contra medidas legais restritivas dos direitos de liberdade não se afigura suficiente para assegurar o pleno exercício da liberdade". A busca pela real efetivação dos direitos fundamentais levou o indivíduo a repensar as garantias que a lei lhes proporcionava, construindo a ideia do dever de proteção.

Canotilho (2008, p. 77), alcunhando o dever de proteção de direito à proteção jurídica, ressalta a imperatividade do papel do Estado na salvaguarda dos direitos como um todo: "nos direitos à proteção jurídica invoca-se o Estado como destinatário do dever de protecção de particulares; nos direitos de defesa impõe-se ao Estado o dever de não agredir (= dever de se abster perante) a esfera jurídica dos cidadãos".

O Constitucionalismo contemporâneo traz um novo significado para os direitos fundamentais, em busca da eficácia desses direitos, qualificando-os como direitos positivos, os quais exigem um papel ativo do Estado.

A concretização dos direitos humanos constitucionais compete aos órgãos estatais, que têm por obrigação a manutenção dos direitos de cada um frente a terceiros. O Estado não pode omitir-se frente a este dever, passando a assumir a função de "guardião dos direitos". Neste contexto, além de assegurar o direito do cidadão a prestações positivas, deve manter um sistema funcional organizado, com órgãos especializados e procedimentos adequados à efetivação dos preceitos constitucionais (MENDES, 2002).

Os três Poderes devem atuar de forma conjunta, cabendo ao Legislativo a positivação dos direitos humanos, regulamentando eventuais lacunas que venham a impedir a aplicação plena e imediata da Carta de 1988; ao Executivo a aplicação prática das normas legais, realizando planejamentos orçamentários que objetivem condições máximas de vida para a população; e, finalmente, é papel do Poder Judiciário, por meio das pretensões postuladas em juízo, assegurar a ingerência do Estado, com vista à implementação de políticas públicas que garantam eficácia plena aos direitos fundamentais.

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Diante do exposto, percebe-se que todos os direitos fundamentais hoje exigem uma regulação e prestação por parte do Estado, o qual tem a obrigação de realizar a pretensão de eficácia da Constituição, assegurando ao máximo a aplicação plena dos seus dispositivos. Este entendimento tem sido defendido em relação aos direitos sociais e deve se estender aos demais direitos fundamentais, pois "[...] de uma forma ou de outra, todos os direitos – desde os direitos, liberdades e garantias pessoais aos direitos econômicos, sociais e culturais – apresentam dimensões caracterizadamente regulativo-prestacionais" (CANOTILHO, 2008, p. 265).

Assim, os direito fundamentais de primeira dimensão não podem ser concretizados apenas como direito defesa, exigindo-se que o Estado cumpra o seu dever de proteção, realizando intervenções e ações afirmativas. Há, portanto, uma alteração do conceito tradicional dos direitos individuais como direitos negativos – conceito este que não leva em conta a necessidade contemporânea de atuação dos órgãos públicos na sua efetivação – para re-significá-los como direitos a prestação positiva.


6.CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, percebe-se que a re-significação, fenômeno linguístico notadamente utilizado pelas ciências humanas como um todo, pode ser aplicado ao campo jurídico, constatando-se uma reconstrução dos significados dos direitos positivados conforme se verificam alterações de contexto.

Nota-se que o significante (cada um dos direitos individuais), une-se ao significado (direito individual que exige somente uma abstenção estatal), para formar o signo (direitos individuais como direitos negativos). Este sistema semiológico esteve válido na vigência do Estado Liberal, mas, hoje, com a instalação do Estado Social e Democrático de Direito – caracterizado pela positivação dos direitos humanos, pela participação popular e pela atuação dos órgãos públicos para suprir demandas sociais constitucionalmente garantidas – há a formação de um novo sistema, condizente com as transformações sociais e jurídicas contemporâneas.

Sob a égide do Neoconstitucionalismo, movimento político e jurídico originado de profundas mudanças na sociedade, com destaque para a força normativa que adquiriu a Constituição no século XX, a consolidação do pós-positivismo, com a inclusão da ética ao campo formal da legalidade e a expansão da jurisdição constitucional, cabendo aos magistrados dar decisões pautadas nos princípios e normas constitucionais, objetivando dar máxima efetivação aos direitos fundamentais.

Assim, diante dessas alterações, somadas ao aumento das demandas sociais, o Estado teve que abandonar a postura absenteísta adotada no Estado Liberal e procurar concretizar os preceitos da Magna Carta, tendo o Poder Judiciário, considerando a adoção da criatividade e participação dos magistrados frente às demandas judiciais, o papel de exigir o cumprimento das políticas governamentais.

Neste ínterim, os Tribunais têm proferido cada vez mais decisões favoráveis à população em demandas cujo objetivo é assegurar a materialização dos direitos de segunda dimensão. Nota-se, contudo, uma tendência da doutrina hoje em expandir esta necessidade de prestação positiva pelo Estado também aos demais direitos. Hodiernamente, destarte, dada a necessidade de concretização dos direitos fundamentais por meio de medidas estatais efetivas, estes direitos receberam um novo significado, o de direitos a prestação positiva.

Essa necessidade de interferência do Estado em um direito considerado como negativo ou de defesa demonstra uma contradição entre a leitura tradicional dos direitos de liberdade e sua aplicação no novo quadro sócio-jurídico brasileiro. Diversos acontecimentos contribuíram para a alteração do significado deste conjunto de direitos fundamentais, entre os quais se destacam a consolidação do Estado Democrático de Direito, a expansão da jurisdição constitucional e a compreensão da força normativa da Constituição. Todas essas alterações no contexto jurídico levaram à ascensão do movimento neoconstitucionalista, colocando a Carta Magna no centro do ordenamento jurídico, de forma que toda interpretação jurisdicional, toda legislação infraconstitucional e mesmo a execução das políticas públicas devem ter como objetivo maior sua concretização.

A busca atual pela concretização dos direitos fundamentais – e a consequente materialização da Constituição formal, impedindo violações de seu conteúdo – e o papel cada vez mais atuante do Poder Judiciário neste sentido têm amplificado os anseios da sociedade, que passa a exigir mais do Estado, fortalecendo e renovando o modo de ver esses direitos, isto é, reconstruindo seus significados.

Norberto Bobbio (1992, p.27) explana de forma clara esta mudança de paradigma, quando afirma que, "tão logo submetemos valores à verificação histórica, percebemos que aquilo que foi considerado como evidente por alguns, num dado momento, não é mais considerado como evidente por outros, em outro momento".

A re-significação ou reconstrução de significados, fenômeno importado da linguística para o contexto jurídico, está relacionada, na atual conjuntura, à efetivação dos direitos fundamentais, devido à exigência atual de um Estado ativo, que deve criar as condições para o exercício pleno desses direitos.

Enfim, o Estado tem o dever de dar aplicação máxima aos direitos fundamentais, atuando não apenas quando da existência de conflitos e violações, por meio de demandas ao Poder Judiciário, mas, também, assegurando positivamente o exercício desses direitos. Entendê-los hoje apenas como direitos negativos seria negar todo o movimento em prol da concretização dos direitos fundamentais, e a atuação dos três Poderes, em especial o Judiciário, na salvaguarda da Constituição.

Hoje, portanto, é preciso rever o significado tradicional dos direitos fundamentais, "direitos que, ao longo dos anos, a par de seus clássicos conteúdos, estão a merecer que lhes sejam agregados novos sentidos" (TAVARES, 2008, p.600). Esse movimento pode ser observado em relação aos direitos sociais, havendo atualmente diversas decisões judiciais nesse sentido. Nota-se, então, uma extensão do dever estatal de realizar ações afirmativas em prol da efetivação dos direitos fundamentais.

Registra-se na contemporaneidade a exigência de ações afirmativas dos órgãos públicos também em relação aos direitos fundamentais individuais, o que interfere diretamente na conotação que este direito possui, reconstruindo-a para abarcar, além do clássico significado como direito de defesa, o dever de proteção do Estado.

Conclui-se, diante do exposto, que os direitos individuais expressos no art. 5º da Constituição de 1988 sofreram recentemente um processo de re-significação, impulsionado por alterações profundas na conjuntura sócio jurídica brasileira. Essa re-significação, caracterizada por uma ampliação do significado tradicional propagado pela ideologia liberal, fundamenta-se na compreensão de um Estado ativo, que possui o dever de efetivar a Magna Carta.

Trata-se, na realidade, de dar concretude à Constituição, processo no qual os operadores do direito exercem o papel primordial de exigir do Estado uma postura ativa que garanta a máxima aplicabilidade aos dispositivos constitucionais. Essa função tem sido exercida de forma eficaz com relação aos direitos sociais, mas, consoante a própria Carta de 1988, deve se estender aos direitos fundamentais como um todo. Se no passado havia a compreensão de que os direitos individuais não necessitavam de ingerência estatal para serem plenamente exercidos, hoje este conceito precisa ser revisto, evitando que os direitos de liberdade sejam cerceados por falta de ações afirmativas.

Cabe à doutrina realizar continuamente a revisão dos significados clássicos dos direitos fundamentais, de forma a adequá-los à evolução social, pois é imperativo assimilar o novo conceito de direitos individuais enquanto direitos a prestações positivas para que se possa realmente exigir do Poder Público ações afirmativas que efetivem estes direitos. Enquanto não houver políticas públicas concretas que busquem dar máxima eficácia aos direitos fundamentais como um todo, não restará materializado o texto constitucional, comprometendo a consolidação de um Estado Social e Democrático de Direito.

Destarte, a apreensão desse novo significado é um passo a mais no entendimento de que os direitos de primeira dimensão, bem como os demais direitos fundamentais, devem ser efetivados por meio da implementação de políticas públicas, estando o Estado brasileiro obrigado, porquanto norma constitucional, a garantir sua eficácia plena.


REFERÊNCIAS

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MOURA, José Fernando E. Condições para a democracia. Porto Alegre, 2006. Disponível em: . Acesso em: 24 de setembro de 2008.

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Notas

  1. Corrente jurídico-filosófica que considerava ser o homem naturalmente portador de direitos, não por estarem estes definidos em algum documento jurídico, mas pela sua própria natureza, encontrando justificativa em Deus – jusnaturalismo teológico, vigente durante a Idade Média –, ou na razão – como pensado pelos Iluministas, com destaque para Jean Jacques Rousseau, cujo pensamento foi analisado no tópico 2.2.2 desta obra.
  2. O positivismo vigorou no século XX, derivando os direitos do homem da própria norma, caracterizada por uma validade formal e imperatividade. A crítica a esta corrente remete ao não acometimento do valor ao campo jurídico, mantendo-se focada no aspecto puramente legal.
  3. Vide LASSALE, Ferdinand. A Essência da Constituição. 6. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2001.
  4. Vide SCHMITT, Carl. Teoria de la constituición. Trad. Francisco Ayla. 2. ed. Madrid: Alianza, 1992.
  5. Veja-se entendimento de Walber Agra (2006, p. 27): "A importância da jurisdição constitucional é garantir que os direitos fundamentais não fiquem restritos à sua seara formal, reduzidos a uma função retórica, possibilitando-lhes uma concretização efetiva na sociedade. Por outro lado, eles constituem o principal elemento de legitimação da jurisdição constitucional, na medida em que são considerados como invariáveis axiológicas, gozando de aceitação nos mais variados extratos sociais".
  6. Trata-se de princípio aplicável à jurisdição de forma a garantir uma interpretação livre por parte do magistrado, dentro dos limites legais e constitucionais, exigindo-se fundamentação dos atos decisórios para evitar decisões arbitrárias. O livre convencimento motivado encontra-se disposto no Código de Processo Civil, art. 131: "o juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes, mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o consentimento".
  7. Vide Antônio Maia (2008, p.25): "Ao reconhecer aos juízes uma alargada margem de discricionariedade, os juristas neoconstitucionalistas se engajam com eles num debate que, por um lado, exige um aperfeiçoamento da cultura jurídica brasileira no sentido de uma maior atenção e respeito aos estritos procedimentos de uma argumentação jurídica racional e, por outro, conclama os magistrados à consciência da importância crescente de seu papel nas novas formas de arranjo institucional vigente".
  8. Art. 6º. São direitos sociais e educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
  9. Vide MENDES, 2002, p.5. "Vinculados à concepção de que ao Estado incumbe, além da não intervenção na esfera da liberdade pessoal dos indivíduos, garantida pelos direitos de defesa, a tarefa de colocar à disposição os meios materiais e implementar as condições fáticas que possibilitem o efetivo exercício das liberdades fundamentais, os direitos fundamentais a prestações objetivam, em última análise, a garantia não apenas da liberdade-autonomia (liberdade perante o Estado), mas também da liberdade por intermédio do Estado, partindo da premissa de que o indivíduo, no que concerne à conquista e manutenção de sua liberdade, depende em muito de uma postura ativa dos poderes públicos".
Sobre a autora
Camila Muritiba Tenório

Analista judiciário do TRT. Especialista em Direito do Estado pela UFBA. Bacharel em comunicação/jornalismo pela UFBA. Bacharel em Direito pela Unifacs.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TENÓRIO, Camila Muritiba. A re-significação dos direitos individuais à luz da nova conjuntura sócio-jurídica brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2250, 29 ago. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13416. Acesso em: 22 nov. 2024.

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