Recentemente, com a publicação on line do Informativo de Jurisprudência n. 557 (24 a 28 de agosto de 2009), pudemos presenciar uma flagrante violação da Constituição perpetrada pelo Tribunal que possui a missão constitucional de defendê-la, o Supremo Tribunal Federal – STF.
O mesmo Informativo contém inclusive decisões que são manifestamente conflitantes. Ao julgar o Recurso Extraordinário 590409/RJ, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, em 26 de agosto, o Plenário decidiu que competia ao Tribunal Regional Federal o julgamento de conflito de competência estabelecido entre Juizado Especial Federal e juiz de primeiro grau da Justiça Federal da mesma Seção Judiciária. No caso, afastou-se a competência do Superior Tribunal de Justiça – STJ para julgar o conflito com o seguinte argumento: "... nos termos do art. 105, I, d, da CF, a competência do STJ para julgar conflitos de competência está circunscrita aos litígios que envolvam tribunais distintos ou juízes vinculados a tribunais diversos. Considerou-se que a competência para dirimir o conflito em questão seria do Tribunal Regional Federal ao qual o juiz suscitante e o juizado suscitado estariam ligados, haja vista que tanto os juízes de primeiro grau quanto os que integram os Juizados Especiais Federais estão vinculados àquela Corte."
Isso significa dizer que o STF entendeu que a competência do STJ é constitucional e, conseqüentemente, só pode ser limitada ou ampliada por norma constitucional. Mais à frente, ainda segundo o Informativo de Jurisprudência 557, o Plenário afirma que contra as decisões das Turmas Recursais não cabe Recurso Especial ao STJ, mas sim Recurso Extraordinário ao Supremo, haja vista que não se podem qualificar as Turmas Recursais como tribunais.
Da mesma forma está entendendo o STF que a competência constitucional do STJ, no caso o art. 105, III, da Constituição, não pode ser alterada por lei. Se a Turma Recursal não é tribunal, forçoso reconhecer que não cabe o Recurso Especial porque o referido dispositivo constitucional veda.
Até aí nenhuma novidade. A limitação do cabimento do Recurso Especial contra decisões de tribunais foi uma opção do legislador constituinte. Não há nada que se possa fazer na lei contra o que determina a Constituição.
Para surpresa geral, no mesmo Informativo há uma decisão do mesmo Plenário, só que relatado o Recurso Extraordinário pela Ministra Ellen Gracie, em sentido completamente diferente. Na verdade julgaram-se Embargos de Declaração no Recurso Extraordinário (RE 571572 QO-ED). A decisão que ora se analisa não só consta do mesmo Informativo (557), como foi proferida no mesmo dia da anterior (26 de agosto de 2009).
A decisão comete o primeiro equívoco ao sentenciar que não obstante "a inexistência de omissão a suprir, o Tribunal acolheu embargos de declaração opostos de acórdão do Plenário para prestar esclarecimentos e determinar a comunicação à Presidência do STJ." Ora, se os Embargos de Declaração sustentaram omissão, e não havia omissão a ser sanada, o correto seria negar provimento ao recurso, e não aproveitar a oportunidade para "prestar esclarecimentos".
De qualquer forma o tema central não é este, e sim a flagrante violação da Constituição que se fez neste dia 26 de agosto de 2009. O Tribunal estava discutindo uma questão da mais alta relevância, qual seja a ausência de controle de legalidade das decisões proferidas pelas Turmas Recursais dos Juizados Especiais Estaduais. Tivemos a oportunidade de escrever, anteriormente, que "no Superior Tribunal de Justiça prevalece hoje o entendimento de que não há mesmo nenhum mecanismo para se rever o mérito das decisões emanadas dos Juizados Especiais no que tange à sua legalidade. Isso faz com que os Juizados Especiais ignorem a jurisprudência dos Tribunais Superiores, em especial do STJ, criando uma verdadeira desigualdade de tratamento de casos semelhantes" (Os Juizados Especiais, a insegurança jurídica e o direito medieval, no prelo).
Essa ausência de controle conduz a abusos, como o reiterado desrespeito à autoridade do STJ em sua missão de uniformizar a interpretação da lei federal, que deveria ser aplicada de maneira uniforme a casos semelhantes. Não é possível, no momento, discutir os prós e os contras de uma uniformização, mas apenas o de questionar o caminho que o STF encontrou para solucionar esse problema.
O caminho encontrado, pensamos, foi o pior possível.
Primeiro porque o STF, no julgamento em análise, reconhece existir um mecanismo de controle da legalidade das decisões da Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Federais, que é o pedido de uniformização de jurisprudência, que deve ser julgado pelo STJ segundo o art. 14, parágrafo 1º, da Lei 10.259/01. Ora, se esse pedido tem natureza de recurso, ele é inconstitucional porque se trata de um recurso (com outro nome) interposto para o STJ contra uma decisão que não foi dada por um tribunal, afinal "não se pode qualificar as Turmas Recursais como tribunais". Se esse pedido não tiver natureza jurídica de recurso, o que não acreditamos, ainda assim trata-se de um "instituto" inconstitucional porque amplia a competência do STJ. Qual o fundamento de validade dessa ampliação de competência? A Lei 10.259/01 e não a Constituição.
Segundo porque o STF, revelando um expresso descontentamento com a jurisdição prestada em sede de Juizados, ao argumento de que o desrespeito aos precedentes "provoca insegurança jurídica" e "promove uma prestação jurisdicional incompleta", conclui o julgamento ampliando a competência do STJ através da (inédita) interpretação do art. 105, I, f, da Constituição, nos seguintes termos:
"Dessa forma, ante a ausência de outro órgão que possa fazê-lo, o próprio STJ afastará a divergência com a sua jurisprudência, quando a decisão vier a ser proferida no âmbito dos Juizados Especiais Estaduais."
Em que pesem os votos vencidos dos Ministros Marco Aurélio e Carlos Britto, restou vencedora a seguinte tese: cabe reclamação para o STJ contra as decisões das Turmas Recursais dos Juizados Especiais Estaduais que desrespeitarem a jurisprudência do STJ. Forçoso é reconhecer, pela lógica, que a violação de súmula do STJ também enseja Reclamação para o referido Tribunal.
Não somos fãs dos Juizados. Também criticamos a insegurança jurídica provocada pela divergência jurisprudencial. Mas não somos do entendimento de que os fins justificam os meios, principalmente quando esses meios atropelam a Constituição e criam um precedente extremamente perigoso.
Cabimento de Reclamação ao STJ se a decisão da Turma Recursal dos Juizados Especiais Estaduais violar a jurisprudência – sumulada ou não, repita-se – do STJ? Para nós o STF criou uma figura jurídica inexistente: as súmulas vinculantes do STJ. Pior, a jurisprudência vinculante do STJ.
A principal diferença entre as súmulas vinculantes (do STF!) e as persuasivas é exatamente a possibilidade da parte que se sentir prejudicada oferecer Reclamação contra o desrespeito às súmulas vinculantes diretamente no STF. Se uma decisão de Tribunal, ou Turma Recursal, violar uma súmula persuasiva, cabe o Recurso Extraordinário, e não a Reclamação.
Ao transformar todas as súmulas (e a jurisprudência) do STJ em vinculantes, atropela-se a Constituição em várias partes, senão vejamos:
1) princípio da igualdade: porque as súmulas (e a jurisprudência) do STJ, caso desrespeitadas nos Tribunais de Justiça e nos Tribunais Regionais Federais, não podem ser "protegidas" pela via "mais fácil" da Reclamação? Só são vinculantes as Súmulas (e a jurisprudência) do STJ nos Juizados Especiais? Qual a razão do tratamento discriminatório se a violação foi igual?
2) art. 103-A: foi necessária uma Emenda Constitucional para que se reconhecesse ao STF a legitimidade para editar enunciados com efeito vinculante, e mesmo assim a edição de uma súmula vinculante demanda o preenchimento de requisitos de natureza formal e material que são diferentes das súmulas persuasivas. As súmulas persuasivas do STF não foram transformadas em vinculantes em um passe de mágica. Por que as súmulas (e a jurisprudência) do STF, de uma hora para outra, passaram a ter efeito vinculante? Qual a base constitucional desta transformação?
3) art. 105: a interpretação que o STF deu ao referido dispositivo amplia a competência do STJ de tal forma que atribui a ele uma competência que ele nunca teve, a saber, a de ser órgão revisor das decisões das Turmas Recursais dos Juizados Especiais Estaduais. Se é inconstitucional a lei que amplia a competência dos Juizados (Lei 10.259/01, art. 14, parágrafo 1º), também é inconstitucional a decisão do STF ora comentada.
Quem vai declarar a inconstitucionalidade do julgamento do RE 571572 QO-ED/BA e fazer a Constituição prevalecer? O próprio Tribunal responsável por essa violação? Pensamos que não, mas esperamos e acreditamos que sim, afinal entendeu-se que os Embargos de Declaração também servem para "prestar esclarecimentos".