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Federalismo fiscal, transferências intergovernamentais constitucionais e desenvolvimento regional.

Uma análise em prol da efetividade dos direitos fundamentais

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Agenda 15/11/2009 às 00:00

4 Pontos negativos dos Fundos de Participação e propostas de modificação dos critérios em prol do desenvolvimento regional

Não obstante a vantagem de existir no atual sistema constitucional brasileiro critérios de redistribuição inter-regional de recursos, como os Fundos de Participação, estes não atendem aos requisitos da equalização fiscal e da homogeneidade na capacidade de gastos das entidades subnacionais, sendo alta a disparidade do desenvolvimento socioeconômico regional.

Há diversos fatores que contribuem para que os Fundos de Participação não consigam atender à sua função precípua de distribuição equânime da receita para atenuação da desigualdade regional. Primeiramente, evidencia-se que os critérios estipulados pela Lei Complementar n°. 62/1989 e pelo Código Tributário Nacional são defasados e não se coadunam com os princípios do Estado Democrático de Direito.

Como visto, são três os fatores que determinam a distribuição dos Fundos de Participação dos Estados e do Distrito Federal: 1) a superfície territorial; 2) a população; e 3) a renda per capita. Enquanto o Fundo de Participação dos Municípios leva-se em consideração dois fatores: 1) a população; e 2) renda per capita.

Tais fatores são insuficientes e ineficazes para dimensionar o nível de desenvolvimento de cada unidade subnacional, lembrando-se que a compreensão de desenvolvimento, neste trabalho, é ampla, levando-se em consideração não apenas o crescimento econômico, mas, sobretudo, as condições estruturais sociais e culturais, como a assistência médica, a educação, a segurança, a alimentação adequada, o saneamento básico etc., de tal forma a assegurar a boa qualidade de vida dos cidadãos.

Os critérios tradicionais da população, da renda per capita e do território não conseguem realizar uma distribuição equânime, segundo a real necessidade de gasto de cada ente político para implementar direitos fundamentais sociais prementes, visto que escamoteiam aspectos primordias como o nível de criminalidade, de educação fundamental e superior, de longevidade, do emprego entre outros.

A real e concreta necessidade de gasto das unidades subnacionais não depende apenas do tamanho do território, da quantidade da população ou da renda per capita, mas da demanda de serviços públicos essenciais que as entidades federadas são obrigadas a atender, no intuito de garantir o seu desenvolvimento e o bem-estar de seus cidadãos.

O critério de distribuição de renda pautado na quantidade da população é tradicional e arcaico, sendo fruto de uma política macroeconômica, e não se adequada ao paradigma do Estado Democrático de Direito. Deste modo, é urgente e necessária a alteração da legislação brasileira.

Seria mais justo e equânime se o critério para o a distribuição da receita dos Fundos de Participação se pautasse, principalmente, no atraso econômico-social, haja vista que tornaria mais efetivo o proporcional desenvolvimento regional. Cumpre esclarecer que esse critério é utilizado em alguns países como a Alemanha e a Índia [20].

Desta forma, poder-se-ia aplicar indicadores sociais apropriados para abalizar o nível de desenvolvimento das entidades federadas, como o Índice de Desenvolvimento Humano dos Estados definidos pelo Relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), O Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M) e o Índice de Condições de Vida (IVC), criados pela Fundação João Pinheiro (FJP) em associação com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), entre outros.

O Índice de Desenvolvimento Humano foi criado por Mahbub ul Haq com a colaboração do economista indiano Amartya Sen, para ser uma medida geral e sintética do desenvolvimento humano, levando em consideração três indicadores: a renda, a longevidade e a educação. Em suma, a renda é avaliada com base no PIB per capita, corrigido pelo poder de compra da moeda de cada país; a longevidade pauta-se nos números de expectativa de vida ao nascer; e a educação é deduzida pelo índice de analfabetismo e pela taxa de matrícula em todos os níveis de ensino. [21]

Com base no IDH do PNUD, a FJP em associação com IPEA lançou em 1996 dois novos indicadores de desenvolvimento humano de nível local: o IDH-M e o IVC. Estes possuem critérios metodológicos diversos, percebe-se que o IDH-M leva em consideração os três fatores do IDH do PNUD, quais sejam, a renda, a longevidade e a educação, enquanto o IVC, além dessas dimensões, pauta-se, ainda, na habitação e na infância. [22]

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É cediço que os referidos indicadores não são capazes de retratar todos os relevantes aspectos de desenvolvimento das unidades subnacionais, mas pelo menos acrescenta dois fatores importantes vinculados à efetividade da dignidade: a educação e a longevidade.

Além disso, cumpre esclarecer que tais indicadores possuem certa defasagem em sua fórmula, pois dependem em alguns aspectos dos censos demográficos do IBGE, os quais são realizados na média de 10 anos. No entanto, ainda são considerados bons indicadores do desenvolvimento das entidades subnacionais, por considerarem aspectos sociais relevantes.

Para uma melhor visualização do estágio de desenvolvimento das unidades subnacionais, seria interessante a conjugação de indicadores sociais. Além dos já mencionados, seria viável a utilização do Percentual de Cobertura do Programa de Saúde da Família (PSF), criado em 1994 pelo governo federal, mediante o Ministério da Saúde, visto que abordaria o aspecto da saúde pública. Este indicador analisa o grau de cobertura das ações de promoção, proteção e recuperação da saúde dos indivíduos na população local, centralizando-se na saúde da família, no ambiente físico e social familiar. A estratégia da saúde da família substitui o antigo conceito de saúde pública restrito ao ambiente hospitalar.

A taxa de analfabetismo das pessoas com mais de 15 anos, realizado pelo IBGE e o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) também poderiam ser levados em conta.

Portanto, há diversos indicadores sociais que poderiam colaborar em uma melhor análise do grau de desenvolvimento dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, os quais poderiam ser utilizados no procedimento dos Fundos de Participação, contribuindo, dessa forma, na distribuição equânime das rendas tributárias.

Ademais, em que pese à insuficiência do critério dos Fundos de Participação dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios de gerar a devida equalização fiscal das unidades subnacionais, por não levar em consideração o conceito amplo de desenvolvimento, observa-se que a legislação sofreu pouquíssima modificação.

Atente-se que as leis que regulam o procedimento dos Fundos de Participação (Leis Complementares n°s. 61 e 62 de 1989 e n°. 91 de 1997 e a Lei n°. 5.172 de 1966 - Código Tributário Nacional) são muito antigas e não se encontram mais adequadas à atual realidade socioeconômica dos entes políticos.

É totalmente esdrúxula a utilização até os dias atuais dos coeficientes individuais de participação dos Estados e do Distrito Federal estipulados no Anexo da Lei Complementar nº. 62 de 1989.

Tudo isso, realça a necessidade urgente de modificar a legislação que disciplina o procedimento dos Fundos de Participação.

Ademais, a rigidez do processo legislativo para regulamentar o procedimento das repartições das receitas tributárias, determinada pelo art. 161 da Constituição Federal de 1988 (que exige Lei Complementar), dificulta a adequação constante das percentagens e critérios das transferências, de acordo com as mudanças das circunstâncias socioeconômicas das unidades subnacionais, as quais implicam diretamente na capacidade de gasto destas.

Da mesma forma, entende-se como um excesso de cautela do legislador constituinte a estipulação dos índices dos repasses das receitas tributárias no Texto Constitucional. Tal peculiaridade do sistema constitucional financeiro brasileiro engessa o procedimento das transferências intergovernamentais, inclusive dos Fundos de Participação, tendo em vista o processo legislativo dificultoso da Emenda Constitucional.

Houve um zelo demasiado do legislador constituinte que acabou prejudicando a equalização fiscal, pois nos últimos vinte anos, dificilmente, se modificou as transferências governamentais, ao par disso houve uma intensa alteração do contexto socioeconômico das pessoas jurídicas de direito público.

Nos países em que há razoável homogeneidade socioeconômica dos Estados-membros, vislumbra-se a maior mobilidade das transferências intergovernamentais e a presença de repasses redistributivos, atualizados constantemente de acordo com o nível de desenvolvimento das unidades subnacionais. No Canadá, avalia-se a receita de todos os entes e aquele que tem baixa capacidade de gasto recebe recurso diferenciado para ficar na média. Na Alemanha a cada cinco anos o Estado faz um ajustamento das transferências de receitas de acordo com a avaliação dos encargos dos entes políticos, o que vem dando certo, visto que os entes políticos da Alemanha possuem capacidade de gasto semelhante e, portanto, desenvolvimento regional proporcional. [23]

Isto demonstra a necessidade também de reforma constitucional para atribuir à lei ordinária federal a disciplina do procedimento dos Fundos de Participação, bem como para retirar da Constituição a indicação dos índices dos Fundos de Participação, transferindo a competência para a legislação ordinária federal, assegurando a mobilidade das transferências intergovernamentais, e, por conseqüência, a possível adequação dos seus critérios segundo o nível de desenvolvimento dos entes políticos, o qual se altera intensamente diante das transformações demográficas, políticas, sociais e econômicas.

Por fim, é salutar evidenciar que os Fundos de Participação possuem outro aspecto negativo no federalismo fiscal que decorrem do fato de serem livres ou incondicionados. Esse tipo de transferência intergovernamental que não depende de nenhuma condição e pode aplicar a receita em qualquer fim de interesse público, em regra, causa uma inércia ou acomodamento das unidades subnacionais.

Deste modo, o melhor é que haja um misto de critérios de repasse de receitas tributárias que inclua até mesmo indicador que incentive a captação de recursos tributários ou outro tipo de receita pelos entes políticos que são dependentes dos Fundos de Participação.

Logo, é evidente que o Brasil deve adotar novos critérios de transferências intergovernamentais que consigam cumprir sua função social de equalização fiscal, no intuito de buscar o proporcional desenvolvimento social, econômico e cultural das unidades subnacionais.

Apenas a reforma em relação aos Fundos de Participação não é suficiente para ajustar o equilíbrio federativo. Como dito alhures, o sistema tributário brasileiro encontra-se centralizado e mesmo com as transferências existentes, ainda permanece a desigualdade vertical, o que demonstra a necessidade de uma profunda reforma tributária e financeira para promover efeitos em prol do homogêneo desenvolvimento regional [24].


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Foram abordados, neste trabalho, alguns aspectos do federalismo fiscal brasileiro, demonstrando-se a ineficácia do atual sistema tributário-financeiro em estabelecer um equilíbrio socioeconômico entre os membros da Federação. Há uma forte tendência da centralização do poder de tributar na União e uma desigualdade de capacidade fiscal e econômica dos entes políticos, agravada com as mudanças políticas, demográficas e econômicas.

Neste cenário, as transferências intergovernamentais são compreendidas como relevantes instrumentos de equalização fiscal e de redução da desigualdade regional. No entanto, nem mesmo o sistema de repartição de receitas definido na Carta Política é capaz de modificar o status quo.

Foi constatado que os critérios dos Fundos de Participação, importante espécie de transferência intergovernamental constitucional obrigatória, são defasados em relação ao atual nível de desenvolvimento dos entes políticos, o que gera a inocuidade desse instrumento.

Deste modo, urge vontade política para proceder uma substancial reforma no sistema de transferências intergovernamentais, no intuito de tornar efetivos os primados do Estado Democrático de Direito e assegurar a todos cidadãos uma melhor qualidade de vida.


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Sobre a autora
Karla Marques Pamplona

Assessora da Casa Civil da governadoria do Estado do Pará. mestra em direitos fundamentais e relações sociais e doutoranda no programa de desenvolvimento do trópico úmido do núcleo de altos estudos da Amazônia da Universidade Federal do Pará

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PAMPLONA, Karla Marques. Federalismo fiscal, transferências intergovernamentais constitucionais e desenvolvimento regional.: Uma análise em prol da efetividade dos direitos fundamentais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2328, 15 nov. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13860. Acesso em: 5 nov. 2024.

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