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Vender bebidas alcoólicas a criança ou adolescente é contravenção, não crime.

Análise da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça

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Agenda 25/11/2009 às 00:00

6 Conclusão

O Superior Tribunal de Justiça mantém posicionamento reiterado de que não configura incidência do artigo 243 do Estatuto da Criança e do Adolescente na hipótese de bebidas alcoólicas, sendo o leading case o REsp nº. 331.794/RS. Este entendimento foi construído asseverando que o legislador atribuiu tratamento diferenciado para a conduta de vender bebidas alcoólicas e vender produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica, cabendo ao primeiro a aplicação do artigo 63, inciso I, da Lei de Contravenções Penais e ao segundo a aplicação do artigo 243, do Estatuto da Criança e do Adolescente. Levou-se em consideração também a impossibilidade de interpretação extensiva no campo penal, em função do princípio da reserva legal, previsto no artigo 5º, inciso XXXIX, da CF/88.

A aplicação do artigo 243 do Estatuto da Criança e do Adolescente ou do artigo 63, inciso I, da Lei de Contravenções Penais recai na interpretação do conteúdo dos dizeres "produtos que causem dependência física ou psíquica".

A dependência física se manifesta pela alteração das reações químicas que ocorrem no indivíduo, em função de substância externa que faz com que o metabolismo seja modificado. A dependência psíquica refere-se ao desejo do indivíduo na utilização da substância, o que torna difícil afirmar que determinada substância causa dependência psíquica.

Não seria viável ao juiz, no caso concreto, identificar de maneira inequívoca que determinada substância causou dependência psíquica e seria lenta e onerosa a produção de prova para verificar se há a dependência física, valendo-se o Brasil, desta forma, de estudos para criar um regramento interno com as substâncias que causem dependência, o que foi positivado por intermédio da Portaria nº. 344, de 12 de maio de 1988, da ANVISA, órgão diretamente subordinado ao Ministério da Saúde. A Portaria nº. 344/1988 – ANVISA/MS sofre pequenas alterações, sendo a última alteração a que se deu por intermédio da publicação da RDC nº. 07, de 26 de fevereiro de 2009.

As substâncias que se encontram na Portaria nº. 344/1988 – ANVISA/MS causam dependência e foram consideradas pelos países que ratificaram as convenções sobre este tema nocivas o suficiente para serem proscritas ou rigorosamente controladas, não correspondendo à totalidade de substâncias que causam dependência. Por outro lado, a Portaria nº. 344/1988 – ANVISA/MS não se compõe apenas de substâncias ilícitas, contendo substâncias lícitas merecedoras de controle.

Deste a edição da Portaria nº. 344/1988 – ANVISA/MS em nenhum momento houve a inclusão do álcool etílico como substância considerada como causadora de dependência física ou psíquica, merecedora de controle, nem a nicotina.

A separação feita pelo legislador, nos incisos II e III do artigo 81 do Estatuto da Criança e do Adolescente, em bebidas alcoólicas no inciso II e produtos cujos componentes podem causar dependência física ou psíquica no inciso III, apenas reforça o acerto do legislador, evitando criar, no ordenamento jurídico, dois significados para o termo "substância que cause dependência física ou psíquica". O legislador explicitamente separou as bebidas alcoólicas dos demais produtos que contém substâncias que causam dependência física ou psíquica. E o fez por coerência com outros dispositivos legais que mencionam termos da mesma natureza.

Independente da existência do artigo 81 do Estatuto da Criança e do Adolescente, apenas o fato de constar o termo "substância que cause dependência física ou psíquica" no caput do artigo 243 já é o suficiente para concluir que não estão incluídas as bebidas alcoólicas.

Adota-se a possibilidade de interpretação extensiva em sede penal, deste que com o critério de convergência das interpretações gramatical e teleológica. A partir da interpretação gramatical constatou-se a impossibilidade de não aplicação do artigo 243 do Estatuto da Criança e do Adolescente na hipótese de bebidas alcoólicas, enquanto que o resultado da interpretação teleológica foi o inverso. Nesta hipótese, de ausência de convergência entre a interpretação gramatical e a interpretação teleológica, deve-se evitar a interpretação extensiva.

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Ante o exposto, defende-se o acerto no posicionamento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça.

Não é possível argumentar que não cabe infração administrativa, fundada no artigo 249 e no artigo 258 do Estatuto da Criança e do Adolescente, uma vez que a conduta do artigo 243 do Estatuto da Criança e do Adolescente é atípica para o caso de bebidas alcoólicas, já que a responsabilidade criminal independe da responsabilidade administrativa.

Por representar um grave problema de saúde pública, trazendo sérios efeitos deletérios para o organismo, dever-se-ia alterar o artigo 81 e o artigo 243 do Estatuto da Criança e do Adolescente para criminalizar as condutas previstas no artigo 243 no caso de bebidas alcoólicas e produtos fumígemos derivados do tabaco.


Referências Bibliográficas

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DELMANTO, Celso. et alli. Código penal comentado. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

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SCHAEFER, Thais Pletsh; et alli. Álcool, nicotina e substâncias ilícitas: prevalência de uso na vida, idade de primeiro consumo e associação com fatores sócio-demográficos: estudo transversal com adolescentes masculinos oriundos da comunidade, no sul do Brasil. Revista do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Anais da 26ª Semana Científica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, v. 26, supl. 1, 2006. Disponível em: <http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/8191/000569733.pdf?sequence=1> Acesso em 04-10-2009.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl, PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral, 5 ed. rev. atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.


Notas

  1. Após o julgado objeto deste trabalho, o Superior Tribunal de Justiça se manifestou, no mesmo sentido, nos seguintes acórdãos: RHC 20629/SC, Quinta Turma, relator Ministro Felix Fisher, j. 20-09-2007, DJ 19-11-2007 e REsp 942288/RS, Quinta Turma, relator Ministro Jorge Mussi, j. 28-02-2008, DJe 31-03-2008. Também houve manifestação do Superior Tribunal de Justiça nas seguintes decisões monocráticas: CC 105627/PR, decisão monocrática, relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, j. 25-08-2009, data da publicação 04-09-2009; CC 104587/PR, decisão monocrática, relator Ministro Nilson Naves, j. 09-06-2009, data da publicação 17-06-2009; CC 104614/PB, decisão monocrática, relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, j. 29-05-2009, data da publicação 04-06-2009; REsp 1082658/RS, decisão monocrática, relator Ministro Arnaldo Esteves Lima, j. 30-03-2009, data da publicação 14-04-2009; Ag 1054845/PR, decisão monocrática, relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, j. 28-11-2008, data da publicação 05-12-2008; HC 090299/AL, decisão monocrática, relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, j. 31-08-2007, data da publicação 12-09-2007 e Ag 861374/RS, decisão monocrática, relator Ministro Arnaldo Esteves Lima, j. 31-05-2007, data da publicação 13-06-2007. Na base de dados disponível no endereço eletrônico <http://www.stj.jus.br> Acesso em: 30-09-2009, não foram encontrados julgados em sentido contrário. Na base de dados disponível no endereço eletrônico <http://www.stf.jus.br> Acesso em: 30-09-2009, não foram encontrados julgados referentes ao artigo 243 do Estatuto da Criança e do Adolescente.
  2. O artigo 105, inciso III, alínea c, da CF/88 assegura a possibilidade de utilização do recurso especial no caso de divergência entre tribunais e o artigo 541, parágrafo único, do CPC refere-se ao procedimento para o ingresso do recurso especial quando for alegado o dissídio jurisprudencial. Estes dois dispositivos positivam a função uniformizadora do Superior Tribunal de Justiça.
  3. Súmula nº. 7/STJ: A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial.
  4. Controlou-se inicialmente o ópio, a morfina e a cocaína, através da Convenção de Haia, realizada em 1912, que não foi ratificada pelo Brasil. O Decreto n°. 2.994/1938, promulgando a Convenção de Genebra para a repressão do tráfico ilícito de drogas nocivas, de 1936, foi o primeiro instrumento normativo editado no Brasil com a finalidade de repressão do tráfico ilícito de drogas nocivas; e a primeira lista de substâncias controladas consta no Decreto-Lei nº. 891/1938.
  5. Convenção Única sobre Entorpecentes de 1961, promulgada através do Decreto nº. 54.216/1964, a Convenção de 1971 sobre as Substâncias Psicotrópicas, promulgada através do Decreto nº. 79.388/1977 e a Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, de 1988, promulgada através do Decreto n.º 154/1991.
  6. Disponível em: <http://e-legis.anvisa.gov.br/leisref/public/showAct.php?id=35907&word=> Acesso em: 01-10-2009.
  7. Substância entorpecente é toda aquela capaz de agir no sistema nervoso central, provocando estado de entorpecimento, de embriaguez, podendo ser considerada como sinônimo de substância psicoléptica.
  8. Substância que introduzida no organismo provoca alterações na atividade psíquica e no comportamento. São classificadas em psicoanalépticas (estimulantes do sistema nervoso central), psicodislépticas (perturbadoras do sistema nervoso central) e psicolépticas (depressoras do sistema nervoso central).
  9. Nesta lista inclui-se a substância cloreto de etila, princípio ativo do lança perfume.
  10. Nesta lista inclui-se o alcalóide cocaína.
  11. Nesta lista inclui-se o THC, princípio ativo da maconha e o MDMA, princípio ativo do ecstasy.
  12. Lei nº. 5.726/1971, revogada pela Lei nº. 6.368/1976.
  13. Lei nº. 6.368/1976, revogada pela Lei nº. 11.343/2006.
  14. Lei nº. 10.409/2002, revogada pela Lei nº. 11.343/2006.
  15. Lei nº. 11.343/2006.
  16. Dicionário eletrônico Houaiss. Verbete: interpretar. Disponível em: <http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=interpretar&stype=k&x=14&y=11> Acesso em: 03-10-2009.
  17. BONFIM, Edílson Mougenot. CAPEZ, Fernando. Direito Penal: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 157.
  18. Por todos MIRABETE. Julio Fabbrini. Manual de direito penal: parte geral. v. 1, 22 ed. rev. atual. São Paulo: Atlas, 2005, p. 51-54.
  19. Artigo 5º, inciso XXXIX, da CF/88 que reza que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.
  20. DELMANTO, Celso. et alli. Código penal comentado. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 4.
  21. ASÚA, Luis Jiménez da. El criminalista, t. 5, Buenos Aires: La Ley, 1945, p. 240, defende que no caso do intérprete judicial permanecer em dúvida depois do esforço para esclarecer a vontade da lei, deve-se atender ao princípio de maior benignidade. Em sentido semelhante BRUNO, Aníbal. Direito penal: parte geral. t. 1 Rio de Janeiro: Forense, 1967, p. 220-221 afirma que não "se dirá que a interpretação deva ser, para certos casos ou para certas categorias de agentes, mais benévola; nem benévola, nem, por outro lado, rigorosa, em geral ou para situações particulares". E quanto à solução no caso de conflito de interpretações assevera que só "em caso de dúvida irredutível entre interpretações diversas, todas parecendo igualmente aproximadas do texto legal, é que se poderia admitir ainda o valor dos velhos adágios do tipo in dúbio mitius".
  22. ZAFFARONI, Eugenio Raúl, PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral, 5 ed. rev. atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 170-171. Estes autores apresentam outros critérios para a aplicação da interpretação extensiva.
  23. Artigo 227, caput, da CF/88, que informa que "É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão" (grifos nossos).
  24. Ver item 5.1.
  25. STJ, REsp 1072658/MT, decisão monocrática, Ministro Benedito Gonçalves, j. 04-11-2008, data da publicação 14-11-2008; STJ, REsp 1079687/MT, decisão monocrática, Ministro Mauro Campbell Marques, j. 26-02-2009, data da publicação 06-03-2009 e STJ e REsp 1103202/MT, decisão monocrática, Ministro Luiz Fux, j. 16-03-2009, data da publicação 23-03-2009.
  26. STJ, REsp 1071823/GO, decisão monocrática, Ministro Humberto Martins, j. 28-10-2008, data da publicação 14-11-2008.
  27. STJ, REsp 1072658/MT, decisão monocrática, Ministro Benedito Gonçalves, j. 04-11-2008, data da publicação 14-11-2008.
  28. Ver também <http://www.uerj.br/modulos/kernel/index.php?pagina=454&cod_modulo=557> Acesso em: 04-10-2009.
  29. Dentre os estudos sobre o assunto, cita-se SCHAEFER, Thais Pletsh; et alli. Álcool, nicotina e substâncias ilícitas: prevalência de uso na vida, idade de primeiro consumo e associação com fatores sócio-demográficos: estudo transversal com adolescentes masculinos oriundos da comunidade, no sul do Brasil. Revista do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Anais da 26ª Semana Científica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, v. 26, supl. 1, 2006. Disponível em: <http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/8191/000569733.pdf?sequence=1> Acesso em 04-10-2009, que obteve em um universo de 920 adolescentes do sexo masculino, observou-se o consumo de álcool em 86,6%, de nicotina em 43,5%, de maconha em 15,7% e de cocaína em 10,8%, com uma idade de primeiro uso de 13,79 anos para o álcool, 14,05 para a maconha, 14,52 anos para a nicotina e 15,29 anos para a cocaína e CASTRO, Márcia Regina Pizzo de; et alli. A dependência da nicotina associada ao uso de álcool e outras substâncias psicoativas. Semina: Ciências Biológicas e da Saúde, Londrina, v. 29, n. 2, jul./dez. 2008, p. 131-140. Disponível em <http://www.uel.br/proppg/portal/pages/arquivos/pesquisa/semina/pdf/semina_29_2_20_29.pdf> Acesso em 04-10-2009, que em um grupo de 123 indivíduos fumantes, com idades em torno de 46 anos, a idade média de início do uso de nicotina foi de 16 anos.
Sobre o autor
Erick Simões da Camara e Silva

Perito Criminal Federal, Mestre em Direito pela UNIMES/SP, mestre em Química pelo IME/RJ, pós-graduado em Direito pela UNISUL-LFG/SC, graduado em Direito pela UNIRIO/RJ e graduado em Engenharia Química pelo IME/RJ.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Erick Simões Camara. Vender bebidas alcoólicas a criança ou adolescente é contravenção, não crime.: Análise da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2338, 25 nov. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13907. Acesso em: 22 nov. 2024.

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