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Desconstruindo o princípio de supremacia do interesse público.

Incompatibilidades com o sistema jurídico brasileiro

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Agenda 10/12/2009 às 00:00

2 DA ORIGEM AUTORITÁRIA DO PRINCÍPIO DA SUPREMACIA EM UM DIREITO ADMINISTRATIVO A SERVIÇO DOS DETENTORES DO PODER

Ademais, tal uso do princípio em tela falha também por basear-se numa visão que guarda resíduos de Estado Absoluto, ao classificar a relação entre cidadão e Estado como de subordinação tão somente. Não bastasse, ele abstrai da tendência contemporânea a consensualidade nas relações travadas entre a Administração Pública e os administrados [21].

A dogmática administrativista estruturou-se em função de um princípio de preservação da autoridade e não, como se tem difundido, como garantia do cidadão.

Nas palavras de Gustavo BINENBOJM:

O direito administrativo, nascido da superação histórica do Antigo Regime, serviu como instrumento retórico para a preservação daquela mesma lógica de poder.

Uma das categorias forjadas desde essa origem autoritária foi o chamado princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse particular [22].

Em regra, se afirma, erroneamente, que o Direito Administrativo surgiu a partir do momento em que o poder se submeteu a lei. Tal pensamento é claramente percebido nas palavras de Caio TÁCITO:

O episódio central da história administrativa do século XIX é a subordinação do Estado ao regime de legalidade. A lei, como expressão da vontade coletiva, incide tanto sobre os indivíduos como sobre as autoridades públicas. A liberdade administrativa cessa onde principia a vedação legal. O Executivo opera dentro dos limites traçados pelo Legislativo, sob a vigilância do Judiciário [23].

Entretanto, Gustavo BINENBOJM, acompanhado de outros autores, discorda frontalmente de tal posição. Então vejamos em suas palavras:

Tal história (origem do Direito Administrativo) seria esclarecedora, e até mesmo louvável, não fosse falsa. Descendo-se da superfície dos exemplos genéricos às profundeza dos detalhes, verifica-se que a história da origem e do desenvolvimento do direito administrativo é bem outra. E o diabo, como se sabe, está nos detalhes. A associação da gênese do direito administrativo ao advento do Estado de direito e do princípio da separação de poderes na França pós-revolucionária caracteriza erro histórico e reprodução acrítica de um discurso de embotamento da realidade repetido por sucessivas gerações, constituindo aquilo que Paulo Otero denominou ilusão garantística da gênese. O surgimento do direito administrativo, e de suas categorias jurídicas peculiares (supremacia do interesse público, prerrogativas da Administração, discricionariedade, insindicabilidade do mérito administrativo, dentre outras), representou antes uma forma de reprodução e sobrevivência das práticas administrativas do Antigo Regime que a sua superação. A juridicização embrionária da Administração Pública não logrou subordiná-la ao direito; ao revés, serviu-lhe apenas de revestimento e aparato retórico para sua perpetuação fora da esfera de controle dos cidadãos [24].

E o mesmo autor, continua no mesmo sentido:

O direito administrativo não surgiu da submissão do Estado à vontade heterônoma do legislador. Antes, pelo contrário, a formulação de novos princípios gerais e novas regras jurídicas pelo Conseil d’État em França, que tornaram viáveis soluções diversas das que resultariam da aplicação mecanicista do direito civil aos casos envolvendo a Administração Pública, só foi possível em virtude da postura ativista e insubmissa daquele órgão administrativo à vontade do Parlamento. A conhecida origem pretoriana do direito administrativo, como construção jurisprudencial do Conselho de Estado derrogatória do direito comum, traz em si esta contradição: a criação de um direito especial da Administração Pública resultou não da vontade geral, expressa pelo Legislativo, mas de decisão autovinculativa do próprio Executivo [25].

Se algum objetivo de garantia embasou o surgimento e desenvolvimento da teoria administrativista, este foi em favor da Administração, e não de direitos intrínsecos e minimamente necessários ao cidadão.

Paulo OTERO afirma "que só por manifesta ilusão de ótica ou equívoco se poderá vislumbrar uma gênese garantística no direito administrativo – o direito administrativo nasce como direito da Administração Pública e não como direito dos administrados [26]".

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Observe-se que a interpretação clássica, ora criticada, nasceu em um Estado com realidade distinta da atual. Hoje, depois de transições entre ideologias de esquerda (comunismo), de direita (fascismo) e liberais, o Estado é inquestionável e encontra-se consolidado em todo o mundo, não carecendo de quaisquer mecanismos absolutórios para resguardar sua existência e estabilidade. Consequentemente o argumento de que a supremacia é obrigatória para o alcance de segurança jurídica está mais do que superado.

Alçá-lo a uma hierarquia tal que inquestionáveis suas decisões é ser radical na interpretação. Lembrando-se sempre que o atual modelo de Estado veio, justamente, para combater qualquer forma de radicalismo, comum em um passado recente, naqueles Estados em que nasceu a interpretação que se quer superar.

Ressalta-se que em países adotantes do contencioso administrativo, justificado pelo "princípio supremo", o dano à legalidade é ainda maior do que no Brasil. Ao mesmo tempo em que justifica a existência do contencioso extrajudiciário, o pseudoprincípio impede o controle eficiente do Judiciário sobre o Executivo.

Com o mesmo entendimento BINENBOJM:

É curioso anotar como a separação de poderes serviu, contraditoriamente, a esse processo de imunização decisória dos órgãos do Poder Executivo. O mesmo princípio que justificara a criação do contencioso administrativo, intestino ao Executivo, será invocado para impedir que os órgãos de controle exerçam sobre os outros órgãos da Administração poderes de injunção e substituição, em princípio da mesma estrutura de Poder. Em outras palavras, criou-se no interior da Administração um contencioso que não oferecia ao administrado as mesmas garantias processuais dos tribunais judiciários, mas, estranhamente, estava sujeito aos mesmos limites externos de atuação, como se se tratasse do próprio Poder Judiciário [27].

Denota-se que em função de prejuízos causados aos administrados, por um pretenso princípio de supremacia, os países vinculados ao commow law relutam em reconhecer a autonomia científica ao direito administrativo e afastam a jurisdição administrativa (aquela em que há decisão final irrecorrível). Tal fato se deve à tradição daquelas nações de submissão das relações entre Administração e cidadão aos mesmos tribunais e normas que aquelas estabelecidas entre particulares. Não houve formação de uma estrutura dogmática munida de categorias a serviço do poder [28].

Com o presente tópico – Da origem autoritária do Princípio da Supremacia em um Direito Administrativo a serviço dos detentores do poder – pretendeu-se atacar o referido principio por um enfoque diferente do que vem sendo realizado usualmente em outros artigos sobre o tema, ou seja, agride-se o mesmo já em sua origem, demonstrando os traços de absolutismo vinculados ao ‘Antigo Regime’ e sua sustentação como técnica mantenedora de prerrogativas desnecessárias e conflitantes com o sistema vigente e sua filosofia de fundo, que vai na defesa do cidadão.


3 DESCARACTERIZAÇÃO COMO PRINCÍPIO – POSIÇÃO DE HUMBERTO BERGMANN ÁVILA

Ademais, não bastasse o vício de inconstitucionalidade, há incompatibilidade da Supremacia do Interesse Público com o Postulado da Ponderação, que critica qualquer decisão jurisdicional cuja escolha em favor de um, ou de outro interesse, seja particular ou coletivo, realize-se de antemão.

O referido princípio supremo não pode ser considerado como tal, pois não se adéqua a nenhum dos vários significados atribuídos ao termo "princípio", quais sejam, princípio como axioma, princípio como postulado e princípio como norma.

Segundo Humberto Bergmann ÁVILA, o axioma é tido como uma afirmativa aceita por todos, que decorreria do simples raciocínio lógico, portanto, autoexplicativa e não sujeita ao debate. O postulado - em suma - seria uma condição de possibilidade do conhecimento de determinado objeto, sendo que tal objeto não poderia ser compreendido senão através do próprio postulado. [29]

Quanto ao princípio como norma, ÁVILA afirma "que este encontra seu fundamento de validade tão somente no direito positivo, de modo expresso ou implícito [30]", não obtendo, portanto, fundamento de validade autoevidente como o axioma. "Daí dizer-se que os princípios, à diferença das metanormas de validade, instituem razões prima facie de decidir. Os princípios servem de fundamento para a interpretação e aplicação do Direito. Deles decorrem, direita ou indiretamente, normas de conduta ou instituição de valores e fins para a interpretação e aplicação do Direito [31]". A norma princípio depende de possibilidades normativas advindas de outros princípios, que podem derrogá-la em determinado caso concreto. A resolução da colisão de normas princípios depende da instituição de regras de prevalência entre os princípios envolvidos, não se admitindo, uma pré-concepção de supremacia de um para com outro princípio.

Definidos os conceitos com que se vai trabalhar, passa-se a desconstrução conceitual do "princípio" em estudo.

Quanto ao princípio como norma, a crítica se faz porque o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado não está em consonância com o que se define como princípio-norma jurídica, cujo significado resulta de uma adequação e harmonia entre princípios, e que avalia seu fundamento de validade com a ponderação do caso concreto, ao contrário do princípio aqui criticado, em que a prevalência do interesse público é a única possibilidade de aplicação, e todas as outras possibilidades de concretização somente consistem em exceções, não dependendo de averiguação fática.

Sobre o tema, ALEXY registra: "Essa relação de tensão não poderia ser resolvida no sentido de uma absoluta prevalência de uma dessas obrigações do Estado, nenhuma dessas obrigações ganha diretamente a prevalência. O conflito deve ser resolvido, muito mais, por meio de uma ponderação entre os interesses conflitantes" [32].

Sobre o mesmo assunto, Humberto ÁVILA ensina:

A solução de uma colisão de normas princípios depende da instituição de regras de prevalência entre os princípios envolvidos, a ser estabelecida de acordo com as circunstancias do fato concreto e em função das quais será determinado o peso relativo de cada norma princípio. A solução de uma colisão de princípios não é estável nem absoluta, mas móvel e contextual [33].

A segunda crítica acerca do princípio como norma, prossegue no sentido de que o princípio em estudo carece de suporte/fundamento jurídico-positivo de validade, que é característica marcante do princípio-norma, esta situação se expressa bem nos excelentes comentários do professor ÁVILA que merecem transcrição literal.

Ele [princípio] não pode ser descrito como um princípio jurídico –constitucional imanente, mesmo no caso de ser explicado como um princípio abstrato e relativo, pois ele não resulta, ex constitutione, da análise sistemática do Direito.

Primeiro, porque a Constituição brasileira, por meio de normas-princípios fundamentais (arts. 1º a 4º), dos direitos e garantias fundamentais (arts. 5º a 17º) e das normas-princípios gerais (por exemplo, arts. 145º, 150º e 170°), protege de tal forma a liberdade (incluindo a esfera intima e a vida privada), a igualdade, a cidadania, a segurança e a propriedade privada, que se se tratasse de uma regra abstrata e relativa de prevalência seria (não o é , como se verá) em favor dos interesses privados em vez dos públicos. A Constituição brasileira institui normas-princípios fundamentais, também partindo da dignidade da pessoa humana, direitos subjetivos são protegidos, procedimentos administrativos garantidos, o asseguramento da posição dos indivíduos e de seus interesses privados é estabelecido frente ao concorrente interesse público, etc. A Constituição brasileira, muito mais do que qualquer outra, é uma Constituição cidadã, justamente pela particular insistência com que protege a esfera individual e pela minúscula com que define as regras de competência da atividade estatal [34].

Aclarada a situação, o princípio em comento deve ser repensado, uma vez que esse apresenta contradição absoluta com outras normas-princípios ou mesmo normas materiais de categoria constitucional, o que sem sombra de dúvida não lhe dá fidedignidade como princípio. Como se não bastasse, há também incompatibilidade com postulados normativos, como o da proporcionalidade e o da concordância prática. Estes dois pregam o sopesamento de direitos, princípios e garantias, como forma de realização do Direito [35], no entanto a única possibilidade prevista pelo principio basilar do Direito Administrativo é a supremacia do interesse público.

Tais postulados são aceitos de forma inconteste na prática jurídica brasileira. E, mais uma vez, afirmar-se, absolutamente incompatíveis com decisões a priori.

A proporcionalidade – na lição de ALEXY – "não consiste em uma norma-princípio, mas consubstancia uma condição mesma da realização do Direito, já que não entra em conflito com outras normas-princípios, não é concretizado em vários graus ou aplicado mediante criação de regras de prevalência diante do caso concreto, e em virtude das quais ganharia, em alguns casos, a prevalência [36]".

Em suma, o que existe – quando se fala em interesse público – é uma "regra condicional concreta de prevalência" não uma norma-princípio, que depende de possibilidades normativas concretas, e nem um postulado, cuja definição independe de casos concretos e se harmoniza como o sistema.

Exatamente nesse ponto – em que se requer uma nova formulação para a dita supremacia do interesse público – é necessário citar um outro ponto de vista defendido pela autora Odete MEDAUAR, que reconhece a existência do "princípio" supracitado, já com outro nome, princípio da preponderância do interesse público sobre o particular, mas que afirma: "... vem (o princípio de supremacia) sendo matizado pela idéia de que à Administração cabe realizar a ponderação de interesses presentes numa determinada circunstância, para que não ocorra o sacrifício ‘a priori’ de nenhum interesse [37]".

Segundo a posição de MEDAUAR, o interesse público em regra prevalece sobre o privado, mas em algumas situações o oposto ocorre. Para tal entendimento, de forma simplificada, o ônus probatório é maior para aquele que defende o particular e somente ocorreria à vitória do interesse privado por um motivo muito ‘forte’.

Entretanto, cita-se, aqui, a posição de MEDAUAR, apenas para fins de conhecimento, uma vez que os autores defensores da inexistência do princípio da supremacia [38], também não concordam com tal posição.

Vejamos a posição de um deles, Daniel SARMENTO, sobre o ponto de vista de MEDAUAR:

Todavia, esta visão também é francamente incompatível com o nosso sistema constitucional, por fragilizar em demasia os direitos fundamentais. Com efeito, se é verdade, como afirmamos acima, que o entrincheiramento dos direitos fundamentais não significa a sua imunização absoluta diante da possibilidade de ponderações com interesses coletivos, também parece certo, por outro lado, que, no mínimo, há de se exigir no processo ponderativo uma fortíssima carga argumentativa para superação do direito fundamental em proveito do interesse público em confronto.

Mas, para a teoria "fraca" da supremacia do interesse público sobre o particular - como aqui a batizamos -, dá-se o contrário, pois os direitos fundamentais, já na largada do processo ponderativo, partem em franca desvantagem em relação aos interesses públicos. Ela desconsidera que os direitos fundamentais, pela sua própria natureza, visam resguardar para os particulares certos bens jurídicos considerados essenciais para a promoção da sua dignidade, e que devem por isso beneficiar-se de vigorosa proteção diante dos poderes públicos, inclusive quando estes afirmem estar perseguindo interesses da coletividade. Enfim, a teoria "fraca" – e muito mais ainda a "forte", por óbvias razões – debilita a proteção dos direitos fundamentais, subtraindo a exigência de que qualquer restrição a eles seja submetida a um rigoroso escrutínio, em que caiba à medida restritiva, ainda que inspirada no interesse público, e não ao direito contraposto, a maior carga argumentativa [39].

Sobre o autor
Wayne Vinicius Di Francisco Rodrigues

Pós-graduando em Direito Contemporâneo do Curso do Prof. Luiz Carlos.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES, Wayne Vinicius Di Francisco. Desconstruindo o princípio de supremacia do interesse público.: Incompatibilidades com o sistema jurídico brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2353, 10 dez. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13992. Acesso em: 25 nov. 2024.

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