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Mutação constitucional: uma nova perspectiva do STF em sede de controle difuso

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Agenda 27/01/2010 às 00:00

3 TEORIA DA MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL: PROCESSOS INFORMAIS DE MUDANÇA DA CONSTITUIÇÃO

Por vezes, ao longo deste trabalho, já fora mencionada a teoria da Mutação Constitucional, além do Poder Constituinte Difuso que a estabelece [54], diferenciando-a, inclusive, dos processos formais de mudança constitucional (cf. capítulo 1, subcapítulo 1.1). Resta, portanto, apenas traçar breves palavras acerca dos conceitos, fundamentos e, principalmente, dos limites, concluindo, ao final, com a sua aplicação prática no Brasil.

As Constituições são mutáveis por natureza, em face mesmo do caráter movediço e cambiante das forças sociais e políticas. Aliás, isso foi percebido pela Constituição francesa de 1793, ao declarar, em seu art. 28, que: "Um povo tem sempre o direito de rever, reformar e mudar sua Constituição. Uma geração não pode submeter a suas leis as gerações futuras". José Afonso da Silva (2000, p. 280) aduz:

A modificabilidade da Constituição [que pode ser maior ou menor, a depender de se tratar de Constituição flexível ou rígida] constitui mesmo uma garantia de sua permanência e durabilidade, na medida mesma em que é um mecanismo de articulação da continuidade jurídica do Estado e um instrumento de adequação entre a realidade jurídica e a realidade política [e social], realizando, assim, a síntese dialética entre a tensão contraditória dessas realidades.

Nota-se que o objetivo maior é a busca pela estabilidade da Constituição, com vista à sua função essencial de assegurar os direitos fundamentais do homem e a dignidade da pessoa humana. Ao se falar em mudança constitucional, deve vir à mente dois processos, um formal e outro informal, respectivamente: reforma constitucional (emendas e revisão) e mutação constitucional, assaz abordadas outrora.

O termo "mutação constitucional", segundo Wellington Márcio Kublisckas (2009, p. 70), foi usado primeiramente por Paul Laband [55], no livro Wandlungen der deutschen Reichsverfassung, de 1895. A partir de então, o fenômeno passou a ser estudado e conceituado por vários autores. À guisa de um conceito acerca da mutação constitucional, além dos que já foram abordados [cf. na introdução deste trabalho o conceito dado por Uadi Lammêgo Bulos (1997, p. 57) – também reproduzido mais abaixo – e no capítulo 1, subcapítulo 1.1, por José Afonso da Silva (2000, p. 283)], cite-se, por ser inédito, o que é dado por Wellington Márcio Kublisckas (2009, p. 78), após fazer um aprofundamento sobre o tema:

Assim, com fundamento no conceito restrito atualmente aceito em larga escala na doutrina, é possível definir a mutação constitucional como sendo o fenômeno por meio do qual, sem emendas ou revisões (processos formais de mudança da Constituição), são introduzidas, no processo de concretização/aplicação, por meio da interpretação constitucional e/ou da integração pelos costumes, alterações no sentido, significado ou alcance de determinadas normas constitucionais (que tenham o conteúdo minimamente aberto/elástico), desde que estas alterações sejam comportadas pelo programa normativo, ou seja, promovam o desenvolvimento, complementação, esclarecimento etc., das normas constitucionais escritas, mas não violem nem a sua letra e tampouco o seu espírito.

Merece destaque, igualmente, o conceito trazido por Anna Cândida da Cunha Ferraz (1986, p. 10/11):

Assim, em síntese, a mutação constitucional altera o sentido, o significado e o alcance do texto constitucional sem violar-lhe a letra e o espírito. [...] Trata-se, pois, de mudança constitucional que não contraria a Constituição, ou seja, que, indireta ou implicitamente, é acolhida pela Lei Maior. [...] Em resumo, a mutação constitucional, para que mereça o qualificativo, deve satisfazer, portanto, os requisitos apontados. Em primeiro lugar, importa sempre em alteração do sentido, do significado ou do alcance da norma constitucional. Em segundo lugar, essa mutação não ofende a letra nem o espírito da Constituição: é, pois, constitucional. Finalmente, a alteração da Constituição se processa por modo ou meio diferentes das formas organizadas de poder constituinte instituído ou derivado.

Da mesma forma, aponte-se a concepção de J. J. Gomes Canotilho (1995, p. 231) acerca do problema das transições ou mutações constitucionais: "considerar-se-á como transição constitucional a revisão informal do compromisso político formalmente plasmado na constituição sem alteração do texto constitucional. Em termos incisivos: muda o sentido sem mudar o texto".

Dessa forma, observe-se que só serão válidas as mutações constitucionais que não contrariem a Constituição e as garantias ali asseguradas de forma rígida, sob pena de se incorrer em mutações inconstitucionais, como o diz Anna Cândida Ferraz (2009, p. 10) – oportunamente, perceba-se que a autora distingue dois tipos de processos que desembocam na mutação inconstitucional: os processos manifestamente inconstitucionais, que provocam mudanças contra a Constituição, e os processos anômalos, dos quais fazem parte os fenômenos da inércia constitucional dos Poderes constituídos no atuarem a Constituição, do desuso de preceitos ou disposições constitucionais e da mutação tácita de normas constitucionais (FERRAZ, 1986, p. 213/251).

Para José Afonso da Silva (2000, p. 285), o conceito de mutação constitucional, destarte, deve ser restrito – nada impedindo, obviamente, adequações pontuais –, conforme ponderou Hesse (1962, apud SILVA, 2000, p. 285), pois do contrário a função limitadora de alguns princípios constitucionais estaria quebrantada. Lembre-se, como nota José Afonso da Silva (2000, p. 284), que Constituição flexível está para espíritos conservadores e aristocráticos – em vista da forma de governo restar elástica e indefinida – assim como Constituição rígida está para a massa popular – que tem seus direitos fundamentais protegidos do arbítrio do poder.

Como fundamento das mutações constitucionais, segundo José Afonso da Silva (2000, p. 285), tem-se o denominado poder constituinte difuso, também já mencionado outrora. Apenas tenha-se o seguinte cuidado apontado por Anna Cândida Ferraz (1986, p. 10):

Tais alterações constitucionais, operadas fora das modalidades organizadas de exercício do poder constituinte instituído ou derivado, justificam-se e têm fundamento jurídico: são, em realidade, obra ou manifestação de uma espécie inorganizada do poder constituinte, o chamado poder constituinte difuso, na feliz expressão de Burdeau. [...] Destina-se a função constituinte difusa a completar a Constituição, a preencher vazios constitucionais, a continuar a obra do constituinte. Decorre diretamente da Constituição, isto é, o seu fundamento flui da Lei Fundamental, ainda que implicitamente, e de modo difuso e inorganizado.

Para José Afonso da Silva (2000, p. 286/287), costume constitucional, preenchimento de lacunas e o desuso de competências constitucionais não são vetores onde se embarcam as mutações constitucionais. Isso porque, quanto aos costumes, difícil fica de se referir a eles num regime de Constituição rígida. Quanto às lacunas, adverte que simplesmente o que não está na Constituição é porque assim o quis o Poder Constituinte. Por último, em relação ao desuso, afirma que o não uso das competências constitucionais não importa desqualificá-las, pois a qualquer tempo poderão ser utilizadas novamente.

Avançando no tema, devem-se fixar quais os tipos de mutações constitucionais e, consequentemente, os seus limites. Mais uma vez se vale aqui do multicitado José Afonso da Silva (2000, p. 288), para quem são

[...] válidas as mutações constitucionais provenientes: a) dos atos de complementação constitucional [e.g. atos jurídicos normativos – leis, regulamentos]; b) da interpretação e da construção constitucionais [e.g. atos jurídicos jurisdicionais – basicamente, as sentenças dos Tribunais Constitucionais]; c) das práticas político-sociais, convertidas em convenções constitucionais.[ [56]]

Visto isso, cabe analisar cada uma dessas hipóteses, começando pelos atos de complementação constitucional. Esses são atos do Poder Público que visam à complementação de normas constitucionais, denotando "[...] que só são válidas mutações deles emanadas quando expandem normas constitucionais que requeiram integração para sua aplicação" (SILVA, 2000, p. 288).

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Citem-se alguns exemplos de normas que precisam de complementação: é o caso da lei que define os crimes de responsabilidade, prevista no art. 85, parágrafo único da CF/88, sem a qual o princípio constitucional da responsabilidade não é realizado; é a lei que preceitua o sistema eleitoral, como o alistamento, voto obrigatório, sufrágio universal, representação proporcional, partidos políticos, tudo constante nos art. 14, 17 e 45 da CF/88, podendo ainda se mencionar a previsão de lei complementar sobre inelegibilidades (art. 14, § 9º). "São hipóteses de legislação que desdobra o conteúdo das normas constitucionais" em que a lei "[...] se caracteriza como desdobramento necessário do conteúdo da Constituição" (SILVA, 2000, p. 289). [57]

Não somente a lei que desenvolve o conteúdo normativo constitucional, sendo considerada por isso "como um instrumento de realização da eficácia da Constituição, exercendo a função transformadora da sociedade, alterando-lhe o controle social, impondo mudanças sociais democráticas" (SILVA, 2000, p. 289). Basta que se lembre que o art. 196 da CF/88 garante o direito à saúde mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução dos riscos de doenças e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Nasce daí também outro fundamento: o de que, para efetivar a vontade constitucional, muitas vezes tem que se completar a norma constitucional. Se essa integração não ocorre, ter-se-á um vazio, uma omissão, uma inércia, que, como apontou Carlos Augusto Alcântara Machado (1999, p. 135), promove uma mutação inconstitucional. Por outro lado, por que não deixar que, nesses casos, haja uma integração feita pelo Judiciário? Isso, por certo, será resultado de autêntica mutação constitucional, que completará a eficácia da Constituição, desde que não distorça o seu espírito.

Quanto à interpretação e construção constitucionais, finque-se a seguinte premissa: "[...] a interpretação, especialmente a judicial, exerce papel fundamental de adaptação das normas constitucionais às exigências de novos conceitos da realidade por elas pensadas" (SILVA, 2000, p. 291), conquanto não viole ou destrua a Constituição. Em relação especificamente à construção constitucional, significa dizer que esse é um outro processo fecundo de adaptação dos textos constitucionais à realidade em transformação constante. Nas palavras de José Afonso da Silva (2000, p. 293), "a construção constitucional é uma forma de interpretação fecunda na medida em que, partindo de uma compreensão sistemática de princípios e normas constitucionais, constrói instituições explicitamente não previstas". Cita-se como exemplo disso a criação do controle de constitucionalidade difuso das leis, pela sentença proferida pelo Chief Justice Marshall, em 1803, que trouxe à baila a teoria da nulidade do ato legislativo que contrarie a Constituição [58].

Embora essas considerações, José Afonso da Silva (2000, p. 294) admite que tal construção constitucional não é tão fértil na realidade do Judiciário brasileiro, o que, entretanto, pode estar mudando, em virtude da intensificação da jurisprudencialização e do ativismo judiciário, corroborando, para tanto, a nova tendência do STF em sede de controle difuso.

Por fim, as práticas político-sociais, onde se manifestam as chamadas convenções constitucionais: "As convenções são normas extrajurídicas formadas por meio de precedentes políticos que se tornaram práticas costumeiras relativamente às atribuições e funcionamento dos poderes" (SILVA, 2000, p. 295). É o que se chama de "consenso costumeiro". Ocorre, normalmente, no âmbito de Constituições não-escritas e flexíveis, podendo, porém, ocorrer também nos regimes de Constituição rígida – mas aqui, em geral, sempre importam desvios na reta compreensão das normas constitucionais. Exemplo maior dessas práticas no Brasil é o abuso das medidas provisórias, editadas, muitas vezes, sem a observância de seus pressupostos, o que revela prática contrária à função legislativa do Congresso Nacional, ficando este ancorado em razão de ter de apreciá-la, sob pena de se entrar em regime de urgência.

A doutrina admite as mutações constitucionais conquanto se tenham presentes alguns limites indispensáveis para a sua conformação com a ordem constitucional, com vista à maior defesa da Constituição. E para fazer prevalecer a vontade da Constituição, importantes as decisões judiciais nesse sentido, como no caso de o Judiciário impedir a reiteração indefinida de medidas provisórias.

Konrad Hesse (1962, p. 99 e 101/102, apud SILVA, 2000, p. 297), consoante explicação de José Afonso da Silva (2000), se preocupou em estabelecer limites às mutações constitucionais, nos seguintes termos:

A mutação constitucional e seus limites só se consegue entender com clareza quando a modificação do conteúdo da norma é compreendida como mudança "no interior" da norma constitucional mesma, não como conseqüência de desenvolvimento produzido fora da normatividade da Constituição, e cuja "mutação" em normatividade estatal tampouco se pode explicar satisfatoriamente quando se parte de uma relação de coordenação correlativa entre normalidade e normatividade. [...] Onde a possibilidade de uma compreensão lógica do texto da norma termina ou onde uma determinada mutação constitucional apareceria em clara contradição com o texto da norma, terminam as possibilidades da interpretação da norma e, com isso, as possibilidades de uma mutação constitucional.

Para ele, o limite insuperável da interpretação constitucional é a própria Constituição e sua normatividade: "onde o intérprete passa por cima da Constituição, ele não mais interpreta, senão ele modifica ou rompe a Constituição" (HESSE, 1983, p. 69/70, apud KUBLISCKAS, 2009, p. 150). De seus estudos, Wellington Márcio Kublisckas (2009, p. 150/151) extrai três ideias básicas: 1) as mutações constitucionais são alterações produzidas dentro da norma constitucional; 2) as mutações constitucionais não são ilimitadas juridicamente na medida em que a aplicação da Constituição deve sempre estar vinculada às normas postas; 3) os limites das mutações constitucionais são justamente as possibilidades de compreensão da norma constitucional que não entrem em conflito com o programa normativo. Arremata o referido autor, criticando opinião divergente logo a mais esboçada:

Contudo, há outros limites além daqueles de natureza meramente subjetiva do aplicar que impedem que as mutações constitucionais ocorram indiscriminadamente e em contrariedade com a Constituição. Com efeito, uma mutação constitucional apenas é aceitável quando o ato que a origina (i) não contraria de modo evidente a letra ou o espírito da Constituição; (ii) está devidamente fundamentado nos preceitos constitucionais interpretados; (iii) é racional; e (iv) é legitimamente aceito pela comunidade (jurídica e não-jurídica). (KUBLISCKAS, 2009, p. 153)

Logo, não deixa de ser interessante a constatação de Wellington Márcio Kublisckas (2009, p. 153/156) de duas grandes cadeias de limitações das mutações constitucionais: a de ordem subjetiva e a de ordem objetiva.

Os limites subjetivos são a postura ética do aplicador, que deve ter uma consciência de não estar violando as normas constitucionais, e a consciência jurídica geral, já que o aplicador da Constituição, mantendo relação de recíproca retroalimentação (feedback) com os demais atores sociais, não possui total liberdade na definição do sentido, significado e alcance das normas constitucionais, vinculando-se, por exemplo, à ciência jurídica, bibliografia especializada, opinião pública, etc.

Por sua vez, os limites objetivos são o respeito ao programa normativo – em que "interpretações que nitidamente não são acolhidas pelo programa normativo e que, portanto, contrariam o texto e/ou o espírito da Constituição não podem ser aceitas como legítimas mutações constitucionais" [59] (KUBLISCKAS, 2009, p. 155) – e a necessidade de as mutações constitucionais serem fundamentadas e razoáveis, pelo que o hermeneuta deve utilizar argumentações compreensíveis e racionalmente sustentáveis, revelando-se obrigatória a motivação [60], aduzindo, ainda, que, "por outro lado, não basta que o ato ou a decisão que introduz uma mutação constitucional seja motivado. Ele também deve ser racional de modo a que seja possível fazer o seu controle" (KUBLISCKAS, 2009, p. 155).

Não obstante tudo quanto dito até agora acerca dos limites da mutação constitucional, uma visão diferente acerca da questão é dada por Uadi Lâmmego Bulos (1997, p. 87/92), sendo essa concepção mais adequada aos propósitos do presente trabalho [61]. Isso porque o autor entende que não é possível se fixar limites jurídicos claros e precisos para a mutação constitucional, dada a natureza informal do fenômeno, chegando mesmo a não descartar, se o caso, alterações na letra dos preceitos supremos do Estado:

[...] a prática constitucional evidencia a impossibilidade de traçarmos, com exatidão, as limitações a que está sujeito o poder constituinte difuso, de que nos fala Burdeau, responsável pela ocorrência daquelas alterações informais, que, se não alteram a letra dos preceitos supremos do Estado, modificam-lhes a substância, o sentido, o significado e o alcance.

Em verdade, não é possível determinar os limites da mutação constitucional, porque o fenômeno é, em essência, o resultado de uma atuação de forças elementares, dificilmente explicáveis, que variam conforme acontecimentos derivados do fato social cambiante, com exigências e situações sempre novas, em constante transformação. (BULOS, 1997, p. 87/88, grifo nosso)

Baseia-se, para tanto, nas anotações de Hesse [62] (1992, p. 90, apud BULOS, 1997, p. 88), afirmando que

Uma teoria jurídica dos limites da mutação constitucional só seria possível, ressalta Hesse, "mediante el sacrificio de uno de los presupuestos metódicos básicos del positivismo: la estricta separación entre ‘Derecho’ y ‘realidad’, así como los que constituye su consecuencia, la inadmisión de cualesquiera consideraciones históricas, políticas y filosóficas del proceso de argumentación jurídica". (BULOS, 1997, p. 88)

Ademais, aponta que Heller (1968, apud BULOS, 1997, p. 89) admitiu que a mutação constitucional encontra limitações na própria normatividade da Constituição: "Entende que uma mudança de significado na norma constitucional encontra-se adstrita à normalidade dos fatos, a qual não pode renegar por completo a normatividade, pois ambos os elementos estão coordenados entre si, formando a tensão entre o sein [ser] e o soler [dever ser]" (BULOS, 1997, p. 89). E continua:

Ao prospectar que a mutação constitucional encontra seu limite na própria normatividade da Constituição, Heller utilizou um pensamento genérico e difícil de precisar, sem pontos de apoio que permitam uma concretização do problema. Estamos que é impossível estipular critérios exatos para o delineamento dos limites da mutação constitucional. Isso porque uma Constituição é um organismo vivo, em cujo esteio se encontra a autoconsciência de um povo, assentado em uma base territorial definida e submetido a um governo soberano, numa determinada época histórica, sujeita a fatores sociais cambiantes. Como a doutrina das mutações constitucionais é o reflexo, teórico e prático, desses fatores sociais cambiantes, ela se produz quando a normatividade constitucional se modifica pelo influxo de acontecimentos que não afetam a sua forma, porém transmutam seu conteúdo. Conseguintemente, o fenômeno é involuntário e intencional, como disseram Laband e Jellinek, e, destarte, não se pode imprimir-lhe uma exatidão, a ponto de prever-se a unanimidade dos casos de mutação constitucional que a experiência possa apresentar. Diversamente da reforma constitucional, a mudança difusa da Lei maior não segue limites previstos pelo legislador, nem tampouco formas expressas e sacramentadas. Surge espontaneamente, de modo sub-reptício, sem previsões de quando irá ocorrer. (BULOS, 1997, p. 89/90, grifo nosso e itálico do autor)

Estendendo a função de interpretar as normas constitucionais aos três Poderes, afirma contundentemente Georg Jellinek (1991, p. 15/16, apud BULOS, 1997, p. 90/91):

No sólo el legislador puede provocar semejantes mutaciones, también pueden producirse de modo efectivo mediante la práctica parlamentaria, la administrativa o gubernamental y la de los tribunales. Han de interpretar las leyes y también las normas constitucionales, pero de modo subrepticio una ley constitucional puede adquirir, poco a poco, un significado totalmente distinto al que tenía en el sistema originario.

Com efeito, Uadi Lammêgo Bulos (1997, p. 91, grifo nosso e itálico do autor) conclui que os limites existentes são subjetivos, ou seja, a consciência do intérpretepostura ética do aplicador – em não estar desrespeitando a norma constitucional, tendo, assim, ineliminável dever ético para com todo o corpo social, sendo, porém, "inegável que esse limite subjetivo [...], através de interpretações maliciosas e traumatizantes, não pode ser levado às últimas conseqüências, diante da realidade cotidiana dos diversos ordenamentos constitucionais":

Diante de tudo isso, as mudanças informais da Constituição não encontram limites em seu exercício. A única limitação que poderia existir – mas de natureza subjetiva, e, até mesmo, psicológica – seria a consciência do intérprete de não extrapolar a forma plasmada na letra dos preceptivos supremos do Estado, através de interpretações deformadoras dos princípios fundamentais que embasam o Documento Maior. Assim, evitar-se-iam as mutações inconstitucionais, e o limite, nesse caso, estaria por conta da ponderação do intérprete, ao empreender o processo interpretativo que, sem violar os mecanismos de controle de constitucionalidade, adequaria a Lei Máxima à realidade social cambiante.

Toda essa concepção distinta de Uadi Lammêgo Bulos (1997) acerca dos limites da mutação constitucional reflete, como não poderia deixar de ser, no conceito por ele elaborado, reproduzido abaixo, que não traça como limite do fenômeno o texto da Constituição, senão a própria Constituição em sistema:

Assim, denomina-se mutação constitucional o processo informal de mudança da Constituição, por meio do qual são atribuídos novos sentidos, conteúdos até então não ressaltados à letra da Lex Legum, quer através da interpretação, em suas diversas modalidades e métodos, quer por intermédio da construção (construction), bem como dos usos e costumes constitucionais. (BULOS, 1997, p. 57)

De uma forma ou de outra, no final, vale a ponderação feita por Anna Cândida da Cunha Ferraz (1986, p. 10): "Trata-se, pois, de mudança constitucional que não contraria a Constituição, ou seja, que, indireta ou implicitamente, é acolhida pela Lei Maior", sendo que tudo que for manifestamente contrário a ela não é uma mutação constitucional, senão uma mutação inconstitucional. Ou, ainda, aproveitando-se da tautológica, porém espirituosa advertência do Juiz Marshall (apud KUBLISCKAS, 2009, p. 152), "não se pode perder de vista que, ao interpretar a Constituição, o que se está interpretando é a Constituição". Contudo, havendo mutação inconstitucional, Anna Cândida da Cunha Ferraz (1986, p. 214) assevera: "O único tipo de controle que poderá incidir sobre tais mutações é o controle constitucional não organizado, isto é, o acionado por grupos de pressão, pela opinião pública, pelos partidos políticos, etc.".

3.1 Aplicação da Mutação Constitucional no Brasil pós-88

Uma vez estudados os aspectos teóricos da mutação constitucional, passa-se analisar tal mecanismo de alteração sob a realidade constitucional no Brasil pós-88. Essa abordagem se revela especialmente importante devido à junção de vários elementos peculiares – como a elaboração da Constituição de 1988 durante o período de consolidação e intensificação da globalização, além da incorporação de interesses específicos e conjunturais à época dos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte (lembre-se que o texto constitucional não partiu de um projeto-base oficial, sendo resultado da aglutinação de projetos parciais). Como adverte Wellington Márcio Kublisckas (2009, p. 163),

A junção dos elementos mencionados anteriormente [...] deu origem ao surgimento de inúmeros pontos de tensão dentro do texto constitucional brasileiro vigente, os quais, de tempos em tempos, se intensificam e passam a exercer forte pressão no sentido da alteração da Constituição. Com isso se explica, ao menos em partes, a importância teórica do tema e se justifica a enorme incidência prática dos mecanismos de modificação constitucional no Brasil pós-88.

Revela-se, diante dessa conjuntura, que um dos pontos de tensão na Constituição de 1988 é o art. 52, X, assaz delineado. Tanto o é assim que, como já dito, Gilmar Mendes (2009a, p. 32) entende "que o instituto da suspensão pelo Senado assenta-se hoje em razão exclusivamente histórica", restando o tema aberto para inúmeras controvérsias.

A Constituição brasileira se amolda à teoria da mutação constitucional em virtude de sua abertura e elasticidade, que decorrem de três fatores: 1) o caráter altamente principiológico e estrutural de seu texto, em especial quanto aos temas dos direitos fundamentais, ordem econômica, ordem social, etc.; 2) a presença de inúmeras normas sujeitas à complementação (normas de eficácia contida e de eficácia limitada); 3) a existência de vários dispositivos antagônicos, cuja aplicação de uma hermenêutica harmonizadora diante de conceitos indeterminados, lacunas normativas (descobertas e ocultas) e os próprios dispositivos antagônicos entre si. "Assim, os dispositivos constitucionais dotados de suficiente abertura e elasticidade [...] podem perfeitamente ser (e têm efetivamente sido) modificados por meio da atuação dos mecanismos informais de alteração da Constituição" (KUBLISCKAS, 2009, p. 164/165), respeitando-se, sempre, os superprincípios constitucionais – princípio da constitucionalidade, princípio do Estado Democrático (Constitucional) de Direito e princípio da proteção dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana.

Dessa forma, a conjugação do caráter aberto de grande parte das normas da Constituição Federal brasileira de 1988 com o fortalecimento do STF como agente concretizador da Lei Fundamental – além do aperfeiçoamento dos mecanismos de controle de constitucionalidade e a alteração da composição do Supremo – importam na relevância do tema acerca da mutação constitucional no Brasil pós-88.

Alguns exemplos práticos em que o STF introduziu mutações constitucionais nas normas da Constituição de 1988 podem ser citados, com o escólio de Wellington Márcio Kublisckas (2009, p. 251/261):

I- Mutação constitucional e direitos fundamentais:

a) HC nº 82.424/RS e a definição do alcance do termo "racismo" (art. 5º, XLII); b) HC nº 82.959-7/SP e a progressão de pena nos crimes hediondos (art. 5º, XLVI); c) RE nº 251.445/GO e a abrangência do termo "casa" (art. 5º, XI); d) HC nº 74.051-3/SC e a proteção do estrangeiro não residente no Brasil (art. 5º, caput);

II- Mutação constitucional e princípio federativo: a) ADIN nº 276/AL e a adoção das regras do processo legislativo da União pelos Estados-membros (art. 11 do ADCT); b) ADIN nº 1.704/MT, ADIN nº 3.323/DF e o art. 22, XI, da Constituição Federal; c) ADIN nº 2.948/MT e a competência para legislar sobre bingos (art. 22, XX); d) ADIN nº 3.035 MC/PR e a competência sobre produtos geneticamente modificados (art. 22, I, VII, X e XI, e art. 24, I e VI); e) alcance das competências municipais – "assuntos de interesse local" (art. 30, I): AI nº 622.403-AgR e RE nº 182.976 – que reafirmaram que o Município é competente para regular o horário do comércio local; RE nº 397.094 – que fixou que o Município detém competência para impor limites ao tempo de espera em fila dos usuários dos serviços prestados pelos cartórios; ADIN nº 1842/RJ e ADIN nº 2077/BA – referente à definição da competência para saneamento básico, como a prestação dos serviços públicos de abastecimento de água e esgotamento sanitário em regiões metropolitanas;

III- Mutação constitucional e regras do processo democrático: Nesse ponto, o STF tem promovido uma reforma política informal, ao definir, independentemente da atuação do Parlamento, algumas regras importantes ao funcionamento do jogo democrático: a) RE nº 197.917-8/SP e a fixação proporcional do número de vereadores (art. 29, IV); b) MS 26.603-1/DF e a fidelidade partidária (art. 17, § 1º);

IV- Reclamação nº 4.335-5/AC, art. 52, X, da Constituição de 1988 e os limites da mutação constitucional: esse é o caso no qual o STF vem tratando, desde 2007, de maneira mais direta o fenômeno da mutação constitucional, e será objeto de todo o próximo e último capítulo.

Por fim, pode ser acrescida nessa lista, embora não seja mudança de norma da Constituição, a emblemática mutação constitucional ocorrida no texto do art. 514 do Código de Processo Penal, feita pelo Superior Tribunal de Justiça através da Súmula 330, DJ 20/09/2006.

Sobre o autor
Ricardo Diego Nunes Pereira

Advogado. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Sergipe. Pós-graduado em Direito do Estado (Constitucional, Administrativo e Tributário). Foi secretário-geral da Comissão de Combate ao Aviltamento de Honorários Advocatícios da OAB/SE. Autor de artigos e livros de interesse jurídico. Autor do livro “Direito Judicial Criativo: ativismo constitucional e justiça instituinte”, com menção no Library of Congress, nos EUA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEREIRA, Ricardo Diego Nunes. Mutação constitucional: uma nova perspectiva do STF em sede de controle difuso. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2401, 27 jan. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14259. Acesso em: 22 dez. 2024.

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