4 ASPECTOS DA DIVERGÊNCIA DA NOVA PERSPECTIVA DO STF EM SEDE DE CONTROLE DIFUSO
A Reclamação 4.335-5/AC tem tudo para quebrar paradigmas em relação ao controle difuso. Não cabe mais, a essa altura, após tantas argumentações a seu favor, rever uma por uma. Apenas resta, logo depois de traçar os fatos que a demandaram, propor o seguinte: no subtópico 4.1 será vista a posição daqueles que acham tratar-se de uma Mutação Inconstitucional, tese essa capitaneada por Lenio Luiz Streck, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira e Martonio Mont’Alverne Barreto Lima (2007), seguidos por Marcelo Novelino (2009), Pedro Lenza (2009), Wellington Márcio Kublisckas (2009), o professor da Universidade Católica de Petrópolis – UCP, Roberto Wagner Lima Nogueira (2008), e o professor Mestre da Universidade Federal de Sergipe – UFS, Carlos Augusto Alcântara Machado [63] – o Ministro Sepúlveda Pertence julgou improcedente a reclamação e o Ministro Joaquim Barbosa não a conheceu, mas ambos concederam habeas corpus de ofício; já no subtópico 4.2, colacionar-se-ão trechos dos votos dos Ministros Gilmar Mendes e Eros Grau, afirmando ser autêntica a expendida Mutação Constitucional no dispositivo da Carta Maior (art. 52, X), corroborando para tanto as posições de Dirley da Cunha Júnior (2008) e André Ramos Tavares (1998), delineadas em capítulos anteriores.
No ano de 2006, a Defensoria Pública do Estado do Acre ajuizou Reclamação (Rcl. 4.335, Rel. Min. Gilmar Mendes) no STF contra a decisão do Juiz de Direito da Vara das Execuções Penais da Comarca de Rio Branco/AC, que indeferiu o pedido de progressão de regime em favor de vários réus que cumprem penas de reclusão em regime integralmente fechado, em decorrência da prática de crimes hediondos, fazendo afixar, até mesmo, nas dependências do fórum, comunicado com o seguinte teor, conforme se extraí do voto do Ministro Gilmar Mendes:
Comunico aos senhores reeducandos, familiares, advogados e comunidade em geral, que A RECENTE DECISÃO PLENÁRIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL proferida nos autos do "habeas corpus" nº 82.959, A QUAL DECLAROU A INCONSTITUCIONALIDADE DO DISPOSITIVO DA LEI DOS CRIMES HEDIONDOS QUE VEDAVA A PROGRESSÃO DE REGIME PRISIONAL (ART. 2º, § 1º DA Lei 8.072/90), SOMENTE TERÁ EFICÁCIA A FAVOR DE TODOS OS CONDENADOS POR CRIMES HEDIONDOS OU A ELES EQUIPARADOS QUE ESTEJAM CUMPRINDO PENA, a partir da expedição, PELO SENADO FEDERAL, DE RESOLUÇÃO SUSPENDENDO A EFICÁCIA DO DISPOSITIVO DE LEI declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, nos termos do art. 52, inciso X, da Constituição Federal.
O fundamento da reclamação foi que estaria sendo infringida a decisão do STF proferida nos autos do HC nº 82.959/SP (Rel. Min. Marco Aurélio, j. 23/02/2006, DJ 01/09/2006), em que a Corte afastou a vedação da progressão de regime aos condenados pela prática de crime hediondo, ao considerar inconstitucional o art. 2º, § 1º, da Lei 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos). Sustentam os reclamantes, pois, que a denegação do pedido de progressão de regime desrespeita a decisão do STF, mesmo tendo sido proferido julgamento em sede de controle difuso de constitucionalidade, através do HC 82.959.
Como foi dito oportunamente, a Reclamação 4.335 não foi ainda julgada em definitivo pelo STF, estando, neste momento, empatada a votação (2 x 2). No entanto, os votos já proferidos e o tema em questão lançaram discussões acerca da ocorrência ou não da mutação constitucional no dispositivo do art. 52, X, CF/88, que diz, textualmente, que "compete privativamente ao Senado Federal suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal".
A partir disso, formaram-se as duas correntes supracitadas. Em resumo, a corrente a favor da modificação da competência do Senado para apenas dar publicidade às decisões do STF que suspendam a execução de lei declarada inconstitucional [64] baseia-se nas alterações no sistema de controle de constitucionalidade vigente no Brasil – corrente dos Ministros Gilmar Mendes e Eros Grau. Esse movimento, defendido veementemente por Gilmar Mendes [65], visa a, dessa forma, atribuir eficácia erga omnes às decisões de inconstitucionalidade proferidas em sede de controle incidental ou concreto, que já se revestiriam, desde a sua publicação, de eficácia geral e vinculante (teoria da nulidade da lei inconstitucional). Para o Ministro-relator da Rcl. 4.335,
A exigência de que a eficácia geral da declaração de inconstitucionalidade proferida pelo Supremo Tribunal Federal fique a depender de uma decisão do Senado Federal, introduzida entre nós com a Constituição de 1934 e preservada na Constituição de 1988, perdeu grande parte do seu significado com a introdução do controle abstrato de normas. (STF, voto do Min. Rel. Gilmar Mendes, DJ 09/02/2007, p. 31/32)
Na vertente oposta, representada pelos Ministros Sepúlveda Pertence e Joaquim Barbosa, defendeu-se que a interpretação tradicional da regra constitucional deve ser mantida, na medida em que (i) mesmo com o advento do controle concentrado, a Constituição Federal em nenhum momento teria abandonado o sistema difuso, sendo, portanto, indispensável a participação do Senado Federal a fim de se suspender as normas declaradas inconstitucional in concreto, além de (ii) não estarem presentes dois importantes requisitos para a configuração da mutação constitucional, quais sejam, o decurso do tempo e o desuso definitivo do dispositivo (cf. KUBLISCKAS, 2009, p. 260).
Para essa corrente, destarte, sendo o art. 52, X, CF/88, uma norma hermética e sendo a mutação constitucional jungida pelo respeito à letra e ao espírito da Constituição, tal dispositivo somente pode ser alterado pelos mecanismos formais de modificação constitucional, sob pena de se incorrer em hipótese de mutação inconstitucional. Nesse sentido, entendem Lenio Luiz Streck, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira e Martonio Mont’Alverne Barreto Lima (2007), ao afirmarem que a pretensão dos Ministros Gilmar Mendes e Eros Grau implicaria "não a atribuição de uma (nova) norma a um texto (Sinngenbung), mas, sim, a substituição de um texto por outro (construído pelo Supremo Tribunal Federal)".
4.1 Mutação Inconstitucional – da alteração do texto constitucional
Lenio Luiz Streck, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira e Martonio Mont’Alverne Barreto Lima (2007) redigiram instigante artigo sobre o tema, intitulado A Nova Perspectiva do Supremo Tribunal Federal sobre o Controle Difuso: Mutação constitucional e Limites da Legitimidade da Jurisdição Constitucional. Nesse trabalho, os autores tratam de diversos assuntos, como o controle de constitucionalidade, poder constituinte, equilíbrio entre os Podres da República e sistema federativo, tendo como objeto de estudo a famigerada Reclamação 4.335-5/AC e a possível ruptura paradigmática no plano da jurisdição constitucional no Brasil.
Eles propõem saber se é "possível atribuir efeito erga omnes e vinculante às decisões emanadas do controle difuso, dispensando-se a participação do Senado Federal ou transformando-o em uma espécie de diário oficial do Supremo Tribunal Federal em tais questões" (STRECK; OLIVEIRA; LIMA, 2007), porém já firmando que, caso prevaleça a tese de Gilmar Mendes, haverá, na verdade, a substituição de um texto pelo outro, e não a atribuição de um novo sentido normativo ao texto, ou seja, haverá uma alteração do próprio texto constitucional. Conforme já adiantado parágrafos atrás, Lenio Luiz Streck juntamente com os coautores não concordam com os votos proferidos pelos Ministros Gilmar Mendes e Eros Grau, motivo pelo qual buscam outras alternativas teóricas a fim de contribuir com o acirrado debate.
Quanto ao argumento de que a Reclamação cabe contra as teses do Supremo, conforme defendeu Gilmar Mendes em seu voto, citando a Rcl. 1.880, explicam que o STF julga pelo Recurso Extraordinário "as causas decididas em única ou última instância", ou seja, julga a aplicação dada à Constituição em situações jurídicas concretas, e não meras teses sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de leis e de atos normativos. O Supremo Tribunal, aqui, não funciona nem mesmo como mera corte de cassação, mas como corte de apelação, cabendo-lhe julgar tanto o error in procedendo quanto o error in iudicando. Assim, o resultado da atuação do Supremo Tribunal Federal no controle difuso de constitucionalidade nunca é o julgamento de uma tese, e dessa atuação não resulta uma teoria, mas uma decisão; e essa decisão trata da inconstitucionalidade como preliminar de mérito para tratar do caso concreto, devolvido a ele por meio de recurso, sob pena de se estar negando jurisdição (art. 5.º, XXXV e LV, da Constituição da República). (STRECK; OLIVEIRA; LIMA, 2007, grifo dos autores)
Mais adiante, os articulistas afirmam que, em sede de controle difuso, entender daquela forma proposta pelo Ministro Gilmar Mendes "desloca a discussão jurídica para os discursos de fundamentação (Begründungsdiskurs), elaborados de forma descontextualizada", ou seja, "em outras palavras, a tese esgrimida pelo Ministro Gilmar Mendes reduz a discussão jurídica a questões de justificação da validade das normas". E arrematam:
Desta forma, a alegação de que é cabível reclamação contra as "teses" - e não contra os julgados – [66] do Supremo Tribunal Federal incorre na imprecisão inerente ao papel das cortes controladoras da constitucionalidade que é o de agirem somente diante de uma situação contextualizada [67]. Agir no limite de um contexto significa obedecer aos ditames do poder constituído, condição existencial do Supremo Tribunal Federal como poder jurisdicional vinculado à Constituição. (STRECK; OLIVEIRA; LIMA, 2007, grifo dos autores)
As críticas que os autores fazem ao modelo proposto na Rcl. 4.335 não param por aí. Afirmam que toda e qualquer decisão do STF se legitima tanto por sua complexa responsabilidade constitucional de guarda da Lei Maior quanto pelo desenvolvimento de um processo jurisdicional em que a sociedade tem participação, sendo que
[...] o modelo de participação democrática no controle difuso também se dá, de forma indireta, pela atribuição constitucional deixada ao Senado Federal. Excluir a competência do Senado Federal – ou conferir-lhe apenas um caráter de tornar público o entendimento do Supremo Tribunal Federal – significa reduzir as atribuições do Senado Federal à de uma secretaria de divulgação intra-legistativa das decisões do Supremo Tribunal Federal; significa, por fim, retirar do processo de controle difuso qualquer possibilidade de chancela dos representantes do povo deste referido processo, o que não parece ser sequer sugerido pela Constituição da República de 1988. (STRECK; OLIVEIRA; LIMA, 2007, grifo dos autores)
Por isso, chegam a afirmar que a competência do Senado, nesses casos, seria reduzida a de um órgão de imprensa, havendo, ademais, outras consequências graves, que atingiriam principalmente o sistema de direitos e de garantias fundamentais. Para eles, ao se atribuir eficácia geral e efeito vinculante às decisões do STF em sede de controle difuso, ferem-se os princípios constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório (art. 5.º, LIV e LV, CF/88), já que tal decisão atingiria mesmo aqueles que não participaram do processo de julgamento, tendo, em verdade, efeitos avocatórios. Além disso, segundo os autores, seria desconstuída a concepção de que os efeitos da retirada das leis pelo Senado Federal são ex nunc e não ex tunc.
A essas e outras críticas, apenas se rememore que, diversamente, os superprincípios constitucionais – princípio da constitucionalidade, princípio do Estado Democrático (Constitucional) de Direito e princípio da proteção dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana – não estariam sendo violados, ao revés, incrementados, tendo em vista a legalidade, igualdade e imparcialidade que essa nova perspectiva acopla, consoante toda uma fundamentação feita ao longo desta dissertação.
Lenio Luiz Streck e os outros autores (2007, grifo dos autores) também tocam no ponto referente à distinção entre controle concentrado e difuso, não havendo, para eles, "como se imaginar que os efeitos do controle concentrado sejam extensivos ao controle difuso, de forma automática". Continuam: "parece óbvio que, se se entendesse que uma decisão em sede de controle difuso tem a mesma eficácia que uma proferida em controle concentrado, cairia por terra a própria diferença". Isso porque entendem que é uma regra fixa que o controle difuso tenha "na sua ratio o efeito ex tunc entre as partes".
Porém, observe-se, desde logo, que esse fenômeno foi visto e já se concluiu pela sua legitimidade, citando, inclusive, vários exemplos na jurisprudência e na legislação: é a tendência de abstrativização, objetivação ou verticalização do controle concreto, tipicamente difuso (cf. capítulo 1, subcapítulo 1.3).
Desenvolvendo a questão, perguntam, sempre os referidos articulistas: "Então, qual é a função do Senado (art. 52, X)?". Para responder essa indagação, diferenciam dois institutos: o da suspensão da execução da lei e o da retirada da eficácia da lei. Este ocorre em controle concentrado e aquele, em controle difuso, significando o mesmo que revogar a lei. Eis o papel do Senado sendo efetivado: revogar a lei declarada inconstitucional, com efeitos ex nunc. E isso é que diferencia os dois sistemas de controle, no plano da nulidade: o controle difuso é problema de suspensão/revogação da lei (plano da vigência da lei) – que aguarda a retirada de sua eficácia "daqui para frente" – e o controle concentrado é problema de retirada da eficácia da lei (plano da eficácia da lei) [68]. Ou ainda, dito de outro modo, há diferença entre efeitos ex tunc (nulidade) e efeitos ex nunc (revogação) – "quando se revoga uma lei, seus efeitos permanecem; quando se a nulifica, é esta írrita, nenhuma" (STRECK; OLIVEIRA; LIMA, 2007, grifo dos autores) –, fato esse que distingue na essência os controles de constitucionalidade difuso e concentrado. Baseados nisso, é que os autores do mencionado artigo entendem não poder haver uma confusão entre os sistemas de controle da Constituição.
Argumentam: "Se até o momento em que o Supremo Tribunal declarou a inconstitucionalidade da lei no controle difuso, a lei era vigente e válida, a decisão no caso concreto não pode ser equiparada à decisão tomada em sede de controle concentrado" (STRECK; OLIVEIRA; LIMA, 2007, grifo dos autores) [69]. A isso, contra-argumenta-se: ora, se a jurisprudência e doutrina entendem que a lei inconstitucional é ipso jure nula, ela é nula desde sempre (ex tunc) e para todos (erga omnes) [70] – teoria da nulidade da lei inconstitucional [71]. Continua esse raciocínio Carlos Alberto Lúcio Bittencourt (1968, p. 145/146, apud MENDES; COELHO; BRANCO, 2009c, p. 1136, grifo nosso), de forma lúcida:
Se o Senado não agir, nem por isso ficará afetada a eficácia da decisão, a qual continuará a produzir todos os seus efeitos regulares que, de fato, independem de qualquer dos poderes. O objetivo do art. 45, IV da Constituição – a referência é ao texto de 1967 – é apenas tornar pública a decisão do tribunal, levando-a ao conhecimento de todos os cidadãos. Dizer que o Senado "suspende a execução" da lei inconstitucional é, positivamente, impropriedade técnica, uma vez que o ato, sendo "inexistente" ou "ineficaz", não pode ter suspensa a sua execução.
Consoante Gilmar Mendes (2009c, p. 1136, grifo nosso), comentando a postura tomada por Lúcio Bittencourt:
Não foi o que se viu inicialmente. Como apontado, a jurisprudência e a doutrina acabaram por conferir significado substancial à decisão do Senado, entendendo que somente o ato de suspensão do Senado mostrava-se apto a conferir efeitos gerais à declaração de inconstitucionalidade proferida pelo Supremo Tribunal Federal, cuja eficácia estaria limitada às partes envolvidas no processo.Tal concepção afigurava-se absolutamente coerente com o fundamento da nulidade da lei inconstitucional. Uma orientação dogmática minimamente consistente haveria de encaminhar-se nesse sentido, até porque a atribuição de funções substantivas ao Senado Federal era a própria negação da idéia de nulidade da lei devidamente declarada pelo órgão máximo do Poder Judiciário.
A posição de Lenio Luiz Streck, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira e Martonio Mont’Alverne Barreto Lima (2007, grifo dos autores), como já se percebe, decorre, consoante eles mesmo dizem, da "objetiva e singela razão de que a Constituição da República possui determinação expressa sobre o papel do Senado neste sentido e que não foi revogada". Asseveram, outrossim, que "o Estado Democrático de Direito é um paradigma constitucional e o que dele menos se pode dizer é que dá guarida a ativismos e decisionismos judiciais", com o que não se pode concordar, com vista no que foi abordado em capítulos anteriores, principalmente aquele referente à jurisprudencialização/tribunalização e ativismo judiciário (cf. capítulo 2, subcapítulo 2.3).
Como alternativa, apontam a edição da súmula vinculante:
[...] se o Supremo Tribunal Federal pretende – agora ou em futuros julgamentos - dar efeito vinculante em controle difuso, deve editar uma súmula (ou seguir os passos do sistema, remetendo a decisão ao Senado). Ou isso, ou as súmulas perderam sua razão de ser, porque valerão tanto ou menos que uma decisão por seis votos a cinco (sempre com o alerta de que não se pode confundir súmulas com declarações de inconstitucionalidades). [...] Deixar de aplicar o artigo 52, X, significa não só abrir precedente de não cumprimento de norma constitucional – enfraquecendo sobremodo a força normativa da Constituição – mas também suportar as conseqüências, uma vez que a integridade também supõe integridade da própria Constituição. E, não se pode esquecer que a não aplicação de uma norma é uma forma de aplicação. Incorreta. Mas é. (STRECK; OLIVEIRA; LIMA, 2007, grifo dos autores)
Continuam, tecendo comentários acerca do porquê da competência do Senado prevista no art. 52, X, CF/88:
A competência do Senado Federal estabelecida pelo art. 52, X da Constituição, para além de se materializar no exercício de uma atribuição do poder constituinte originário, deixa-se refletir, ainda, quando da contextualização de seu lugar constitucional. Espaço de representação política da Federação, ao Senado Federal foi atribuída a competência do art. 52, X da CF porque, racionalmente, somente a um organismo da Federação é que poderia recair a autoridade para suspensão de instrumentos normativos, por exemplo, oriundos de outros entes da Federação, como Estados, Distrito Federal ou Municípios, em razão, especialmente, da amplamente solidificada sistemática de controle da constitucionalidade a inadmitir controle concentrado de espécie normativa municipal diretamente no Supremo Tribunal. Tem-se, então, uma dupla acepção de democracia: a que parte do controle reflexo do povo na eleição de representantes dos entes federados e o trato e o equilíbrio necessários à harmonização do sistema federativo brasileiro. (STRECK; OLIVEIRA; LIMA, 2007, grifo dos autores)
Vale aqui outra ressalva: não seria possível para os autores – embora admitam que tal tese não vingou em terrae brasilis – a atribuição de eficácia erga omnes e vinculante à decisão de rejeição de inconstitucionalidade, que afirmasse, portanto, a constitucionalidade da norma, posto que essas decisões que não acolhem o pedido de inconstitucionalidade da lei
têm força meramente de coisa julgada formal, não impedindo sequer que o mesmo requerente solicite novamente a apreciação da inconstitucionalidade da norma anteriormente "declarada" constitucional. [...] A recusa de atribuição de eficácia erga omnes à decisão de não-inconstitucionalidade permite [...] remediar, através de nova decisão, os possíveis erros precedentemente cometidos na apreciação da constitucionalidade pelo tribunal constitucional. (STRECK; OLIVEIRA; LIMA, 2007, grifo dos autores)
Sendo assim, questionam – não obstante a Lei 9.868/99 preveja fato diverso – até mesmo a atribuição de efeito vinculante e eficácia erga omnes à interpretação conforme a constituição e à declaração parcial de inconstitucionalidade, não merecendo, por causa disso, prosperar o entendimento do Ministro Gilmar Mendes quando recorre a esses institutos a fim de demonstrar a evolução do controle de constitucionalidade. De tal modo, aduzem:
Já para a situação que almeja a extensão dos efeitos de controle concentrado ao difuso, não há nada que autorize o Supremo Tribunal Federal a operar mencionada sistemática no texto de nossa Constituição, tampouco na tradição de nossa doutrina de controle da constitucionalidade. [...] Ao contrário: o art. 52, X aponta em outro sentido. (STRECK; OLIVEIRA; LIMA, 2007, grifo dos autores)
Ainda, reafirmam que a questão da validade e da força normativa do art. 52, X, CF/88, passa pelo exame da "exigência democrática de participação da sociedade no processo de decisão acerca da (in)constitucionalidade de uma lei produzida pela vontade geral" (STRECK; OLIVEIRA; LIMA, 2007, grifo dos autores), pelo que há um controle das decisões judiciais solipsistas (Selbstsüchtiger) pela esfera pública. Quanto a isso, já foi visto que as decisões dos juízes são democráticas na medida em que seguem aquilo que foi aprovado pelo legislador, promovendo diretamente a finalidade pública e os anseios sociais, ao adequar as premissas equivocadas estabelecidas pelo Legislativo [72].
Demais disso, pode-se dizer que é encontrado no texto de Lenio Luiz Streck, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira e Martonio Mont’Alverne Barreto Lima (2007) uma crítica a um fenômeno mencionado em capítulos anteriores: a judicialização da política e das relações sociais. Pela opinião deles, que se faz questão de destacar a seguir, o referido fenômeno se transmudaria para a politização do Direito e do Poder Judiciário. Lembre-se apenas que ambos são acontecimentos naturais resultantes das tensões entre Política e Direito, sendo saudáveis até o ponto em que se mantenham ainda em equilíbrio.
[...] o constitucionalismo do Estado Democrático de Direito deve ser compreendido no contexto da ruptura paradigmática ocorrida no campo da filosofia. Dito de outro modo, o direito não está imune ao pensamento que move o mundo. Mundo é mundo porque é mundo pensado. Conseqüentemente, a derrocada do esquema sujeito-objeto (ponto fulcral das reflexões das teorias democráticas que vão desde as teorias do discurso à hermenêutica) tem repercussão no novo modelo de Estado e de direito exsurgido a partir do segundo pós-guerra. O sujeito solipsista (Selbstsüchtiger) dá lugar à intersubjetividade. Veja-se o problema ocasionado pela prevalência do velho paradigma representacional (sujeito-objeto) nas diversas reformas no processo: cada vez mais se coloca o procedimento à disposição do pensamento "justo" do juiz, valendo, por todos, citar a assim denominada "instrumentalidade do processo" (por todos, Candido Dinamarco e José Bedaque). Cada vez que se pretende "processualizar mais o sistema", ocorre uma diminuição do processo enquanto instrumento de garantia do devido processo legal. Ora, se o devido processo legal serve para preservar direitos, não é em nome dele que se pode fragilizar o próprio processo. Dia-a-dia, o sistema processual caminha para o esquecimento das singularidades dos casos. Trata-se, pois, de um novo princípio epocal. Na verdade, se o último princípio epocal da era das duas metafísicas foi a vontade do poder (Wille zur Macht), o novo princípio, forjado na era da técnica, acaba por se transformar no mecanismo que transforma o direito em uma mera racionalidade instrumental (lembremos, sempre e novamente, as escolas instrumentalistas...!). Manipulando o instrumento, tem-se o resultado. Ao final dessa "linha de produção", o direito é (será) aquilo que a vontade do poder quer que seja. Chega-se ao ápice da não democracia: o direito transformado em política. Não que direito e política estejam cindidos. Parece despiciendo qualquer comentário acerca dessa problemática (pensemos, por exemplo, na doutrina de Hans P. Schneider). O que ocorre é que a relação direito-política não pode criar/estabelecer uma contradição em si mesmo, ou seja, se o direito serve para controlar/garantir a democracia (e, portanto, a política), ele não pode ser a própria política. (STRECK; OLIVEIRA; LIMA, 2007, grifo nosso e itálico dos autores)
Finalmente, lançando vistas à incompreensão do fenômeno da mutação constitucional, afirmam que ele "não pode ser entendido como espaço de livre atribuição de sentido", principalmente quando se trata do texto constitucional:
Ou seja, em determinadas situações, mutação constitucional pode significar, equivocadamente, a substituição do poder constituinte pelo Poder Judiciário. E, com isso, soçobra a democracia. E este nos parece ser o ponto principal da discussão acerca dos votos proferidos na aludida Reclamação 4335-5. Numa palavra, o processo histórico não pode, desse modo, delegar para o Judiciário a tarefa de alterar, por mutação ou ultrapassagem, a Constituição do País (veja-se, nesse sentido, só para exemplificar e esse é o ponto da presente discussão -, o "destino" dado, em ambos os votos, ao art. 52, X, da Constituição do Brasil). (STRECK; OLIVEIRA; LIMA, 2007, grifo dos autores)
Para provar o sobredito, propõem uma reflexão:
Paremos para pensar: uma súmula do Supremo Tribunal Federal, elaborada com oito votos (que é o quorum mínimo), pode alterar a Constituição. Para revogar essa súmula, se o próprio Supremo Tribunal Federal não o fizer, são necessários três quintos dos votos do Congresso Nacional, em votação bicameral e em dois turnos. Ao mesmo tempo, uma decisão em sede de controle de constitucionalidade difuso, proferida por seis votos, pode proceder a alterações na estrutura jurídica do país, ultrapassando-se a discussão acerca da tensão vigência e eficácia de uma lei. Não se pode deixar de frisar, destarte, que a mutação constitucional apresenta um grave problema hermenêutico, no mínimo, assim como também de legitimidade da jurisdição constitucional. (STRECK; OLIVEIRA; LIMA, 2007)
Na verdade, os autores, adeptos de uma exigência de integridade do caráter principiológico do direito democrático, não veem com bons olhos a tese da mutação constitucional quando esta é compreendida
como solução para um suposto hiato entre texto constitucional e a realidade social, a exigir uma "jurisprudência corretiva", tal como aquela a que falava Büllow, em fins do século XIX (veja-se, pois, o contexto histórico): "uma jurisprudência corretiva desenvolvida por juízes éticos, criadores do Direito" (Gesetz und Richteramt, Leipzig, 1885) e atualizadores da constituição e dos supostos envelhecimentos e imperfeições constitucionais; ou seja, mutações constitucionais são reformas informais e mudanças constitucionais empreendidas por uma suposta interpretação evolutiva. [73] [...] Em síntese, a tese da mutação constitucional advoga em última análise uma concepção decisionista da jurisdição e contribui para a compreensão das cortes constitucionais como poderes constituintes permanentes. [74] Ora, um tribunal não pode mudar a constituição; um tribunal não pode "inventar" o direito: este não é seu legítimo papel como poder jurisdicional, numa democracia. A atividade jurisdicional, mesmo a das cortes constitucionais, não é legislativa, muito menos constituinte (e assim não há o menor cabimento, diga-se de passagem, na afirmação do Min. Francisco Rezek, quando do julgamento da ADC n.º 1, quando este dizia que a função do STF é a de um oráculo que "diz o que é a Constituição"). (STRECK; OLIVEIRA; LIMA, 2007, grifo dos autores)
Para eles, o papel do direito e da jurisdição inclusive constitucionais é "construir interpretativamente, com a participação da sociedade, o sentido normativo da constituição e do projeto de sociedade democrática a ela subjacente" [75], sendo que "um tribunal não pode paradoxalmente subverter a constituição sob o argumento de a estar garantindo ou guardando" (STRECK; OLIVEIRA; LIMA, 2007). Em termos incisivos: a Suprema Corte, para os referidos articulistas, não pode legislar, muito embora admitam que a súmula vinculante adquiriu explícito caráter normativo no Brasil.
Criticando especificamente o discurso de justificação advindo das súmulas vinculantes – discurso esse que serve de base também para pretensões universalizantes, como a que sustenta um obsoleto limite semântico do texto do dispositivo constitucional em questão, pelo que, como pretende o Ministro Eros Grau, a partir da dicotomia "texto e norma", poderia até mesmo o texto sucumbir em face não apenas de uma nova norma, mas também de um novo texto [76] –, asseguram:
No fundo, toda (ess)a discussão é similar à pretensão de universalização das súmulas vinculantes; ou seja, as súmulas vinculantes podem ser entendidas como uma hipostasiação de discursos de justificação, isto é, o pólo de tensão passa a estar somente no plano da validade do discurso jurídico. (STRECK; OLIVEIRA; LIMA, 2007)
Tocando ainda no ponto da pretensão de um discurso válido universalmente ("normas universais") – observando-se aquilo que foi trabalhado por Alexy (1993, apud STRECK; OLIVEIRA; LIMA, 2007) quanto aos discursos de aplicação e discursos de fundamentação/justificação e às similitudes entre esses discursos, na concepção dele, conforme analisado no capítulo 2, subcapítulo 2.2 –, os referidos autores notam que a argumentação acaba hipostasiada em detrimento da realidade, "isto é, tudo se resume a fórmulas matemáticas e a cálculos de custo-benefício, que, por ter pretensão corretiva, acaba se substituindo ao próprio direito" (STRECK; OLIVEIRA; LIMA, 2007, grifo dos autores). Além disso,
No Brasil, essa tese – a de Alexy e a do Supremo Tribunal Federal na Rcl n.º 4335-5 - pode dar (ainda mais) respaldo aos defensores das súmulas vinculantes e a distorções no seu processo inadequado de aplicação. De fato, ao se constituírem em discursos de validade construídos para resolver problemas futuros que nela se "subsumam" (não parece haver dúvida a esse respeito, porque a súmula busca impedir a construção de discursos de aplicação - Anwendugsdiskurs), as súmulas vinculantes parecem encaixar-se na tese de que tudo se resume a discursos de validade, uma vez que nos discursos de justificação (validade) já haveria a referência a muitas situações construídas e experenciadas. [77] (STRECK; OLIVEIRA; LIMA, 2007, grifo dos autores)
Porém, é justamente a partir dessa acepção de Alexy (2005, apud CARDOSO, 2009), apresentada pela Tese do Caso Especial, desenvolvida em sua Teoria da Argumentação Jurídica, que ele aponta como uma das regras de justificação externa e formas lógicas de argumentos (jurídicos) o uso de precedentes jurisprudenciais, sendo o seu fundamento o princípio da universalidade, que cai na concepção de justiça (formal) de tratar de igual maneira o igual, determinando-se e ponderando-se as diferenças – em função das interpretações dadas pelas Cortes Judiciais Superiores e sedimentadas via precedentes, acresça-se a esse princípio da igualdade outros princípios derivados do princípio-mor justiça, como os princípios da legalidade e imparcialidade.
Por fim, Lenio Luiz Streck mais os outros articulistas (2007) perguntam, no sentido similar da indagação feita, em determinado ponto de seu voto, por Eros Grau à posição de Gilmar Mendes:
A interpretação da Constituição pode levar a que o STF produza (novos) textos, isto é, interpretações que, levadas ao limite, façam soçobrar os limites semânticos do texto no modo que ele vinha sendo entendido na (e pela) tradição (no sentido hermenêutico da palavra)?
Segue a resposta dada por eles, grande parte feita em forma de outras perguntas:
[...] nossa leitura permite-nos entender que o Ministro Eros Grau reconhece, com apoio em Jean-Pierre Vernant, que sempre há que se indagar, quando se está frente a uma mutação constitucional, se o texto resultante da mutação mantém-se adequado à tradição (= à coerência) do contexto, reproduzindo-a, de modo a ele se amoldar com exatidão. "A mutação não é uma degenerescência, senão uma manifestação de sanidade do ordenamento." Entendemos que, nesse exato contexto, a pergunta que não foi respondida é: mas o que é a tradição? De que tradição se está falando? O que diz a tradição que consubstancia o texto e a norma do art. 52, X? Em que sentido a "substituição" do texto constitucional, efeito em nome de uma mutação, deixa o novo "texto" em harmonia com a tradição? Não é exatamente para mudar a tradição que se faz "mutação"? Mas, então, se se faz mutação para alterá-la, como lhe ser coerente e fiel? É nesse sentido que a posição de Vernant é tautológica, incorrendo em um paradoxo. E paradoxos são coisas sobre as quais não podemos decidir. Mais ainda: se o texto "mutado" é obsoleto - como textualmente diz o Min. Eros Grau - como admitir que o Supremo Tribunal Federal "faça" outro, que confirme a tradição? De que modo se chega a conclusão de que "um texto constitucional é obsoleto"? E de que modo é possível afirmar que, "por ser obsoleto", o Supremo Tribunal Federal pode se substituir ao processo constituinte derivado, único que poderia substituir o texto "obsoleto"? A tradição não residiria exatamente no fato de termos adotado – e ratificado em 1988 – o sistema misto de controle de constitucionalidade? A tradição não estaria inserida na própria exigência de remessa ao Senado, buscando, assim, trazer para o debate - acerca da (in)validade de um texto normativo – o Poder Legislativo, único que pode tratar do âmbito da vigência, providência necessária para dar efeito erga omnes à decisão que julgou uma causa que não tinha uma tese, mas, sim, uma questão prejudicial? [...] Afinal, cabe ao Supremo Tribunal Federal "corrigir" a Constituição? A resposta é não. Isso faria dele um poder constituinte permanente e ilegítimo. Afinal, quais seriam os critérios de correção, uma suposta "ordem concreta de valores", um "Direito Natural" no estilo de Radbruch?... Agregue-se a essa relevante questão hermenêutica a seguinte preocupação: decisões do Supremo Tribunal Federal, como a da Reclamação sob comento, podem incorrer no equívoco de confundir as tarefas constituídas daquelas constituintes, o que traduziria, portanto, uma séria inversão dos pressupostos da teoria da democracia moderna a que se filia a Constituição da República. [...] Tais questões, ao que tudo indica, devem preocupar sobremodo a comunidade jurídica. E não provocar – como está a parecer – um silêncio eloquente! (STRECK; OLIVEIRA; LIMA, 2007, grifo dos autores)
Os articulistas, após constatarem ser "possível [...] apreender a dimensão da crise que atravessa o direito a partir das representações simbólicas", finalizam o estudo do tema com a seguinte observação, que não deixa de ser, de certo modo, pertinente:
Nessa linha, a decisão do Supremo Tribunal Federal, por mais que esteja imbuída de um sentido pragmático e sustentada na melhor ciência jurídica, pode (e, certamente assim será) representar uma afirmação do imaginário jurídico que justamente levou àquilo que hoje é combatido: o excesso de recursos e a multiplicação das demandas. Se o Supremo Tribunal Federal pode fazer mutação constitucional, em breve essa "mutação" começará a gerar – como se já não existissem à saciedade [78] - os mais diversos frutos de cariz discricionário (portanto, positivista, no sentido em que Dworkin critica as teses de Hart). Exatamente porque no Brasil cada um interpreta como quer, decide como quer e recorre como quer (e isso parece recorrente na cotidianidade dos fóruns e tribunais da República), é que faz com que cresçam dia-a-dia as teses instrumentalistas do processo, como que a mostrar, a todo instante, que as teses de Oscar Von Büllow não foram (ainda) superadas. A solução tem sido essa: corte-se o acesso à justiça. Sob pretexto de agilizarmos a prestação jurisdicional, criamos mecanismos para impedir o processamento de recursos. E quem perde com isso é a cidadania que vê assim negada a jurisdição. (STRECK; OLIVEIRA; LIMA, 2007, grifo dos autores)
A despeito dos argumentos de peso retroelencados, conforme estudo esboçado ao longo dos capítulos desta dissertação, o contexto atual (hermenêutico, social, político e jurídico – no caso deste, fortalecido pelos superprincípios constitucionais) permite, sim, mudança no texto constitucional do art. 52, X, através de uma "autêntica mutação constitucional", compondo-se, assim, "um mesmo espaço semântico" na Constituição, para usar as palavras de Eros Grau, no voto proferido na Rcl. 4.335-5/AC.