O direito real de habitação, como é cediço, é um direito real de fruição, criado com o fim de moradia. Trata-se de um direito real sobre a coisa alheia. É uma forma de limitação da propriedade.
O Código de 1916 previa tal direito somente em relação ao cônjuge sobrevivente e que era casado pelo regime da comunhão universal. Com a vinda, em 2002, do novo Código Civil, esse panorama mudou. Hodiernamente o cônjuge sobrevivente desfruta de tal prerrogativa independentemente do regime de bens adotado. É o que dispõe o art. 1831: "Ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar".(Grifamos).
Após o reconhecimento, pela Constituição Federal de 1988, da união estável como entidade familiar, as uniões com affectio maritalis (formais ou informais) passaram a ser vistas de forma isonômica no que tange a direitos e obrigações.
O tema central do presente trabalho é o direito real de habitação do companheiro supérstite. Analisaremos tal instituto fazendo um paralelo entre a união estável e o casamento.
O direito real de habitação, até então exclusivo do cônjuge supérstite, foi estendido ao companheiro sobrevivente por força do parágrafo único do artigo 7º, da lei 9.278/96. Tal direito incide sobre o imóvel em que habitavam os conviventes. A duração, diferentemente do que ocorre com o casamento, será enquanto o(a) companheiro(a) sobrevivente não constituir nova união estável ou casamento.
Vale ressaltar que a lei não diferenciou o imóvel comum a ambos os companheiros do integrante do patrimônio particular do de cujus, portanto se o imóvel fora adquirido pelo falecido antes da constituição da união estável, persistiria o direito real de habitação para o que sobreviver.
Para a concessão desse direito, necessário se faz analisar alguns requisitos. O(a) companheiro(a) sobrevivente deverá utilizar o imóvel para a sua moradia, sendo defeso a ele utilizá-lo para fins de aluguel, ou mesmo emprestá-lo. Nessa ótica, devemos observar o que dispunha o art.746 do antigo código civil: "quando o uso consistir no direito de habitar gratuitamente casa alheia, o titular desse direito não a pode alugar, nem emprestar, mas simplesmente ocupá-la com sua família" [01]. Esse dispositivo transmitiu a verdadeira finalidade do direito real de habitação, ou seja, não deixar o cônjuge sem uma casa para morar. Tal raciocínio também deve ser feito em relação ao companheiro. Trata-se de direito real sobre coisa alheia, pois haverá a habitação gratuita de imóvel residencial alheio.
Esse tema nos traz uma grande polêmica quando se faz um paralelo entre o direito decorrente do matrimônio e o decorrente da união estável. A lei, ao deferir o direito de habitação ao companheiro, o faz independentemente do direito ao usufruto e à meação. O que ocorre é que no antigo Código Civil, ao cônjuge sobrevivente só caberia direito real de habitação se fosse casado no regime de comunhão de bens. Caso fosse pelo regime de separação, não faria jus a tal direito. Com a lei especial, que regulamentou a união estável, fora conferido o direito de habitação ao convivente sobrevivente, seja existindo patrimônio comum ou só bens particulares do de cujus, como já fora dito anteriormente. Isso realmente deixou no ar uma enorme discrepância, pois ao convivente seriam conferidos mais direitos do que ao próprio cônjuge.
No entender de Marco Aurélio S. Viana, corroborado por nós, tal vantagem seria também aproveitada pelas pessoas casadas. Colhendo do ensejo, o célebre autor, citando João Batista Villela, que contemplou a aplicação da cláusula de maior favorecimento: "dada a circunstância de o casamento ter na Constituição precedência sobre a união estável, todas as vantagens deferidas a esta, por lei ordinária, supõem-se extensivas àquele, se não tiver por outro título". [02]
Ainda em relação às vantagens trazidas pela Lei especial ao companheiro, pergunta-se: haveria a cumulação do usufruto e da meação com o direito real de habitação? Euclides de Oliveira nos trouxe uma solução assaz profícua para a questão, pois como a lei silenciou a respeito da cumulação de tais institutos, necessário seria analisar a problemática sob a ótica da igualdade conferida ao casamento e à união estável para efeitos de proteção do Estado. Nessa linha, o companheiro sobrevivente deveria ser tratado da mesma forma que o viúvo. Portanto estaria afastada a cumulação do direito de habitação com o de usufruto. Mesmo se o usufruto versar sobre bens de natureza não residencial, deve-se preservar tal vedação. Isso fora feito para evitar o duplo aquinhoamento do convivente supérstite com benefícios hereditários maiores do que os do cônjuge sobrevivente que, quando casado no regime de comunhão universal, só fazia jus ao direito real de habitação.
Tal discussão foi gerada em razão de a Lei 9.278/96 ter pretendido apenas atribuir ao companheiro sobrevivente, no plano sucessório, o direito real de habitação. Ocorre que, enquanto o projeto daquela lei, que era de 1991, estava sobrestado, a Lei 8.971 de 1994 fora publicada, trazendo em seu bojo direitos de herança e usufruto ao convivente que sobrevivesse.
Tal celeuma foi definitivamente retirada do ordenamento jurídico pátrio com a entrada em vigor do Novo Código Civil. Ocorreu a extinção do direito a usufruto parcial dos bens no direito sucessório. Além disso, quanto ao direito real de habitação do companheiro sobrevivente, a nova legislação privada foi totalmente omissa. Tratou apenas, de forma expressa, do direito do cônjuge.
Destarte, outra discussão foi travada: teria o atual codex abolido o direito real de habitação do companheiro sobrevivente? Teria havido, nos dizeres de Zeno Veloso, um silêncio eloquente?
Duas correntes se formaram a respeito do tema.
A primeira delas, defendida por INÁCIO DE CARVALHO NETO, JOSÉ FRANCISCO CAHALI e ZENO VELOSO, sustenta que a companheira não faz mais jus ao direito real de habitação, em face da omissão ou "silêncio eloquente" do Novo Código Civil.
A segunda, seguida por SILVIO DE SALVO VENOSA e MARIA HELENA DINIZ, sustenta que o parágrafo único do art. 7º da Lei 9.278 de 1996 não fora revogado: "Diante da omissão do Código Civil, o art.7º, parágrafo único daquela Lei estaria vigente por ser norma especial." [03].
A corrente que prevaleceu foi a segunda. Afinal, sustentar o contrário seria o mesmo que resignar-se com um flagrante retrocesso no tocante aos direitos dos companheiros, conquistados a duras penas.
A bem da verdade, o que se percebe aqui é um aparente conflito de normas. Uma anterior e especial (Lei 9.278/96) e outra posterior e geral (Lei 10.406/02- Código Civil). Pois bem, temos um conflito a ser solucionado pelos metacritérios lembrados com maestria por Maria Helena Diniz: "Em caso de antinomia entre o critério da especialidade e o cronológico, valeria o metacritério lex posterior generalis non derogat priori speciali, segundo o qual a regra de especialidade prevaleceria sobre a cronológica" [04].
Contudo, se o critério proposto pela ilustre professora não for o suficiente para resolver o problema, poderá a solução vir da adoção do 1.831, do Código Civil, o qual se aplicará através de analogia. Esta solução é a que nos parece mais correta, conforme será visto mais adiante.
É oportuno lembrar que existe o Projeto de Lei nº 6.960/2002 que pretende modificar a redação de alguns artigos do Código Civil de 2002, inclusive a do 1.790. Ao acrescentar um parágrafo único ao aludido dispositivo, inclui o direito real de habitação ao companheiro supérstite, nos termos da norma de 1996. Eis o texto expresso do citado PL:
Parágrafo único. Ao companheiro sobrevivente, enquanto não constituir nova união ou casamento, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar. [05]
Portanto, tal projeto urge em ser aprovado, haja vista que a omissão do novo código poder trazer inúmeras injustiças.
Outro ponto a ser levantado aqui é a diferenciação existente entre o tratamento dispensado ao companheiro e ao cônjuge sobrevivente no tocante ao direito real que se estuda. Conforme vimos, o direito real de habitação do companheiro se extingue com a ocorrência da morte deste ou se vier a constituir uma nova união estável ou casamento; já no que concerne ao cônjuge, tal direito só se resolverá com a morte, sendo, portanto, vitalício.
Ora, qual a razão para o tratamento diferenciado? Qual a razão de haver dois pesos e duas medidas? Não se pode dar tratamento desigual a duas situações iguais. Onde há a mesma razão, aplica-se o mesmo direito (ubi eadem ratio, ibi eadem jus). Sendo assim, entendemos que a solução mais correta seria olvidar a Lei 9.278/96 e aplicar integralmente o Novo Código Civil, no que concerne ao direito real de habitação do cônjuge sobrevivente, ao companheiro na mesma situação.
Destarte, mostra-se mais coerente que, enquanto não sobrevier uma mudança na legislação pátria, a disciplina do direito real de habitação, conferida pela sistemática do atual código ao cônjuge sobrevivente, seja aplicada in totum à união estável.
O mais correto, confessamos, seria o direito real em disceptação existir até a constituição de uma nova união. Contudo, enquanto a lei não vem, não é possível restringir a aplicação do instituto, já que a lei afirma que o direito do cônjuge é vitalício. Por essa razão, deverá também seguir a mesma linha o direito do companheiro.
Somente após a reforma é que poderá aplicar a regra de resolução de tal direito com a convolação de novas núpcias ou nova união estável, pois assim também será tratado o cônjuge sobrevivente, nos termos da alteração proposta pelo PL 6.960/02 quanto ao art.1.831 do Código Civil, que passaria a ter a seguinte redação: "Ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, enquanto não permanecer viúvo ou não constituir união estável, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar" (negritamos).
Essa seria, em nossa ótica, a melhor saída, pois o tratamento diferenciado para cônjuges e companheiros na mesma situação não se justifica. É odioso qualquer tipo de discriminação. Privilegiar um instituto em detrimento do outro é veicular injustiça e, por consequência, atacar de forma letal a Constituição da República.
Aguardemos as mudanças.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Código Civil. 1.ed.São Paulo: Atlas, 2002
________Código Civil. 5ª ed.São Paulo: Saraiva, 1999
________Constituição Federal: Promulgada em 05 de outubro de 1988.21. ed. São
Paulo.
________Lei 8.971/94. Regula o direito dos companheiros a alimentos e à sucessão. Disponível em <www.dji.com.br>. Acesso em 08/09/2004.
________Lei 9.278/96. Regula o §3º do artigo 226 da Constituição Federal. Disponível em <www.dji.com.br>. Acesso em 08/09/2004.
BUARQUE DE HOLANDA FERREIRA, AURÉLIO. Editora Nova Fronteira, 1998.
CZAJKOWSKI, Rainer. União Livre: à luz das Leis 8.971/94 e 9.278/96. Curitiba: Juruá, 1996
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, v. 5: direito de família. 18. ed. Aum. E atual. De acordo com o novo Código Civil. São Paulo, 2002.
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_______. Código civil anotado. 9. ed.. ver. E atual. De acordo com o novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2003.
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VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: direito de família. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2004.
__________Direito civil: direito das sucessões. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2004.
VIANA, MARCO AURÉLIO S. Da união estável. São Paulo : Saraiva, 1999.
Notas
- BRASIL. Código civil de 1916. art.746. 5. ed. São Paulo:Saraiva, 1999.
- Viana, Marco Aurélio S., 1999, Da união estável. São Paulo: Saraiva,1999
- DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, V.6: Direito das Sucessões. 18.ed. ver., aum. e atual. de acordo com o novo Cód.Civil(Lei n. 10.406, de 10-1-2002) - São Paulo. Saraiva., 2004., p.137
- DINIZ, Maria Helena. Conflito de normas – 8.ed. ver.atual. – São Paulo:Saraiva, 2008.
- Projeto de Lei nº6.960/2002, art.1790, parágrafo único.
VENOSA, Silvo de Salvo. Direito Civil: Direito das Sucessões. 4. ed. São Paulo : Atlas, 2004. p.126.