6 O ESTUDO DE IMPACTO AMBIENTAL E O RELATÓRIO DE IMPACTO AMBIENTAL
O Estudo de Impacto Ambiental é outro instrumento importantíssimo para se manipular a relação economia-ecologia. Sendo um estudo científico multidisciplinar, ele é capaz de visualizar uma variada gama de consequências dos empreendimentos econômicos, abrangendo não só os aspectos econômicos e ambientais, mas, sobretudo, as consequências sociais. É importante instrumento auxiliar na tomada de decisões necessárias à implantação dos empreendimentos econômicos, notadamente no que diz respeito às ações mitigadoras das consequências ambientais e sociais negativas.
Segundo a lição de MIRRA, a primeira manifestação legislativa brasileira que apresentou exigência quanto ao estudo de impacto ambiental foi a Lei nº 6.803/1980, que
... dispôs sobre as diretrizes básicas para o zoneamento industrial nas áreas críticas de poluição, como condição para a aprovação da delimitação e autorização da implantação de zonas de usos estritamente industrial destinados à localização de pólos petroquímicos, cloroquímicos, carboquímicos e instalações nucleares. [27]
Contudo, a Lei nº 6.938/1981 introduziu definitivamente o EIA/RIMA na Política Nacional de Meio Ambiente, ao defini-lo, em seu artigo 9º, inciso III, como um dos instrumentos desta Política.
Deve-se, ainda, mencionar a Resolução CONAMA nº 001/1986, que estabeleceu critérios básicos e diretrizes gerais para a avaliação de impacto ambiental.
Contudo, sua mais importante consagração no sistema jurídico nacional deu-se com sua elevação à categoria constitucional. Ele vem insculpido no artigo 170, que trata dos princípios da atividade econômica, em seu inciso VI, que determina a defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação.
Igualmente, ele vem previsto no artigo 225, parágrafo 1º, que trata dos princípios relativos ao meio ambiente. O inciso IV deste parágrafo determina que o Estado sempre exija, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade.
Ao ser consagrado como exigência constitucional, o EIA/RIMA passou a ser um instrumento a serviço dos objetivos constitucionais estabelecidos no artigo 3º. Assim, ele dever ser um instrumento que tenha como escopo último a garantia da dignidade da pessoa humana.
O fundamento ideológico da EIA/RIMA está assentado no princípio da precaução. Ele é aplicável sempre que uma atividade econômica tenha o potencial de causar riscos graves e irreversíveis ao meio ambiente, mas que não haja certeza científica acerca destes efeitos. Seu enunciado pode ser extraído da Declaração do Rio, elaborado na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, realizada no Rio de Janeiro em 1992:
Princípio 15: Com a finalidade de proteger o meio ambiente, os Estados devem aplicar amplamente o critério da precaução conforme as suas capacidades. Quando houver perigo de dano grave ou irreversível, a falta de uma certeza absoluta não deverá ser utilizada para postergar-se a adoção de medidas eficazes para prevenir a degradação ambiental. [28]
Veja-se, pois, que a precaução parte da premissa de que toda a atividade econômica traz inexoravelmente um potencial risco ao meio ambiente. Ou seja, sempre que o ser humano intervém no meio ambiente, haverá uma alteração nos ecossistemas, pois o próprio ser humano é um elemento externo ao meio ambiente natural e uma causa inevitável de desequilíbrio. Esta é a única certeza.
Contudo, apesar da existência da probabilidade do risco, o meio científico por vezes não sabe quais são os riscos. A prática humana tem evidenciado alguns riscos que comumente ocorrem, sendo do conhecimento do meio científico num grau certeza que assegura a previsibilidade sua ocorrência. Outros riscos, contudo, são totalmente desconhecidos pela comunidade científica. A existência de risco elevado, mas incerto quanto a sua espécie, é o fundamento da precaução, como afirmam DERANI & RIOS:
Se o risco é considerado elevado e incerto, o princípio da precaução recomenda ao Estado que, nesse caso, não espere por certeza científica para adotar uma medida corretiva de modo que evite a possibilidade de um significativo impacto ambiental. Uma atitude de cautela em relação ao meio ambiente pressupõe uma conduta de precaução pelo Estado, que, na dúvida, deve postergar a decisão de aceitar novas tecnologias, empreendimentos, produtos e substâncias sobre as quais recaem suspeitas de serem prováveis causadores de graves e irreversíveis danos ambientais. [29]
Com o objetivo de reduzir o grau de incerteza científica, o EIA/RIMA pode ser definido como um estudo técnico-científico multidisciplinar destinado identificar os riscos potenciais que uma dada atividade econômica pode ocasionar ao meio ambiente. Como um estudo multidisciplinar, o EIA/RIMA deve abranger o maior número de variáveis passíveis de serem afetadas pela atividade econômica a ser implantada. E não devem estar envolvidos apenas cientistas naturais, mas igualmente cientistas sociais, pois o impacto ambiental geralmente afeta as populações residentes na área de impacto.
O conjunto de conhecimentos obtidos no Estudo de Impacto Ambiental – EIA – deve ser relatado no Relatório de Impacto Ambiental – RIMA, refletindo as suas principais conclusões. Deve, ainda, mostrar as várias possibilidades decorrentes da implantação da atividade produtiva, inclusive a de sua não implantação. As informações devem ser apresentadas de forma a servir de subsídio a tomada de decisão pelas pessoas diretamente interessadas na atividade a ser implantada.
O EIA/RIMA deve subsidiar o planejamento e a implantação da atividade econômica de tal forma que sejam tomadas medidas preventivas destinadas a evitar ou reduzir os impactos ambientais vislumbrados. Aqui se evidencia o papel de conciliador entre desenvolvimento econômico e defesa do meio ambiente que o EIA/RIMA exerce. Ele é instrumento a serviço da garantia da qualidade de vida, que, como já se discorreu, deve abranger a melhoria do padrão econômico e o equilíbrio ambiental.
Contudo, o aspecto mais importante do EIA/RIMA é o fato de possibilitar um debate democrático acerca dos rumos que a atividade econômica deve tomar, não só em relação aos possíveis impactos ambientais, mas, sobretudo, em relação aos impactos sociais das atividades produtivas.
O aspecto democrático apresenta-se primeiramente durante a realização dos estudos de impacto ambiental. Durante a elaboração do EIA/RIMA deve ser garantida a participação de especialistas que representem uma variada gama de posições teórica e práticas sobre a atividade potencialmente impactante. Deve ser garantida a diversidade de posicionamentos que reflita a diversidade da própria sociedade brasileira. Preferencialmente, não deve existir posicionamento prevalecente, pois tal ocasionaria uma conclusão tendenciosa acerca da possibilidade de implantação do empreendimento produtivo e de suas possíveis consequências.
O segundo momento de garantia do caráter democrático do EIA/RIMA é no momento de apresentação do relatório conclusivo. Neste momento, ocorre a abertura para a participação do público, principalmente da população diretamente afetada pelos possíveis impactos do empreendimento. As audiências públicas para discussão do Relatório de Impacto Ambiental devem ser espaços democráticos para o debate dos interesses diretamente envolvidos. Igualmente, não pode haver privilégios. Deve ser garantido igual espaço para todos os interessados, sob pena de que a decisão tomada seja tendenciosa e antidemocrática.
O EIA/RIMA, como espaço democrático, é uma das faces do embate existente entre as diversas forças sociais que compõem a sociedade brasileira. É mais uma faceta da confrontação entre interesses públicos e privados, cujo documento conciliador máximo é a Constituição da República. Nele devem estar representados os interesses empresariais, os dos trabalhadores, os das populações afetadas e os do Estado. Vale lembra que deve prevalecer a decisão que seja conciliadora dos interesses envolvidos e que seja mais adequada aos preceitos constitucionais.
RIOS & DERANI, citando Laurence Tribe, se posicionam a respeito da importância da audiência pública na valorização da participação das pessoas afetadas por decisões políticas:
De qualquer ponto de vista, a audiência representa uma valorizada interação humana na qual a pessoa afetada experimenta no mínimo a satisfação de participar da decisão que vitalmente lhe concerne, e talvez a particular satisfação de receber uma explanação do por que a decisão está sendo tomada de certa forma. [30]
Eis um aspecto fundamental do EIA/RIMA, o de ser mais do que uma simples peça técnico-científica, mas fundamentalmente se consubstanciar em uma peça de decisão política-social, que reflete acima de tudo a diversidade da sociedade brasileira. Isto se deve ao fato de a ciência não ser neutra. A suposta neutralidade da ciência é um mito há muito superado.
Todo o conhecimento científico está sempre a serviço de um propósito, pois o ser humano é um ser naturalmente político. Devemos lembrar que até a suposta neutralidade política se constitui em si num posicionamento político. Assim, as posições defendidas no EIA/RIMA estão carregadas de elementos éticos e axiológicos que demonstram a essência da própria sociedade política brasileira. As decisões tomadas durante o processo não são simplesmente técnicas, mas, sobretudo, políticas.
Por fim, deve ser lembrado que a garantia da efetividade do EIA/RIMA se constitui igualmente numa decisão política. Não basta competência técnica. Faz-se necessária vontade política, como opina DERANI, ao comentar sobre o aspecto político do EIA/RIMA:
É impossível, como muitas vezes se pretende, a separação entre conhecimento científico e poder político. Cada AIA traz essa conjunção de elementos. Portanto, ao analisarmos o valor do AIA, para a efetiva conservação das bases naturais, deve-se ter em vista que sua implementação satisfatória não depende unicamente do alto nível técnico das pessoas envolvidas. É igualmente fundamental a garantia de instrumentos de mediação política idôneos, a fim de que se possa, de maneira equânime e democrática, encontrar uma decisão para os dados apresentados pelo documento de Avaliação de Impacto Ambiental. [31]
É notório que muitos estudos dotados de perfeição técnica são engavetados pelo fato de não atenderem aos interesses econômicos de grupos poderosos, que conseguem, muitas vezes, suplantar a vontade democrática. O EIA/RIMA precisa estar protegido contra estes ataques antidemocráticos, garantindo-se a afetividade das decisões tomadas. Aqui vale lembrar que nenhum instrumento conciliador entre atividade econômica e defesa do meio ambiente possui efetividade sozinho, mas somente em conjugação com outros fatores técnicos e políticos positivamente considerados.
7 O LICENCIAMENTO AMBIENTAL
Cabe aqui breve explanação sobre o licenciamento ambiental, pois se trata de importante instrumento a serviço de poder de polícia ambiental.
Como instrumento da Política Nacional de Meio Ambiente, o licenciamento ambiental está previsto no artigo 9º da Lei nº 6.938/1981, inciso VI. O artigo 10 da mesma Lei, por sua vez, determina quando a licença ambiental será exigida:
Art. 10. A construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimentos e atividades utilizadoras de recursos ambientais, considerados efetiva e potencialmente poluidores, bem como os capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental, dependerão de prévio licenciamento de órgão estadual competente, integrante do Sistema Nacional do Meio Ambiente - SISNAMA, e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis - IBAMA, em caráter supletivo, sem prejuízo de outras licenças exigíveis.
O fundamento do licenciamento ambiental é uma das facetas do poder de polícia do Estado. Não cabe aqui uma análise mais profunda acerca deste poder-dever da administração pública, pois que tal tarefa não se constitui em objeto do presente trabalho. Quero apenas situar a atividade de licenciamento ambiental como manifestação deste poder, que é essencial para a limitação de atividades privadas que possam afetar de forma negativa o interesse público.
O poder de polícia da administração pública tem haver com a limitação das atividades, direitos e uso de bens particulares, tendo em vista o bem comum. FINK, ALONSO JR. & DAWALIBI apresentam um conceito sintético de poder de polícia:
Quanto ao conceito, podemos definir poder de polícia como a atribuição conferida à Administração Pública para condicionar e restringir o uso e gozo de bens e exercício de atividades e direitos individuais, com o objetivo de compatibilizá-los com o interesse público ou social. [32]
Como se depreende do referido conceito, o exercício de direitos eminentemente privados é hodiernamente limitado em função do interesse público ou social. Os direitos individuais clássicos tiveram que ser adaptados às novas demandas do Estado social do Século XX. A justiça social e o bem público passaram à categoria de direitos fundamentais com o advento das constituições modernas. Os direito e liberdades individuais devem ser garantidos, mas seu exercício tem a potencialidade de afetar o direito da coletividade. O poder de polícia é, pois, esta faculdade delegada à administração pública de limitar ou condicionar o exercício das direito individuais com o objetivo de anular ou minimizar seus efeitos negativos que possam afetar o direito da coletividade.
Desde Adam Smith, a liberdade de exercício da atividade econômica foi definida como um direito de liberdade clássico. O advento do estado do bem-estar social modificou tal acepção, pois se tornara evidente que a atividade econômica liberal trazia externalidades negativas à sociedade. Atualmente, os efeitos negativos ambientais se tornaram ainda mais evidentes, somando-se às mazelas que depreciam a qualidade de vida da população mundial, em especial a dos países pobres.
O exemplo clássico de externalidade negativa do exercício da liberdade econômica é a poluição atmosférica, que afeta a população local, e até mesmo as transfronteiriças. É a democracia das externalidades negativas, como já demonstrou Ulrich Beck através do conceito de Sociedade de Risco. A fumaça expelida por uma fábrica não fica restrita ao espaço físico da fábrica. Mesmo se ficasse, afetaria a saúde e o bem-estar de todos seus trabalhadores. Entram em choque o direito de liberdade econômica e o direito a um meio ambiente saudável, o direito de produzir e o direito de respirar um ar limpo.
Eis o fundamento da atividade de licenciamento ambiental, que tem por finalidade a limitação à construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimentos e atividades que utilizem recursos ambientais, considerados efetiva e potencialmente poluidores, bem como os capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental, na acepção da própria Política Nacional do Meio Ambiente.
O licenciamento ambiental em si não elimina as externalidades. Apenas se constitui num instrumento de controle a serviço do interesse público. Antes de entrar em ação, a sociedade deve definir previamente os limites que devem ser observados. Trata-se de definir o que é inaceitável e o que é aceitável. O inaceitável deve ser proibido, e o aceitável deve ser limitado através do estabelecimento de padrões ou direitos de poluição e degradação. Contudo, por vezes tais padrões são definidos de forma inadequada, desrespeitando a capacidade de regeneração dos ecossistemas naturais, trazendo a degradação da qualidade de vida. Ou seja, embora o estabelecimento de padrões seja feito de forma legítima, não significa que ele tenha efetividade suficiente para reprimir as externalidades negativas.
Contudo, o direito de participação democrática no processo de licenciamento, sobretudo durante a definição das atividades aceitáveis ou não, é a melhor forma de garantir sua efetividade. Deve ser garantida a participação o mais amplamente possível, da mais variada gama de setores da sociedade civil, a exemplo do que ocorre nas audiências públicas do EIA/RIMA. Setores políticos, científicos, jurídicos, econômicos e a sociedade civil, entre outros, devem exercer igual poder de opinião e decisão, abrindo-se um amplo debate, de forma livre. Mas somente a decisão tomada pela maioria possui legitimidade.
Igualmente, o exercício do poder de polícia ambiental deve obedecer ao que foi democraticamente definido. Aos órgãos e agentes ambientais devem estar livres de pressões que possam afetar a isenção de suas atividades. Devem, ainda, estar devidamente instrumentalizados, tanto material quanto financeiramente. É notória, no Brasil, a falta de agentes ambientais em quantidade suficiente para garantir o exercício da atividade de polícia ambiental, bem com é igualmente notória a falta de meios materiais e financeiros. Não basta normatizar o poder de polícia. É preciso vontade política para garantir sua plena efetividade. O funcionamento dos órgãos de polícia ambiental deve ter a prioridade que merece.
Somente assim a atividade de licenciamento ambiental pode fugir da dominação de grupos econômicos ou de interesses localizados, passando a exercer seu papel de verdadeiro instrumento a serviço da harmonização entre atividade econômica e o bem público que é o meio ambiente ecologicamente equilibrado.