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Hermenêutica jurídica e a efetividade dos direitos fundamentais

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Sumário: 1.Introdução. 2. Direito natural e positivo, positivismo jurídico e pós-positivismo – aspectos destacados da evolução da noção de direito. 3. A hermenêutica jurídica tradicional e sua crítica. 4. Uma nova hermenêutica para a efetividade dos direitos fundamentais. 5. Considerações finais.


1. Introdução

Este artigo analisa o papel da hermenêutica jurídica na efetividade dos direitos fundamentais, iniciando pela abordagem de aspectos destacados da evolução da noção de direito a partir do direito natural, passando pelo direito positivo e pelo positivismo jurídico, chegando ao pós-positivismo.

Na sequência identifica os métodos interpretativos da hermenêutica tradicional, apresenta sua crítica e se encerra pela análise da proposta de uma nova hermenêutica voltada para a efetividade dos direitos fundamentais.


2. Direito natural e positivo, positivismo e pós-positivismo jurídico – aspectos destacados da evolução da noção de direito

Sem perder de vista que existe uma razoável dificuldade para se traçar uma definição precisa do que venha a ser o direito, como observa Tércio Sampaio Ferraz Júnior (2001, p.32), este é aqui tomado como técnica que tem por objeto o comportamento intersubjetivo que como objetivo o estabelecimento de uma condição de coexistência entre os homens (ABBAGNANO,1999, p.278), regulando desta forma o uso da força (BOBBIO, 1999, p.155).

A filosofia clássica acreditava em um direito natural fora do controle do homem e em um direito positivo criado por suas convenções. Assim a ‘justiça natural’ seria aquela que de forma imutável e desvinculada da vontade dos homens, tem a mesma força em todos os lugares; enquanto a ‘justiça legal’ seria aquela que se estabelece por meio da lei ou de decretos (ARISTÓTELES, 2008, p.117).

Dois séculos depois de Aristóteles, tal concepção chegou ao mundo romano, onde foi assimilada por influência do estoicismo, escola filosófica que concebia a lei como uma ‘força natural’ encontrada na inteligência do homem racional, existindo "apenas uma justiça que obriga toda sociedade humana e que se baseia numa única lei, que é a razão correta" (CÍCERO, 2002, p.35-40).

Mais tarde a filosofia medieval preocupou-se em resgatar o pensamento clássico, esforçando-se, porém, como convinha à expansão do poder da igreja, em substituir "a vagueza do conceito panteísta de razão divina universal, pelo Deus do cristianismo", como aponta Alf Ross (2003, p.282-283).

Naquele cenário teve destaque a obra de São Tomás de Aquino, teólogo que concebia a existência de uma ‘lei eterna’ responsável por regular todas as coisas e criaturas, inclusive as irracionais, apontando que exatamente por decorrer a lei da própria razão, apenas a participação das criaturas racionais na lei eterna pode indicar o que vem a ser a ‘lei natural’ - de conteúdo imutável e válido para todos os homens, diferenciando-se assim da ‘lei dos homens’, que tem seu conteúdo diferente entre os diferentes povos (TOMÁS DE AQUINO, 2002, p.53-72).

A passagem do mundo medieval para o moderno foi marcada pela quebra do paradigma teocêntrico, pela concentração do poder político que culminou com a formação dos Estados Nacionais, pelo fortalecimento da burguesia e por certo enfraquecimento no poder da igreja, abrindo espaço para a uma nova concepção de direito.

Neste sentido foi marcante a conclusão de Hugo Grocio (já no Século XVI), afirmando que o direito natural não se vincula aos desígnios de Deus, mas à "reta razão do homem", possuindo um conteúdo tão imutável, que não pode ser modificado nem pelo próprio Deus (GROTIUS, 2004, p.79-81), que deixou de ser a fonte única do direito, inaugurando-se um período de laicização de suas concepções.

Maria Helena Diniz (2006, p.36-50) aponta as várias vertentes que a concepção racionalista do direito produziu, ressaltando que cada uma delas buscou encontrar apoio em diversos aspectos do homem para apontar sua razão de ser, decorrendo ora da natureza social do homem, ora de seu individualismo, ora de sua liberdade.

A partir do Século XVII o paradigma de racionalidade difundiu-se e serviu de base ao desenvolvimento das ciências, tendo sido grande a influência do pensamento de Descartes neste sentido, com sua proposta de um método racionalista sem o qual não se poderia fazer a correta análise científica, nem buscar o conhecimento profundo de todas as coisas (DESCARTES, 2004, p.54-55), pensamento que se incorporou ao ideal iluminista.

Racionalismo, Iluminismo e direito natural racionalista, fortaleceram os discursos filosóficos que apoiaram as Revoluções Burguesas (Americana em 1776 e Francesa em 1789), bem como o processo de codificação do direito, que foi empreendido com o objetivo de garantir "o máximo de racionalidade ao sistema jurídico, operando-se segundo os interesses da burguesia e do capitalismo", como observa Boaventura de Souza Santos. (2002, p. 223).

O processo de codificação fez firmar o "empirismo exegético", preconizando que o direito se identifica inteiramente com a lei escrita, cabendo ao jurista tão somente revelar o sentido da norma, noção que se espalhou a partir da França (após a promulgação do Código de Napoleão em 1804), para a Alemanha com o ’pandectismo’ (que preconizava o respeito ao texto do direito romano então incorporado ao sistema jurídico local) e para os países da common law com a "escola analítica" (que fazia a defesa da lógica analítica e mecânica na interpretação do direito costumeiro). (DINIZ, 2006, p.50-97).

Como reação à expansão do direito natural racionalista e oposição à ideia de codificação do direito, no final do século XVIII surgiu a chamada "escola histórica", afirmando que é na verdade o costume a fonte suprema do direito (e não a lei), contestando a possibilidade da formação de seu conteúdo por meio de meras deliberações racionais do homem (ROSS, 2003, p.291), bem como que diante da individualidade e da variedade do homem, não se pode conceber um direito que seja único e imutável, pelo que seria imperativo concluir que este não deriva de cálculos racionais, mas de sentimentos de justiça e injustiça permanentemente registrados no coração (e não na racionalidade) do homem (BOBBIO, 1999, p.52).

Observa Bobbio (1999, p.53-55) que apesar de sua firme crítica à imutabilidade e universalidade preconizadas pelo direito natural, bem como a defesa que fez do direito consuetudinário, a escola histórica não impediu que vingasse o projeto iluminista-racionalista de "positivação do direito natural", como mostrou o processo de codificação.

Em meados do Século XIX, Augusto Comte publicou seu Curso de Filosofia Positiva afirmando que as concepções intelectuais do homem evoluem das primeiras concepções meramente sobrenaturais (das fases mais primitivas), para um pensamento no qual a ciência consegue explicar todos os fatos por leis gerais baseadas em uma ordem positiva, o que correspondia, na sua visão, ao estágio em que se encontravam a física, a matemática, a astronomia, a química e a biologia, ciências que tinham conquistado a positividade. Assim pretendeu desenvolver uma nova ciência, a física social (sociologia), afirmando-a única ciência geral da sociedade, da qual a a ciência jurídica faz parte. (COMTE, 1973, p.10-26).

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Destes pressupostos nasceu o positivismo jurídico como um esforço empreendido no sentido de fundar uma ciência jurídica avalorativa - como toda ciência, tendo assim as características semelhantes à ciência matemática ou física, precupada apenas com o estudo de um direito desvinculado de qualquer discussão a respeito de justiça, verdade ou de noções de direito natural. (BOBBIO, 1999, p.135-136).

No início do Século XX, como aponta Maria Helena Diniz (2006, p.117), a ciência jurídica encontrou no positivismo jurídico o apoio necessário, criando uma teoria pura capaz de marcar a mais absoluta neutralidade frente a questões éticas e políticas que fervilhavam.

Nessa linha firmou-se o "racionalismo dogmático" ou "normativismo jurídico", afirmando que o objeto da ciência jurídica concerne apenas ao direito contido nas normas (teoria estática) e ao processo de sua criação e aplicação (teoria dinâmica), sem existir qualquer espaço em tal objeto para as questões ligadas à moral, tendo em vista que uma legitimação do direito pela moral é absolutamente insustentável do ponto de vista da ciência jurídica, à qual não cabe justificar o direito (KELSEN, 1998, p.78-81).

Governos totalitários serviram-se do positivismo jurídico para se manter no poder e para justificar a legalidade de suas políticas, tendo restado claro, notadamente após a apuração das atrocidades nazistas, que os direitos humanos necessitavam de uma maior proteção jurídica, com o que surgiu o pós-positivismo (ou neoconstitucionalismo), uma teoria que, com ressalta Garcia Figueroa (2005, p.164-170), pretende superar o positivismo por meio de um processo de constitucionalização do direito, conferindo-lhe uma carga de valores por meio da expansividade dos princípios constitucionais.

O novo modelo tem como marcos delineadores o desenvolvimento da hermenêutica constitucional e o reconhecimento da força normativa da Constituição - que deixou de ser mero "convite à atuação dos Poderes públicos", para assumir um papel efetivamente normativo, inaugurando-se uma nova concepção a respeito da atuação do poder político. (BARROSO, 2005, p.4-8).

A superação das barreiras impostas pelo positivismo preconiza a prevalência dos valores no lugar das normas, da ponderação no lugar da subsunção, da onipresença da Constituição frente ao direito ordinário e a onipotência do Judiciário frente à autonomia do legislador (STRECK, 2005, p.158), com o que se abre caminho para a efetiva proteção aos direitos humanos, transformados em direitos fundamentais a partir de sua inclusão protetiva no conteúdo constitucional.


3. A hermenêutica jurídica tradicional e sua crítica

Lenio Streck lembra que as promessas da modernidade ainda não se concretizaram no Brasil, onde persiste uma desfuncionalidade do direito, o que em parte pode ser explicado pela formação jurídica precária dos profissionais da área, os quais muitas vezes permanecem reféns de um "sentido comum teórico" (expressão de Warat) produzido por uma cultura de manuais que "ficcionaliza o mundo jurídico" e os afasta da realidade social. (2005, 81-88).

Esta cultura standard fornecida pelos manuais seria a responsável pela reprodução de um sentido da norma desconectado do contexto de sua aplicação, fazendo supor que seria possível identificar a vontade da norma, a vontade do legislador, o espírito da lei, a interpretação correta ou ainda, o real sentido da norma jurídica, o que se opera por meio de uma atividade mergulhada em uma hermenêutica normativa que procura respaldar métodos ou técnicas de interpretação. (STRECK, 2005, 88-112).

Entendia Savigny (2005, p.25) que interpretar significa reconstruir o conteúdo da lei, para o que deve o intérprete se localizar no ponto de vista do legislador, "produzindo artificialmente seu pensamento", o que importa em desvendar o sentido da lei com base nela mesma, como ressalta Tércio Sampaio Ferraz Júnior (1999, p.240).

Com o passar do tempo, prossegue Tércio, Savigny começou a perceber que o processo de interpretação das normas transcende a adoção de meras técnicas destinadas a esclarecer a vontade da própria norma, surgindo daí um período caracterizado pela oscilação entre o entendimento de que interpretar é compreender o pensamento do legislador e o entendimento de que a interpretação corresponde à busca por uma convicção comum do povo (FERRAZ JR., 1989, p.240-241).

A busca pela vontade do legislador, a mens legislatoris, e a própria busca pelo senso comum do povo (em última análise, a vontade do legislador representa a vontade do povo, já que aquele é o legítimo representante deste) culminaram na teoria subjetiva da interpretação.

A teoria objetiva, por outro lado, se firmou no afastamento do querer do legislador, estabelecendo que ao intérprete cabe "ater-se à vontade da lei, à mens legis". Isso porque "a norma seria uma ‘vontade’ transformada em palavras, uma força objetivada independente do seu autor" (DINIZ, 2006, p.427-428).

Embora aparentemente antagônicas, essas duas teorias mais se completam do que se afastam uma da outra. Durante os últimos dois séculos, elas abriram espaço para o desenvolvimento de técnicas e métodos de interpretação que formam o que hoje se conhece pelo pensamento dogmático da hermenêutica jurídica.

Estabelecido pela Escola da Exegese, na França, o sistema dogmático é marcado pelas características de pressuposição da plenitude da lei, que não admite lacunas; da interpretação literal da lei como forma de garantir a sua atemporalidade; do foco sobre a vontade do legislador, limitando a interpretação a uma função meramente declarativa; e da redução do Estado à única fonte de Direito (MAGALHÃES FILHO, 2002, p.58-65).

Nesse sentido podem-se destacar as técnicas gramatical, lógica e sistemática de interpretação, com origem na teoria objetiva, assim como os métodos teleológico, axiológico, sociológico e histórico, desenvolvidos a partir da teoria subjetiva da interpretação (FERRAZ JR., 1989, p.241).

Se, por um lado, é possível identificar um certo avanço dos métodos desenvolvidos a partir da teoria subjetiva (teleológico, axiológico, sociológico e histórico), quando em comparação com as técnicas gramatical, lógica e sistemática de interpretação, também não se pode olvidar que o caráter dogmático permanece impregnado ao sistema hermenêutico, bem como que o papel do intérprete é deixado em segundo plano.

Nesse caminho a hermenêutica tradicional sustenta práticas dogmáticas que se afastam da necessidade de realizar os direitos sociais e fundamentais, apontando Lenio Streck que se mostra imperativo ao jurista romper com aquele paradigma de interpretação, abrindo espaço para um direito que permita o resgate das promessas da modernidade, atentando-se para a diferença entre direito positivo e positivismo jurídico, bem como entre dogmática jurídica e dogmatismo jurídico. ( 2005, p.243).

A dogmática corresponde ao sistema primitivo ou tradicional de hermenêutica, pelo qual o Direito se submete aos textos rígidos, sendo interpretado com base na vontade "de um legislador há muito sepultado". Assim, a busca pela vontade do legislador, embora tenha sua razão de ser, não pode ser tratada como único caminho para se chegar ao sentido de uma norma. "O erro consiste em generalizar o processo, fazer do que é simplesmente um dentre muitos recursos da Hermenêutica - o objetivo único, o alvo geral; confundir o meio com o fim". (MAXIMILIANO, 2002, p.36).

Warat denuncia que os métodos dogmáticos de interpretação produzem uma visão imaginária sobre a função do direito e tentam fazer crer que se lhe pode conferir um caráter de objetividade quando, na vida prática, o direito presencia o conflito de interpretações, as quais não admitem ser tratadas sob uma lógica unificadora.

Ressalta o autor que a objetividade que se pretende atribuir ao direito é simbólica e tende a produzir uma falsa segurança jurídica, de forma que "a realidade do social e do jurídico é precisamente esta articulação de incertezas contingentes e não a objetividade produzida contingentemente pelo saber" (WARAT, 1994, p. 19 a 29).

O que se verifica a partir da análise das técnicas e métodos descritos, é que a hermenêutica jurídica tradicional tem um firme compromisso com a reprodução de sentidos vazios de significado, permanecendo presa a métodos concebidos há mais de dois séculos e que não dão conta da necessidade de criação de um direito que atenda aos anseios de uma sociedade onde impera um profundo desequilíbrio de forças.


4. Uma nova hermenêutica para a efetividade dos direitos fundamentais

Observa Streck (2005, p.188-190), que hermenêutica tradicional se apresenta como mera "técnica de interpretação" no que se diferencia da chamada "hermenêutica filosófica", cujo objetivo é a construção de ‘um sentido’ a partir da necessária autocompreensão do sujeito (o intérprete), o que se opera por meio uma articulação linguística que questiona "a totalidade do existente humano e sua inserção no mundo" (2005, p.188-190).

A hermenêutica filosófica coloca em evidência o papel do intérprete, posto que é a partir dele, como ‘ser no mundo’, que se estabelecerá a construção de sentido do conteúdo analisado, ideia que se assenta no pensamento de Heidegger - para quem a atividade interpretativa inicia-se, necessariamente, pela pré-compreensão do intérprete (1988, p.207) e Gadamer - para quem não existe compreensão que seja livre de todo "pré-conceito". (1998, p.709).

Assim a superação da hermenêutica tradicional tem como ponto de partida a redefinição do papel do intérprete no processo de construção de sentido, lembrando Eros Grau que "a neutralidade política do intérprete só existe nos livros", dissolvendo-se na prática do dia a dia das decisões jurídicas que, exatamente por serem jurídicas, são políticas. (2006, p.55).

Afastado de sua pretensa neutralidade, cabe ao intérprete a consciência de que "somente pela compreensão é que é possível interpretar", sendo a compreensão uma condição de possibilidade (da interpretação) que permite evitar ou ultrapassar a "obediência passiva à autoridade da tradição" e superar o ‘sentido comum teórico’ responsável por uma repetição de sentidos vazios, como aponta Streck (2005, p.273-274).

Ao hermeneuta cabe então estar aberto à necessidade de superar a "validez de pré-juízos" interpretativos, confrontando-os e fundindo-os em um "horizonte de sentido crítico" que se denota necessário a uma nova compreensão e que, assim, "não re(produzirá) um sentido inautêntico", mas construirá um sentido novo, de concreção do texto jurídico em conformidade com a finalidade social do direito. (STRECK, 2005, p.279-280).

Uma hermenêutica voltada à concreção dos direitos fundamentais funda-se no reconhecimento da força normativa dos princípios contidos na Constituição, bem como na necessidade de o juiz construir o sentido da norma frente ao caso concreto submetido a seu exame, tendo sempre em vista os objetivos do Estado Democrático de Direito, lembrando Guerra Filho (1997, p.17) que a Constituição fornece as linhas gerais que guiam o Estado na promoção do bem-estar comunitário, situação que exige o reconhecimento de um direito finalístico e prospectivo para permitir a resolução de questões não reguladas, sendo insuficiente para tanto, a lógica mecânica da subsunção.

Com efeito, como aponta Eros Grau (1997, p.312), interpretar o direito consiste em concretar a lei - o que se traduz em produzir sua aplicação por meio da atividade do hermeneuta frente ao caso concreto (o intérprete produz a norma pelos elementos que extrai do texto, somados com os elementos fornecidos pelo caso concreto), ideia também sustentada por Perez Luño (2005, p.260), ao afirmar que por este prisma a norma deixa de ser pressuposto, para se configurar em "resultado do processo hermenêutico", assumindo o intérprete seu papel ativo de criação do próprio direito (ao atuar de forma complementar ao legislador).

Consolida-se assim o pós-positivismo que Cademartori (2006, p. 136) aponta como uma "nova matriz epistemológica do direito", que assume como um de seus principais desafios equacionar as relações entre direito, moral e política e, por meio da qual a estrutura rígida das normas concebida por Kelsen cede espaço a uma concepção onde os casos concretos fornecem elementos à (re)construção de um conteúdo do sentido normativo.

A nova interpretação constitucional parte do pressuposto de que as cláusulas constitucionais, "por seu conteúdo aberto, principiológico e extremamente dependente da realidade subjacente, não se prestam ao sentido unívoco e objetivo que certa tradição exegética lhes pretende dar" (BARROSO, 2003, p.332), restando superada a possibilidade de se admitir válidos processos interpretativos baseados na mera subsunção.

A nova hermenêutica apresenta-se como uma atividade interpretativa que tem um firme compromisso com a efetividade da Constituição, traduzindo-se em um paradigma apto a garantir a efetividade dos direitos fundamentais, permitindo ao direito cumprir seu papel social.

A consecução dos objetivos de tal modelo hermenêutico exige um instrumental teórico apto a permitir ao intérprete um atuar questionador a partir do qual efetiva a construção, por meio de recursos da linguagem, do sentido normativo, cenário no qual se destaca a teoria da argumentação.

Observa Manuel Atienza que a teoria da argumentação jurídica oferece elementos úteis a tal desiderato, porque atua nos campos de produção, interpretação e aplicação do direito, cumprindo uma função política vinculada à identificação ideológica da base argumentativa, tendo (ou devendo ter) um necessário compromisso com uma concepção crítica frente ao Direito estatal. (2006, p.224-225).

O autor ressalta que a atual concepção a respeito da teoria da argumentação partiu de um consenso surgido em meados do Século XX, segundo o qual a lógica formal deve ser rejeitada para a análise dos raciocínios jurídicos (2006, p.46), descortinando-se em seu cenário inicial, as ideias da tópica jurídica e da nova retórica.

A tópica jurídica seria o "pensar por problemas", englobando a própria retórica, porque se utiliza de meios persuasivos fornecidos por suas técnicas argumentativas, estabelecendo lugares comuns conhecidos como topoi, fórmulas jurídicas capazes de exercer persuasão diante da existência de opiniões em sentidos opostos, como menciona Ferraz Jr. (1989, p.302-306).

Prossegue o autor ressaltando que se trata de um procedimento argumentativo dogmático que se traduz pela realização de questionamentos sucessivos, o que se inicia pela indagação quanto à consistência jurídica do conflito e origina a busca por respostas quanto à existência dos fatos, de sua autoria e justificativas, entre outras.

Seriam exemplos de elementos argumentativos utilizados pela tópica retórica, dentre outros, os argumentos ab absurdum (indicam que determinada situação, por estar envolvida em uma lógica inconcebível ou impossível, não pode ser considerada verdadeira nem ser aceita pelo senso comum); ab auctoritatem (denotam o reconhecimento público e o prestígio de que desfruta determinada pessoa ou determinada entidade que funcione como fonte de informação e conhecimento, sendo exemplos de sua utilização, expressões como "doutrina majoritária" e "pacífico entendimento doutrinário"); a fortiori (indicam que uma determinada premissa será considerada verdadeira quando puder ser considerada como englobada, hierarquicamente, por outra premissa, desde que esta seja tida como indiscutivelmente verdadeira, o que pode ser traduzido popularmente como "quem pode o mais pode o menos"); e a pari ou a simile (demonstram semelhança entre dois ou mais casos com a intenção de fazer-se aplicar-lhes uma mesma hipótese jurídica, a exemplo do que ocorre na analogia). (FERRAZ Jr., 1989, p. 306-314).

Canotilho alerta que há erro em se utilizar a tópica jurídica para o fim de interpretar a Constituição, porque tal caminho permitiria casuísmos sem limites ao ensejar uma adequação da norma ao caso concreto. Assim, afirma, não se pode fazer a interpretação "do problema para a norma", mas sim "das normas para os problemas", sendo mais adequado um método de construção de sentido que denomina de "hermenêutico-concretizador", apresentando como seus pressupostos, o papel criador do intérprete na criação de sentido para a norma, além de sua atuação como mediador entre o texto interpretado e a situação concreta de aplicação. (2003, p.1211).

O método hermenêutico-concretizador, conclui, parte da ideia de que a leitura do texto da norma tem início por sua pré-compreensão pelo intérprete, cabendo a este a partir daí concretizá-la, ou seja, produzir sua densificação por meio de um processo que parte de seu texto em direção à construção de uma norma jurídica concreta (2003, p.1201 e 1212), expressando assim um pensamento que se soma ao que acima se registrou a respeito da hermenêutica filosófica e do paradigma de superação do positivismo jurídico.

Como elemento útil à argumentação persuasiva necessária à consecução dos objetivos de construção do sentido das normas, notadamente frente aos chamados casos difíceis, cabe em conclusão colocar em destaque a proposição de Robert Alexy (2008), que a partir da análise da teoria geral do discurso (de onde extrai regras que denomina de fundamentais, racionais, de argumentação, de fundamentação e de transição), estabelece uma teoria da argumentação jurídica no cerne da qual aponta que as decisões jurídicas podem se justificar interna ou externamente por meio de argumentos lógicos, o que apresenta seu completo valor prático, como anota Atienza (2006, p.181), no contexto de uma adequada teoria do direito proposta pelo próprio Alexy (2002) em sua Teoria de los Derechos Fundamentales, uma teoria que pretende seja estrutural e integrativa dos direitos fundamentais, concebendo-os como princípios e regras, ambos com o mesmo conteúdo cogente.

Sobre os autores
Fernando Fabro Tomazine

Especialista em Direito Tributário, Auditor do Ministério Público de Santa Catarina. Florianópolis-SC

Daniel Natividade Rodrigues de Oliveira

Juiz do Trabalho da 12ª Região, Professor de Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho do Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina (CESUSC) e da Escola da Magistratura do Trabalho da AMATRA 12, Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TOMAZINE, Fernando Fabro; OLIVEIRA, Daniel Natividade Rodrigues. Hermenêutica jurídica e a efetividade dos direitos fundamentais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2434, 1 mar. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14418. Acesso em: 23 dez. 2024.

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