5. Considerações finais
O paradigma de racionalidade que se difundiu a partir do Século XVII repercutiu no âmbito do direito e conduziu ao processo de codificação iniciado dois séculos depois, no cerne do qual se estabeleceu um consenso em torno da certeza jurídica (necessária à expansão do capitalismo e dos interesses burgueses), firmando-se a equivocada ideia de que o direito se limita e se identifica com o contido na lei, estando dessa forma limitada, também, a tarefa do jurista - a quem caberia unicamente identificar o sentido da norma pré-estabelecida.
O positivismo de Comte defendia a ideia de uma ‘física social’, ou seja, uma ‘ciência geral da sociedade’ que englobaria a ciência jurídica e que, exatamente por se tratar de ciência, deveria ser absolutamente avalorativa (distante de discussões a respeito do valor justiça), aproximando-se neste aspecto das caracterísitcas inerentes às ciências exatas, a exemplo da matemática e da física. Assim deu origem ao positivismo jurídico, que consolidou a noção de que a ciência do direito haveria de se manter distante de qualquer discussão moral, estabelecendo-se, mais tarde, nesta mesma linha, o normativismo jurídico de Kelsen.
Não havendo direito fora das leis, os Estados totalitários do Século XX encontraram espaço para legitimar a legalidade de suas políticas, impondo sérias e reiteradas violações aos direitos humanos, cuja proteção e efetividade passaram a reclamar uma maior atenção. Assim, em resposta a tal demanda, surgiu o pós-positivismo (ou neoconstitucionalismo), uma teoria que se baseia no reconhecimento da força cogente do inteiro conteúdo constitucional, cujos termos passam a obrigar todos os poderes políticos do Estado no sentido de reconhecer, proteger e efetivar os direitos fundamentais.
O pós-positivismo impõe superar a lógica interpretativa da subsunção preconizada pelo positivismo jurídico, ou seja, a lógica da chamada ‘hermenêutica tradicional’, que se funda nas técnicas gramatical, lógica e sistemática de interpretação, bem como nos métodos teleológico, axiológico, sociológico e histórico.
Assume seu lugar o paradigma da ‘hermenêutica filosófica’, que se baseia na ideia de que cabe ao intérprete (com sua inexistente neutralidade), atuar de forma direta no processo de construção de sentido da norma frente ao caso concreto, tendo em vista ser mera ficção a ideia preconizada pela antiga hermenêutica, de que seria realmente possível identificar a ‘vontade da lei’ ou a ‘vontade do legislador’.
Como a interpretação do direito passou a ser reconhecida como atividade de criação da norma frente ao caso concreto, esta deixou de se constituir em objeto de análise interpretativa por parte do jurista, para passar a ser o resultado de seu agir, assumindo o hermeneuta papel central neste cenário, tornando-se possível equacionar conflitos entre o direito e moral, bem como construir a solução mais adequada para cada situação concreta, sem descuidar do valor justiça.
Sem o reconhecimento das possibilidades trazidas pela ‘nova hermenêutica’ e sem a superação dos postulados do positivismo jurídico por meio da (re)aproximação entre direito e moral (efeito do pós-positivismo), permaneceria em sério risco a efetividade do conteúdo constitucional e dos direitos fundamentais nela contidos.
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