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Garantismo, igualdade e tutela de direitos fundamentais

Agenda 01/03/2010 às 00:00

O título deste artigo faz parte do "ponto de vista externo" do garantismo, conforme se pode extrair do Cap. 14 da obra de Ferrajoli, [01] o que não poderia deixar de ser precedido do "ponto de vista interno", do sistema político e da análise relativa ao caráter instrumental do direito e do Estado, referentemente às finalidades, aos valores, às necessidades, aos interesses e vontades extra-estatais e metajurídicas. [02]

Luigi Ferrajoli contextualiza o assunto informando que sua abordagem não poderia prescindir da identificação das técnicas institucionais por meio das quais o ponto de vista externo penetra nas modernas formas do moderno "Estado de direito", como vínculos funcionais para incorporação das normas constitucionais dos direitos fundamentais e condicionam a validade jurídica da inteira atividade do Estado. [03]

"Ponto de vista externo" ou "de baixo" significa o ponto de vista das pessoas. O primado axiológico representa os diversos e específicos valores das pessoas. Estes são externos ao sistema jurídico e expressos pelas pessoas. [04] Nesse ponto, o garantismo é consentâneo coma proposta de Kelsen, construída no sentido de que a ciência jurídica não pode trazer em si valores. O jurista deve buscar o conhecimento científico, fazer ciência e não política do Direito. [05]

"A tolerância pode ser definida como a atribuição da pessoa ao mesmo valor". [06] É da conjugação do princípio de tolerância com o valor primário e cada pessoa que emerge a complexa igualdade jurídica, a qual inclui diferenças pessoais e exclui diferenças sociais. Todavia, tal estudo não pode ser afastado do relativo à desobediência e à resistência, tema abordado por Ferrajoli [07] e que será objeto do próximo artigo que publicarei nesta série acerca do garantismo.

Em primeiro sentido, igualdade representa um valor atribuido a cada diferente pessoa "sem distinção", permitindo que cada pessoa seja diversa e, ao mesmo tempo, como todas as outras. É igualdade formal ou política. Aqui adentra a importância da tolerância, que obriga o respeito às diferenças, tornando intolerável a violação ao respeito das diferenças que formam as diversas identidades das pessoas. [08]

O segundo sentido de igualdade é denominada por Luigi Ferrajoli de substancial ou social. Importa em desvalor associado às diferenças econômicas e sociais. Tais diferenças impedem o pleno desenvolvimento da pessoa humana porque deformam deformam a identidade e determinam a desigualdade. Daí serem intoleráveis. Porém, somente as desigualdades jurídicas que obstam a vida, a liberdade, a sobrevivência serão intoleráveis, cujos limites quantitativos e qualitativos tem análise dificílima na filosofia jurídica e política. [09]

Igualdade, em qualquer dos sentidos, não é uma tese descritiva, mas um princípio normativo, até porque e um juízo de valor ou, mais simplesmente, apenas valor. No primeiro, deve-se reconhecer que os homens são iguais, apesar das diferenças específicas, enquanto que, no segundo sentido, as desigualdades serão reconhecidas, mas com limites de intolerabilidade.

Em todos os casos de igualdade, pode-se falar em igualdade de direitos fundamentais porque as técnicas para assegurar ou perseguir a igualdades, tem em vista a proteção de direitos fundamentais. Ocorre que, no primeiro caso, estar-se-á diante do direito de ver respeitadas suas diferenças, enquanto no segundo de compensação pelas desigualdades. [10]

Como é bom estudar. Um assunto que me inquietava era o relativo à distinção entre "direito subjetivo" e "poder", tendo manifestado publicamente isso. [11] Agora, após ler Ferrajoli, sinto-me compelido a refutar parte daquilo que me foi ensinado, com base em teorias germânicas, visto que são conceitos distintos.

Luigi Ferrajoli redefine direitos fundamentais como aqueles cuja garantia é necessária a satisfazer o valor das pessoas e a realizar-lhes a igualdade. Com isso, retira do âmbito dos direitos fundamentais aqueles patrimoniais porque são negociáveis, uma vez que os direitos fundamentais são inegociáveis e só existirão como tais enquanto forem constitutivos de igualdade. Daí propor uma drástica revisão terminológica, a fim de dizer que não se pode tratar com a mesma denominação modalidades deônticas de conteúdos opostos. [12]

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Os direitos fundamentais são diferentes das situações jurídicas particulares porque: (a) são universais, dizendo respeito à igualdade de todos; (b) personalíssimos e, portanto, indivisíveis. Com isso a ofensa ao valor de uma pessoa atingirá ao de todos; (c) invioláveis, inalienáveis e indisponíveis, uma vez que sua violação justifica a violência (legítima defesa). Então, o autor arremata, dizendo que tudo isso "torna ainda mais insensata a associação entre direitos fundamentais e outras figuras de direitos e prerrogativas sugerida pela mais que globais categorias dos ‘direitos subjetivos’ e ‘situações jurídicas’". [13]

O fundamento axiológico externo do direito está consagrado positivamente e, portanto, é jurídico. É externo porque distinto das situações jurídicas privadas e até mesmo públicas, assim como Direito é separado da moral e o Estado da sociedade. Nesse ponto, fica fácil perceber que Ferrajoli é um positivista por valorizar a teoria do conhecimento e visar à análise metodológica (fragmentária) do Direito.

Ferrajoli critica a moderna doutrina dos direitos naturais, desenvolvida nos Séculos XVII e XVIII, dizendo equivocado transformar a liberdade em propriedade e os não poderes em poderes, bem como não aceita estabelecer que a "categoria dos direitos direitos subjetivos" contenha os direitos fundamentais, não mais como fundadores do Estado, mas como fundados por este. [14]

Houve uma reformulação conceitual em que os direitos fundamentais foram mantidos como naturais. Porém, Luigi Ferrajoli cita Hobbes para dizer que a lei é um vínculo e o direito é uma liberdade, sendo os dois termos antitéticos. O autor lamenta que a inversão tenha se operado por obra dos alemães, expondo:

As etapas desta operação são muito mais complexas, e têm a desventura de terem sido desenvolvidas em um país como a Alemanha, de frágeis tradições liberais e constitucionais e forte vocações às abstrações idealistas. Transportado para o campo do direito público e aplicado aos direitos fundamentais, o esquema privado de direito subjetivo se revela de uma desconfortável fragilidade; seja na sua configuração como "poder de querer" (Willensmacht), propugnada sobretudo por Windscheid, seja naquela do "interesse juridicamente protegido" sustentada por Jhering. [15]

É interessante perceber que a noção de direito subjetivo, cunhada pelos alemães, conduz a uma metafísica estatal em que não somente direitos públicos e privados são considerados direitos subjetivos. Por tal concepção, os poderes públicos aí estão incluidos ("direitos públicos" dos estados contra os cidadãos), autorizando exigir obediência ou, pior, fidelidade. [16] Então, Ferrajoli informa que Hans Kelsen a considerou inconsistente por causa da sua generalidade e a desclassificou com o pressuposto técnico de aplicação da sanção. [17]

Lamentavelmente, no Brasil, hoje predomina cultura germânica, a qual é difundida por Gilmar Ferreira Mendes e outros, valorizando a teoria dos quatro status dos direitos fundamentais (direitos de defesa, normas de proteção dos direitos fundamentais, garantias positivas do exercício das liberdades e dever de proteção). [18] De outro modo, Ferrajoli afima:

Toda esta história é evidentemente um capítulo, entre os mais importantes e desoladores, do incremento estatal e autoritário, muitas vezes assinalado, devido ao pensamento liberal do século passado. E cabe a afirmação, na cultura jurídica europeia, de uma concepção abertamente autopoiética do direito e do estado. Naturalmente, em tema de fundamentos, o problema é de escolha, e são igualmente legítimas e valorativas seja a opção autopoiética que a heteropoiética. Apenas que a primeira induz inevitavelmente a resultados ético-legalistas, que contradizem o modelo seja histórico que teórico do moderno Estado democrático de direito, enquanto a segunda, evidenciando o caráter ‘posto", ou "fundado" pelos homens, tanto do direito quanto do Estado, é a tal modelo, seguramente, mais aderente. [19]

Reconhece-se que a proposição pode até ser considerada semântica, mas é importante que se distinga os "direitos fundamentais" dos "direitos-poderes" e das "capacidades", a fim de que se impeça a mistificação liberal da propriedade como liberdade e a não menos grave mistificação marxista-leninista da liberdade como liberdade de troca ou de mercado.

Uma reformulação das fundações teóricas dos direitos fundamentais exigiria modificar toda construção em torno do assunto. Então, pensemos em direitos de liberdade ("direitos de") e direitos sociais ("direitos a"). Porém, não se pode perder de vista que, em todos os casos, os direitos fundamentais se referem aos valores e às carências vitais das pessoas e é da sua qualidade, quantidade e grau de garantia que pode ser definida a qualidade de uma democracia e pode ser mensurado o seu progresso. [20]

Dois problemas são tangenciados: (a) as relações entre os diversos direitos, do caráter ético-político, exigindo ponderação de valores e os critérios para solução dos conflitos; (b) a natureza das suas garantias jurídicas, o mais importante, que exigem a análise sob dois princípios garantistas de caráter geral: legalidade e submissão à jurisdição.

As leis devem fixar os limites de atuação dos administrados e estabelecer a forma de agir dos agentes e a submissão à jurisdição exige maior participação política do Poder Judiciário na atividade do governo sobre as questões da maioria, como instrumento de autodefesa ou de controle das atividades do poder público. [21] Luís Barroso concorda com a idéia de o legalismo estrito deve ser ultrapassado. [22]

Acerca da legitimação garantista, expõe:

A legitimação formal é aquela assegurada pelo princípio da legalidade e pela sujeição do juiz à lei. A legitimação substancial é aquela que provém da função judiciária e da sua capacidade de tutela ou garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos. [23]

O nexo entre a legitimação formal e a substancial é mais estreito no campo do Direito Criminal que no dos outros ramos do Direito. Nos campos civil e administrativo, os direitos fundamentais são de outra natureza, não exigindo denotação dos casos específicos, pondo incorporar regras gerais ou critérios valorativos e a "verdade substancial" cede espaço à "verdade processual".

Apenas um remodelamento do papel legislativo, sustentado por nova e atualizada ciência da legislação, pode reestruturar e instaurar uma legalidade garantista, reservando a ela uma sólida defesa dos direitos fundamentais. Ocorre que estados democráticos que incorporam em suas Constituições valores e expectativas elevados e utópicos consagram sistemas imperfeitos, mas essenciais à transformação e projeção de um direito garantista. [24]

Concluo dizendo que não posso concordar com algumas idéias funcionalistas que pretendem atribuir maiores poderes normativos aos juízes porque não pretendo viver sob ditadura judicial, mas reconheço ser inoportuno dizer que o "Juiz é a boca da lei". Por isso, mantenho-me fiel aos ideais garantistas.


Notas

  1. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2.002. p. 725-737.
  2. Ibidem. p. 725.
  3. Ibidem.
  4. Ibidem. p. 726.
  5. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 1.
  6. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2.002. p. 726.
  7. Ibidem. p. 737-758.
  8. Ibidem. p. 726.
  9. Ibidem. p. 726.
  10. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2.002. p. 727.
  11. MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. Prescrição penal. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2.003. p. 27.
  12. FERRAJOLI, Luigi. Op cit. p. 728.
  13. Ibidem. p. 730.
  14. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2.002. p. 730-731.
  15. Ibidem. p. 731.
  16. Ibidem. p. 731.
  17. Ibidem. p. 732.
  18. MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2.004. p. 3-12.
  19. Ibidem.
  20. Ibidem. p. 733.
  21. Ibidem. p. 734-735.
  22. BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2.003. p. 343.
  23. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2.002. p. 735.
  24. Ibidem. p. 736-737.
Sobre o autor
Sidio Rosa de Mesquita Júnior

Procurador Federal e Professor Universitário. Graduado em Segurança Pública (1989) e em Direito (1994). Especialista Direito Penal e Criminologia (1996) e Metodologia do Ensino Superior (1999). Mestre em Direito (2002). Doutorando em Direito. Autor dos livros "Prescrição Penal"; "Execução Criminal: Teoria e Prática"; e "Comentários à Lei Antidrogas: Lei n. 11.343, de 23.8.2006" (todos da Editora Atlas).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa. Garantismo, igualdade e tutela de direitos fundamentais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2434, 1 mar. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14425. Acesso em: 23 dez. 2024.

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