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Locar para morar.

Caracteres do contrato de locação e a poética da casa

Agenda 21/04/2010 às 00:00

Lócus de um relicário de sonhos. Imagens em refluxo constante nos desvãos da memória, nos desvãos entre os quartos, nos vãos das varandas. Sala de jantar, gabinete, vestíbulo. Vestíbulo do tempo que cruza as pontes para o desconhecido. O desconhecido das calçadas, das plantas a serem podadas, dos transeuntes gasefeitos. Umidades. Umidades das paredes, das falas, dos gestos, dos risos e das lágrimas. Mãos espalmadas, enlaçadas. Mãos vazias, enjeitadas. Solidão. Portão que se abre, rangido entre os ferros. Portão que se fecha com gosto de nunca mais. Muros se levantam contra o vazio das tardes. O olhar se adensa na saudade. Lócus de um relicário de sonhos, lócus do coração. Esse lócus é a casa, casa onde se inventa um lar. Mesmo o mais nômade dos homens, por fim, nela ancora, anseia na sua aventura, merecer, por fim, a ventura de suas entranhas [01].

Casa que é o prolongamento do útero materno, onde se gesta o quotidiano, onde se gesta a si mesmo. Em suas malhas o ser humano se multiplica, se alimenta e se reconduz à luz da vida [02], para depois a ela retornar e, em seu lusco-fusco, reintegrar-se a si mesmo [03].

O lar sempre será meu, mas a casa, se não o for, terá de ser locada. A raiz de um lar nos remonta a tempos imemoriais; o contrato de locação, a locatio rei, tem sua raiz no direito romano. Segundo Gomes (2007), integrava a locatio conductio junto à locatio operarum (locação de obras) e a locatio operis faciendi (locação de serviços). Por essa espécie contratual, prometia-se que diante de um dado pagamento, o contratante pudesse fruir da coisa. Aquele que cedia a coisa para que fosse fruída, denominava-se locator, o cedido que iria fruí-la, conductor. Caso a situação da coisa a ser locada fosse urbana, o fruidor receberia o nome de inquilinus, caso fosse rural, colonus. Como resquício do modelo social medieval, aquele que loca coisa com fins residenciais é também chamado de senhorio, numa alusão ao senhor feudal, os landlords dos ingleses no seu Common Law. Hodiernamente, a locação se dá tão somente no tocante a coisas, não mais no que tange a serviços e a obras como preceituavam os romanos.

Na locatio rei com fins de moradia, concedem-se, temporariamente, os direitos de uso e gozo (jus utendi e jus fruendi) de coisa não-fungível; esses poderes são exercidos tão somente sobre a coisa objeto da locação, mas o vínculo emocional passa a perpassar por todo o seu entorno, sobre o qual o homem se apropria, tornando-o, também, insubstituível. Conforme sejam trançados esses liames entre o locatário e o lócus da sua casa locada, de maneira satisfatória, esses espaço passa a integrar a casa, o imaginário e a afetividade do inquilinus [04].

Ontologicamnete, a essência do contrato de locação é constituída pelos elementos consensus (consentimento), res (coisa) e pretium (preço). Nader (2008) inclui nessa essência o prazo, enquanto que Caio Mário (2009) inclui a forma. A volitas (vontade) das partes ocupa lugar hegemônico diante dos demais elementos, sendo imprescindível para o estabelecimento do vínculo entre as partes, formando-se, pois, solo consenso, sendo despiciendo o domínio e bastando a posse para ceder-se a casa em locação. Para o poeta essa relação contratual não se dá entre o locador e o locatário, mas no vínculo plurívoco, nem sempre consensual entre o morador e a casa [05]. Contrato oneroso, gratuito fosse, seria comodato... Os cômodos da casa, se está vazia, rodam uma ciranda ao som do silêncio, e todos os homens que, porventura, um dia nela moraram, retornam, passeiam e vigiam pelos corredores a perscrutar o que da casa resta e o que já foi levado [06]. Contrato bilateral, sinalagmático, direitos e obrigações correspectivas, o locator deve entregar a casa e o inquilinus deve cuidar da casa como se sua própria o fora, mediante o pagamento de um quantum, o aluguel ou aluguer, respondendo pelos estragos advindos de sua culpa. No entanto, mesmo havendo o uso contratual em contrário, a princípio compete ao locador conservá-la nas condições indispensáveis ao seu uso, respondendo pelos reparos de urgência, ordinários e extraordinários [07]. Em caso de força maior ou caso fortuito, aplicar-se-á a "Teoria dos Riscos".

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A forma do contrato locatício é livre, podendo ser verbal ou escrita, desde que os demais elementos estejam bem determinados seguindo as asas das vontades das partes contratantes e, especialmente, no caso de ser verbal, a especificação da casa a ser locada [08], e o quantum relativo ao aluguel.

Mesmo diante de tanta poesia, o contrato de locação não é intuitu personae, mas sim, impessoal, tanto quanto ao locator, quanto ao inquilinus, admitindo-se, assim, a cessão de direitos e obrigações contratuais, logo, a sublocação é permitida, a menos que seja expressamente vedada em contrato.Em razão da impessoalidade, a morte de quaisquer das partes não o extingue. É contrato de duração, por tempo determinado, ou por tempo indeterminado, sua execução, inarredavelmente, escorre no tempo [09]. Em alguns ordenamentos jurídicos alienígenas, estabelece-se prazo máximo para a locação, de modo a não convertê-la em venda. Na Legislação Pátria, o mais comum é que as partes fixem, expressamente, a sua duração, elegendo um termo final, o dies certus, cujo advento extingue o contrato (Gomes, 2007) [10]. Com o prazo estipulado, nenhuma das partes poderá desvincular-se do contrato antes que o mesmo expire, sob pena de pagamento de perdas e danos, geralmente fixado na liberalidade através de cláusula penal. Em se tratando de locação por tempo indeterminado, locator e inquilinus não proclamam, direta ou indiretamente, a sua duração. Não obstante, em se tratando de prazo indeterminado, a locação poderá ser extinta a qualquer momento, por iniciativa de quaisquer das partes. Como salienta Gomes (2007), "se assim não o fora, perpetuar-se-ia". Com vistas a proteger os inquilinos, que ali, estabeleceram as suas casas, a faculdade quanto à resilição unilateral, sofre limitações ao seu exercício, havendo a lei, discriminado, em numerus clausus, as causas que podem justificá-la, em caso de ser o locador que a queira exercer (Gomes, 2007).

Findo o contrato, cabe ao inquilinus, devolver a casa locada. Esta obrigação advém, justamente, da temporariedade do contrato. As coisas móveis serão restituídas no mesmo lugar no qual o inquilinus as recebeu. Devendo, assim, a casa e os móveis que, porventura, já estavam nela, serem devolvidos ao locator, que os retoma.

Cessados os contratos locatio rei, quer por tempo determinado, quer por tempo indeterminado, sendo os prédios devolvidos e retomados, as casas, uma a uma, nos invadem em suave turbação. Elas pulsam em nossa memória, abrem suas janelas, trafegam nossas vísceras, nossos corredores de sangue, misturam-se à nossa voz e ao nosso silêncio e, imorredouramente, habitam em nós.


Notas

  1. "eis: um navio de prata./ Traz no fim da viagem/ o que nunca se espera: - Uma casa" (Deborah Brennand)
  2. "Da mais alta janela da minha casa/ Com um lenço branco digo adeus/ Aos meus versos que partem para a Humanidade" (Fernando Pessoa)
  3. "E depois, fechada a janela, o candeeiro aceso,/.../Sentir a vida correr por mim como um rio por seu leito./ E lá fora um grande silêncio como um deus que dorme" (Fernando Pessoa)
  4. "Atrás de casa ficava a rua da Saudade.../ ...onde se ia fumar escondido/ Do lado de lá era o cais da rua da Aurora.../ ...onde se ia pescar escondido" (Manuel Bandeira)
  5. "Eu não soube entendê-la e não soube trová-la./ Só resta, exígua estampa, o frescor de uma sala" (Drummond)
  6. "Levaram as grades da varanda/ por onde a casa se avistava/ As grades de prata" (Cecília Meirelles)
  7. "Vento de sete cabeças/ rumina cal e cimento,/ devora portas, janelas, loucos se agridem os ventos" (Geraldo Falcão)
  8. "Rua Nascimento e Silva, 107,/ Você ensinando pra a Elizete, as canções de canção, do amor demais/ Lembra que tempo feliz, ai que saudade/ Ipanema era só felicidade/ Era como se o amor doesse em paz" (Vinícius de Moraes)
  9. "Cada tábua estalando em insônia sussurra/ a longa tradição da família casmurra./ E os passos dos antigos, a grita das crianças/ migram do longe-longe em parábolas mansas" (Drummond)
  10. "A casa de meu avô.../Nunca pensei que ela acabasse!/ Tudo lá parecia impregnado de eternidade" (Manuel Bandeira)
Sobre a autora
Andrea Almeida Campos

Professora de Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Doutoranda. Advogada.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAMPOS, Andrea Almeida. Locar para morar.: Caracteres do contrato de locação e a poética da casa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2485, 21 abr. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14717. Acesso em: 22 nov. 2024.

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