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A auditoria-fiscal do trabalho no combate ao trabalho escravo moderno no setor sucroalcooleiro

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Agenda 29/04/2010 às 00:00

6. TRABALHO ESCRAVO.

Na medida em que a doutrina trabalhista avança no sentido de categorizar novas práticas de lesão ao ser humano, há, por conseqüência lógica, a sensibilização do Poder Legislativo, que é levado a dar uma resposta protetiva. Por vezes o legislador opta por sancionar o fato diretamente pelo ordenamento penal, diante de sua gravidade. Neste ponto, o direito penal passa a ter a definição legal da questão laboral, enquanto o próprio ordenamento trabalhista, em seu sentido estrito, não o tem.

É o caso, por exemplo, do assédio sexual tipificado no art. 216-A do CP. Na hipótese, o legislador conceituou o assédio sexual por chantagem, apesar da doutrina e jurisprudência laboral conhecerem, também, o assédio sexual por intimidação (que é realizado não pelo superior, mas pelos próprios colegas). Ou seja, o jurista laboral não está adstrito ao conceito de assédio sexual informado pelo Código Penal. Sendo espécie de discriminação no ambiente de trabalho, havendo lesão à personalidade do trabalhador, haverá dano e, portanto, direito à reparação.

De toda forma, quando o operador do direito trabalhista encontra fato que pode ser enquadrado como assédio sexual por chantagem, utiliza, em aplicação analógica, o dispositivo penal. Neste caso, ao contrário do direito penal, que alcança apenas o sujeito ativo, a responsabilidade civil atinge tanto o autor da conduta assediante, como a empresa que permitiu o vilipêndio ao meio ambiente de trabalho.

Nestes termos, também o tipo penal de redução à condição análoga à de escravo tem relevância para a Auditoria-Fiscal do Trabalho a partir do momento em que serve como conceito análogo da sua caracterização no âmbito administrativo-trabalhista. Tal capitulação causa a rescisão indireta imediata do contrato de trabalho e determina a concessão do seguro-desemprego para os trabalhadores resgatados, nos termos do art. 2º-C da Lei n. 7998/90:

Art. 2o-C O trabalhador que vier a ser identificado como submetido a regime de trabalho forçado ou reduzido a condição análoga à de escravo, em decorrência de ação de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego, será dessa situação resgatado e terá direito à percepção de três parcelas de seguro-desemprego no valor de um salário mínimo cada, conforme o disposto no § 2o deste artigo.(Artigo incluído pela Lei nº 10.608, de 20.12.2002)

§ 1o O trabalhador resgatado nos termos do caput deste artigo será encaminhado, pelo Ministério do Trabalho e Emprego, para qualificação profissional e recolocação no mercado de trabalho, por meio do Sistema Nacional de Emprego - SINE, na forma estabelecida pelo Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador - CODEFAT. (Parágrafo incluído pela Lei nº 10.608, de 20.12.2002)

§ 2o Caberá ao CODEFAT, por proposta do Ministro de Estado do Trabalho e Emprego, estabelecer os procedimentos necessários ao recebimento do benefício previsto no caput deste artigo, observados os respectivos limites de comprometimento dos recursos do FAT, ficando vedado ao mesmo trabalhador o recebimento do benefício, em circunstâncias similares, nos doze meses seguintes à percepção da última parcela.(Parágrafo incluído pela Lei nº 10.608, de 20.12.2002)

Assim, a fiscalização laboral, verificando a situação do trabalhador em condição análoga à de escravo – o que prescinde do exame do sujeito ativo do crime (e do próprio crime), pois o poder de polícia administrativa, neste caso, alcança apenas a empresa – tem o dever legal de determinar a rescisão indireta, para a conseqüente emissão das guias de seguro-desemprego aos resgatados.

Observa-se que não há conceituação do que seja trabalho escravo na Lei 7998/90. A citada lei também não prevê que para haver a liberação do seguro-desemprego deverá ter ocorrido um crime. O que a lei exige é a submissão dos trabalhadores à condição análoga de escravo e o resgate destes pela Inspeção Laboral, ou seja, tem-se uma noção administrativa do trabalho escravo.

6.1.Conceitos de Trabalho Escravo e a Questão da Liberdade.

A OIT - Organização Internacional do Trabalho assim conceitua o trabalho escravo moderno:

Convenção n. 29. Art. 2º. 1. Para fins desta Convenção, a expressão "trabalho forçado ou obrigatório" compreenderá todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente.

Desta forma, a OIT compreende trabalho escravo contemporâneo como sinônimo de trabalho forçado. Ou seja, só há trabalho escravo, na visão da OIT, quando há prestação de serviço involuntária, com clara ofensa à liberdade.

No entanto, o combate ao trabalho escravo no Brasil, referência mundial, conduziu primeiro o jurista laboral, e depois o legislador brasileiro, a uma postura ampliativa do conceito de trabalho escravo, para alcançar situações que não exigem, em todas as suas formas, a restrição da liberdade de locomoção. Tal formulação visa dar maior efetividade ao combate às condições degradantes em que os trabalhadores são encontrados.

Reforça-se que, ainda que não houvesse alteração da Lei, sua interpretação evolutiva já era sentida pela doutrina laboral. De fato, a restrição da caracterização de trabalho escravo à usurpação da liberdade (por vezes dissimulada) atentava contra o seu combate. Por esta razão, o intérprete já buscava a adequação do instituto à realidade nacional, sendo que a própria OIT é sensível ao caso:

"É conveniente recordar que, ainda na redação original, já se entendia que ‘o crime, entretanto, existe, mesmo sem restrição espacial. A sujeição absoluta de um homem a outro realiza-se ainda que àquele seja consentida certa atividade, alguma liberdade de movimento (a supressão total desta não se compreenderia), etc., necessárias, aliás, freqüentemente, para que o ofendido sirva ao seu senhor. Não é preciso também a inflição de maus-tratos ou sofrimentos ao sujeito passivo’.

Raquel Dodge aduz que ‘escravizar é grave, porque não se limita a constranger nem a coagir a pessoa limitando sua liberdade. Também isto. Escravizar é tornar o ser humano uma coisa, é retirar-lhe a humanidade, a condição de igual e a dignidade. Não só a liberdade de locomoção é atingida e, às vezes, a possibilidade de locomoção resta intacta. Guiar-se por esse sinal pode ser enganador. A redução à condição análoga à de escravo atinge a liberdade do ser humano em sua acepção mais essencial e também mais abrangente: a de poder ser. A essência da liberdade é o livre arbítrio, é poder definir seu destino, tomar decisões, fazer escolhas, optar, negar, recusar. Usar todas as suas faculdades. O escravo perde o domínio sobre si, porque há outro que decide por ele. A negativa de salário e a desnutrição calculadas, no contexto de supressão da liberdade de escolha são sinais desta atitude. Assim como a supressão de órgão humano e a submissão de mulheres para fins de tráfico’". (CAZETTA, Ubiratan. Possibilidades Jurídicas de Combate à Escravidão Contemporânea. Brasília: Organização Internacional do Trabalho, 2007. P. 85) (Grifei).

"Não obstante, à medida que a OIT amplia sua pesquisa, análise e suas campanhas de conscientização sobre questões de trabalho forçado nas diferentes partes do mundo, mais fatos básicos tem de enfrentar. Há um extenso espectro de condições e práticas de trabalho, que vão da extrema exploração, inclusive de trabalho forçado numa ponta, a trabalho decente e plena observância das normas do trabalho, na outra. Na parte do espectro em que se pode encontrar condições de trabalho forçado, pode ser muito difícil traçar uma linha divisória entre trabalho forçado, no sentido estrito da expressão, e condições extremamente precárias de trabalho. Mesmo na área legalmente definida como trabalho forçado, há múltiplas maneiras de empregadores poderem privar seus trabalhadores do pleno gozo de seus direitos humanos e trabalhistas, principalmente da percepção de salários mínimos ou de mercado, mediante a aplicação de uma gama de mecanismos de coação ou engano". (Uma Aliança Global Contra o Trabalho Forçado – Relatório Global do Seguimento da Declaração da OIT sobre Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho. Brasília: OIT, 2005).

Em primeiro plano, cabe verificar o art. 2º-C da Lei n. 7998/90. Este dispositivo bem coloca a amplitude do conceito de trabalho escravo no Brasil, ao expor expressamente que o resgate de trabalhadores é cabível quando houver trabalho forçado (leia-se restrição de liberdade) ou condição análoga à de escravo. Não há palavras inúteis na lei. A mens legis, a intenção da lei, é deixar bem claro que o Brasil adota outras hipóteses, além da mencionada pela OIT, para caracterizar o trabalho escravo contemporâneo.

Enquanto norma que determina um procedimento administrativo, a Lei n. 7998/90 tem, assim, claro cunho de direito administrativo e, portanto, encerra tipo administrativo. Este tipo é menos restrito que o tipo administrativo sancionador, já que não multa, e ainda menos restrito que o tipo penal, que impõe pena de restrição de liberdade. Assim, o operador do direito trabalhista busca no Código Penal o tipo da Condição Análoga à de Escravo para aplicar, por analogia, no âmbito trabalhista-administrativo. E assim dispõe o art. 149 do CP:

Redução a condição análoga à de escravo

Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:

Muito embora o crime do art. 149 do CP esteja incluído no capítulo dos crimes contra a liberdade, o fato é que seu texto não exige restrição de liberdade em todos os tipos. Os tipos de jornada exaustiva e condições degradantes de trabalho em nada atentam contra a liberdade de locomoção.

Atentam contra a liberdade em seu sentido lato, conforme examinado por CAZETTA na citação supra. Ou seja, o trabalhador fortemente dependente do empregador, em razão do desemprego estrutural, se vê obrigado a sujeitar-se ao meio ambiente de trabalho degradante. Não tem opção. É trabalhar nos moldes estabelecidos pela empresa ou sucumbir à fome. Não há liberdade de escolha de emprego, quiçá de condições de trabalho.

Em reforço, o tipo do art. 149 do CP, com a alteração de 2003, veio pormenorizar as hipóteses de trabalho escravo moderno. Tipificou o trabalho forçado, que literalmente expressa trabalho prestado por coação. Poderia ter-se limitado a isto, alcançando os conceitos internacionais, entretanto, foi mais longe. Passou a elencar outras formas que não dependem de coação ou restrição de liberdade. Condição degradante de trabalho é tipo próprio, não se conjuga com trabalho forçado (até porque todo trabalho forçado é degradante por natureza); pode ser prestado sem coação moral ou física (apesar de existente, em regra, a coação social-econômica).

VITO PALO NETO [24], muito embora adote concepção restritiva sobre o trabalho escravo, bem coloca a situação dos trabalhadores brasileiros que são escravizados por conseqüência de sua condição social:

"Aristóteles, por exemplo, tentou demonstrar que a antítese senhor-escravos era um dado da natureza, ou seja, da mesma maneira que alguns eram senhores por natureza, outros haviam nascido para ser escravos. Acreditava-se que ‘o escravo natural’ não podia ser feliz com a liberdade, visto que não tinha ‘faculdade deliberativa’".

(...)

"Ao nos depararmos com certas situações de trabalhos forçados ou de trabalho em condições de escravidão encontradas nos dias de hoje, podemos restabelecer a idéia do ‘escravo natural’ como clara demonstração de retrocesso da civilização".

(...)

"A falta de instrução e baixa qualificação desses trabalhadores, além de seu estado de miserabilidade, acabam por condená-los a uma condição de ‘escravo em potencial’, que seria algo semelhante ao ‘escravo natural’, com as devidas proporções".

Em conclusão, o tipo penal aplicado analogicamente deve ser interpretado, conforme a óptica da tipicidade administrativa-trabalhista. No ramo trabalhista, a doutrina e jurisprudência majoritária seguem pela caracterização do trabalho escravo, ainda que não haja restrição da liberdade de locomoção:

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"Destarte, com o advento da Lei n. 10.803/03, tornou-se possível punir não somente a submissão do trabalhador a maus tratos, labor forçado, sem remuneração e/ou com a restrição da liberdade de locomoção (seja por dívidas, retenção de documentos, não fornecimento de transporte ou ameaças), mas também a submissão da vítima a condições degradantes de trabalho.

Frequentemente a fiscalização encontra trabalhadores alojados em condições desumanas, sem acesso ao mínimo, como água potável, alimentação adequada e medicamento, e constatada essa realidade, como já analisamos em tópico acima, estaremos diante, claramente, da conduta tipificada no art. 149 do Diploma Penal, independentemente do uso de força bruta ou ameaças". (MELO, Luís Antônio Camargo de. Possibilidades Jurídicas de Combate à Escravidão Contemporânea. Brasília: Organização Internacional do Trabalho, 2007. P. 85)

"É que ainda se espera, no caso desse ilícito penal, a materialização da ‘escravidão’ a partir de uma imagem clássica, com a pessoa acorrentada e sob constante ameaça de maus-tratos e outras formas de violência. Reforçando a idéia, o que se espera é a violação a um princípio básico, que é a liberdade.

Isso, além da negação do próprio dispositivo legal indicado (artigo 149, do CPB), que é claro a respeito, representa visão conceitual restritiva e que não mais deve prevalecer.

Na verdade, o trabalho em condições análogas à de escravo é reconhecido, hoje em dia, a partir do momento em que há o desrespeito ao atributo maior do ser humano que é a sua dignidade, e que ocorre, do ponto de vista do trabalho humano, quando é negado ao trabalhador um conjunto mínimo de direitos que a Organização Internacional do Trabalho convencionou denominar trabalho decente, e que são os Direitos Humanos específicos dos trabalhadores". (BRITO FILHO, José Claudio Monteiro de. Trabalho com redução à condição análoga à de escravo: análise a partir do trabalho decente e de seu fundamento, a dignidade da pessoa humana. Artigo publicado no livro: Trabalho Escravo Contemporâneo. São Paulo: LTr, 2006)

"Ora, a efetivação desses direitos não pode se perder em discussão meramente acadêmica ou retórica; deve levar em conta as enormes dificuldades para o alcance da proteção desse conjunto de garantias mínimas, que conferem dignidade à pessoa. Por certo esse sistema guarda relação com o estágio de desenvolvimento de determinada sociedade, razão pela qual, para muitos - especialmente nos países periféricos -, os direitos sociais, que exigem uma atuação positiva do Estado, não passam de mera declaração. Avulta, nesse processo, a importância da justiça como instrumento de cidadania, de liberdade e de realização efetiva de direitos. É dentro desse contexto que está inserida a questão subjacente à posta em lide. Indiscutível a necessidade de fiscalização e de repressão, por parte do Estado - sem excluir as instituições, e especialmente a sociedade civil -, de toda a forma de indevida exploração do homem pelo omem, seja em trabalho degradante, seja em condições humilhantes ou análogas à de escravo. A repulsa há de ser veemente e deve partir da sociedade, sem desprezar o dever indeclinável do poder público de viabilizar medidas eficazes para coibir essa prática nefasta. Feitas essas considerações e voltando ao caso concreto, registro que o procedimento que culminou na inclusão do nome do autor no cadastro criado pela Portaria nº 540/2004, do MTE, não fratura, por si só, as garantias do art. 5º, incisos II e LV, da CF, como a seguir explicitado. Sob o ângulo do primeiro preceito, noto que desde o final do século XIX há, no país, norma a inibir o trabalho escravo - a denominada Lei Áurea. A circunstância da abolição deste regime de labor foi, ao longo da nossa história republicana, reafirmada com maior ênfase; logo, não diviso a necessidade de nova lei, no sentido formal, para que o estado brasileiro adote medidas necessárias para coibir a hedionda prática, ainda que ela venha experimentando refinamentos capazes de obscurecer a sua existência". (Processo n. 00856-2006-006-10-00-2 RO. Juiz Relator JOÃO AMÍLCAR. TRT 10ª Região. Acórdão da 2ª Turma. Publicado em: 16/11/2007) (Grifei).

"Essa situação degradante de trabalho é modernamente concebida como ‘trabalho em condições análogas à de escravo’, em violação à organização do trabalho, e configura-se infração penal descrita nos tipos legais dos arts. 149, 131, parágrafo único, 203 e 207 do Código Penal. Para a sua caracterização não é necessário o cerceio da liberdade de locomoção do trabalhador, mediante o aprisionamento deste no local de trabalho. Basta a configuração da falta de condução, da dependência econômica, da carência de alimentação e de instalações hidro-sanitárias adequadas, do aliciamento de mão-de-obra, dentre outros". (Processo n. 00245-2004-811-10-00-3 RO. Juíza Relator HELOISA PINTO MARQUES. TRT 10ª Região. Acórdão da 2ª Turma. Publicado em: 18/03/2005).

6.2.Efeito da Conceituação no Combate ao Trabalho Escravo no Brasil.

A conceituação, verificada no item anterior, tem especial importância para a Inspeção Laboral. Isto porque, no âmbito da Justiça do Trabalho, com exceção da análise do CADASTRO DE EMPREGADORES, da Portaria n. 540/2004 e dos autos de infração lavrados em decorrência do trabalho análogo ao de escravo, os demais pleitos levados a Justiça Laboral não dependem da caracterização do trabalho escravo.

De fato – assim como no assédio sexual supra retratado –, havendo lesão à personalidade dos trabalhadores, mesmo que não seja caracterizada a condição análoga à de escravo, o Juiz do Trabalho deferirá os pedidos de dano moral coletivo e obrigação de fazer e não fazer, que venham a ser feitos pelo Ministério Público do Trabalho, desde que sejam provadas as lesões.

Desta forma, o embate principal sobre o tema acontece com o enfrentamento jurídico entre empresários e Ministério do Trabalho e Emprego, seja através da Auditoria-Fiscal do Trabalho, no âmbito administrativo, ou da Advocacia da União, no âmbito judiciário. Tal conflito é ainda maior quando a operação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel – GEFM alcança usinas pertencentes a grandes grupos econômicos.

Ao se alcançar grande número de trabalhadores e, por conseqüência, elevada soma das verbas rescisórias e indenizatórias devidas aos laboristas sujeitos à condição de escravos, é natural que haja maior comoção por parte do empresariado.

Entretanto, o Brasil possui, certamente, o conceito de trabalho escravo mais moderno do mundo. Por esta razão, não deve ser confundido como o país que mais escraviza (muito menos tal argumento ser utilizado na política internacional contra a produção de álcool), mas sim, identificado como um dos países que menos tolera o trabalho degradante no campo.

6.3.Espécies de Trabalho Escravo.

O art. 149 do Código Penal apresenta um tipo alternativo, em que o delito se perfaz por meio de qualquer um dos diversos verbos, quais sejam:

1.submetendo-o a trabalhos forçados;

2.submetendo-o a jornada exaustiva;

3.sujeitando-o a condições degradantes de trabalho;

4.restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.

6.3.1.Trabalhos Forçados e Restrição, por qualquer meio, da Locomoção do Trabalhador em razão de Dívida Contraída com o Empregador ou Preposto.

Trabalhos forçados são aqueles que o trabalhador não pode recusar, em razão de coação física ou moral. Conforme lição de JOSÉ CLÁUDIO MONTEIRO DE BRITO FILHO [25], esta restrição à liberdade pode caracterizar-se desde o início ou após a contratação, na execução do labor. Ou seja, o "trabalho inicialmente consentido, mas que depois se revela forçado".

Há registro de trabalhadores comprados em hotéis pelo valor de sua dívida, principalmente para labor no roço, para preparação do pasto. No entanto, no setor sucroalcooleiro a forma de trabalho forçado mais comum é por coação moral, decorrente do endividamento, o chamado truck system ou sistema de barracão [26].

A CLT e o próprio Código Penal, mesmo antes da nova redação do art. 149 do CP, já condenavam o sistema de barracão:

CLT. Art. 462 - Ao empregador é vedado efetuar qualquer desconto nos salários do empregado, salvo quando este resultar de adiantamentos, de dispositvos de lei ou de contrato coletivo. § 2º - É vedado à emprêsa que mantiver armazém para venda de mercadorias aos empregados ou serviços estimados a proporcionar-lhes prestações " in natura" exercer qualquer coação ou induzimento no sentido de que os empregados se utilizem do armazém ou dos serviços.

Código Penal. Art. 203 - Frustrar, mediante fraude ou violência, direito assegurado pela legislação do trabalho:

Pena - detenção de um ano a dois anos, e multa, além da pena correspondente à violência.

§ 1º Na mesma pena incorre quem:

I - obriga ou coage alguém a usar mercadorias de determinado estabelecimento, para impossibilitar o desligamento do serviço em virtude de dívida;

Assim, restrição de locomoção, em razão de dívida contraída, configura o conhecido sistema Truck System. Neste modelo, o empregador utiliza de armazém exclusivo para, com a venda a prazo de produtos por valores acima do normal (ou mesmo com valores normais, mas com a contraprestação salarial diminuta), endividar o trabalhador, que fica preso no trabalho por sentir-se moralmente em débito; ou por não ter dinheiro para sair do local; ou por haver vigilância armada para que o mesmo não se evada enquanto não quitar a dívida.

O GEFM tem encontrado, inclusive, casos em que há "cantina" dentro da própria usina, ao lado dos alojamentos, com fornecimento de bebida alcoólica e cadernos de anotação das dívidas, mas sem precisar o valor do produto.

Tal forma de restrição de locomoção tem sofrido alterações com o intuito de dissimular-se situação diversa. O modelo tradicional de armazém no interior da própria fazenda tem evoluído para um sistema de endividamento na cidade, através de mercado único, indicado para o trabalhador para operacionalizar a venda a prazo (o "fiado"), conforme vem acompanhando a inspeção laboral [27].

Nesta mutação, verificamos que o empregador ou seu preposto, vincula o trabalhador migrante a determinada mercearia em razão de somente naquela afiançar seu crédito. Com o passar do tempo e atraso de salário, ou renda extremamente baixa, o trabalhador não consegue quitar sua dívida, vivendo em condição miserável sem poder se desvencilhar da relação laboral.

O endividamento também pode ocorrer na fase pré-contratual com as despesas feitas pelo trabalhador no processo de migração, ou mesmo enquanto aguardava a oportunidade de trabalho na cidade.

6.3.2.Condições Degradantes.

"Ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante" (art. 5º, III, CF/88).

Notória a quantidade de pessoas que habitam os núcleos urbanos em condições claramente degradantes. A má distribuição de renda e o desemprego estrutural levam famílias inteiras a morar em condições insalubres, em moradias improvisadas, sem água potável ou sistema de esgoto e com alimentação precária. Ou seja, homens, mulheres e crianças que não tem respeitada sua dignidade.

"É inegável que a falta de emprego e a conseqüente necessidade gerada na busca do sustento próprio e de sua família, muitas vezes, levam o homem a abdicar de seus direitos, tornando-se presa fácil da exploração. Tal fato faz com que certos empregadores, verdadeiros agentes ativos do ilícito em debate, tenham em mãos um ‘açoite’ tão efetivo quanto os utilizados nas modalidades de coerção física e moral. Em alguns casos não é o empregador quem impede o rompimento da relação de trabalho, mas a penosa situação de necessidade em que encontra o próprio trabalhador" [28].

Entretanto, o trabalho não é e não pode ser mantenedor desta condição. O emprego é promovedor da melhoria de vida do laborista. O próprio Direito do Trabalho tem como fundamento a promoção de melhores condições de vida e de trabalho do operário. A Constituição Federal, inclusive, assegura o PRINCÍPIO DO NÃO RETROCESSO SOCIAL em diversos dispositivos:

-art. 7º, caput, "além de outros que visem à melhoria de sua condição social";

-art. 7º, XXII, "redução dos riscos inerentes ao trabalho";

-art. 114, §2º, "podendo a Justiça do Trabalho decidir o conflito, respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente".

O empregador fere a função social de sua propriedade (art. 5º, XXIII, e 170, caput e inciso III, da CF) ao desrespeitar o fundamento da ordem econômica: a valorização do trabalho. Tem o tomador dos serviços o dever constitucional de elevar a condição de vida do trabalhador, pagando salário justo e respeitando sua dignidade.

O empregador não pode utilizar, para obter lucro, um problema social enfrentado pelo nosso país, tal como a má distribuição de renda. Quando o tomador dos serviços sujeita, em sua atividade empresarial, trabalhadores a condições degradantes, ou seja, não respeita os direitos humanos mínimos do trabalhador, submete o laborista ao trabalho escravo e deve por isto ser apenado.

6.3.2.1.Conceito de Condição Degradante.

Degradante é a condição de labor que atenta contra a dignidade do trabalhador a ponto de coisificá-lo. Este conceito induz a duas indagações: o que confere dignidade ao trabalhador? E o que seria o ser humano coisificado?

A concepção do que confere dignidade ao trabalhador leva ao exame dos direitos humanos relativos ao trabalho. O desrespeito ao chamado "PATAMAR CIVILIZATÓRIO MÍNIMO" [29], ou seja, o conjunto de direitos operários de indisponibilidade absoluta (previstos na Constituição, convenções internacionais e normas relativas à Segurança e Saúde do Trabalho na legislação infraconstitucional) viola a dignidade do laborista.

Assim, há um núcleo rígido dos direitos trabalhistas que, se desrespeitados, passam da simples violação de regra para grave atentado à dignidade do trabalhador. São condições de trabalho básicas que não permitem, sequer, a transação em negociação coletiva.

Estas condições são classificadas no art. 7º da Constituição. Este artigo levou uma série de direitos humanos do trabalhador ao patamar de direitos fundamentais desta República. Parte deles admitiu a negociação coletiva e a outra, proibiu qualquer contemporização em relação aos demais, quais sejam:

1.garantia de salário mínimo e proteção do salário contra retenção ilícita;

2. duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais (salvo, apenas, compensação);

3.repouso semanal remunerado;

4.redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança;

5.não discriminação (trabalho manual, sexo, idade, cor ou estado civil).

Assim, as garantias relativas a salário, jornada, descanso, não-discriminação e segurança e saúde do trabalho formam a matriz da dignidade do obreiro. Havendo o desrespeito a estas normas basilares há afronta à dignidade.

No entanto, para que se configure o trabalho degradante não basta a falta de pagamento de salário mínimo. Muito embora afronte a dignidade do trabalhador não receber sua contraprestação, repita-se, mínima, o trabalho degradante é aquele que, ao ferir a dignidade de forma grave, coisifica o trabalhador.

Coisificar o ser humano é negar-lhe a condição de homem. É torná-lo simples objeto. Mero insumo na produção. Este conceito escapa ao direito, pois depende de uma verificação no mundo dos fatos. Ou seja, um ser humano pode concluir pela coisificação de outro diante do CONJUNTO de atentados ao patamar civilizatório mínimo. Conforme a gravidade das violações, conclui-se pela coisificação e pela degradância, por conseqüência lógica.

Ocorre a coisificação quando se verifica, por exemplo:

1.a inexistência de salário: seja pela fraude do sistema do barracão ou outros endividamentos; seja por descontos indevidos ou pelo simples não pagamento;

2. ausência de condições mínimas de segurança e saúde do trabalho: ausência de água potável; alojamentos superlotados ou sem condições mínimas de habitabilidade; fornecimento de alimentos estragados e/ou insuficientes; inexistência de EPI ou fornecimento de EPI que, além de não proteger, machuca o trabalhador, em atividade de alto risco de acidentes (como o corte de cana); ausência de instalação sanitária na frente de trabalho (o que não é suprido por uma "tenda sanitária" sem condições de uso);

3.desrespeito ao limite de jornada e ao descanso semanal, deixando o trabalhador sem período suficiente de descanso e sem possibilidade de lazer;

4.tratamento discriminatório sistemático: assédio moral; diferença grave de tratamento entre o setor administrativo, técnico e de trabalho manual.

Quando se observa, nas inspeções laborais, estas violações, após o levantamento do conjunto das mesmas, o homem médio conclui que o ser humano, naquela empresa, não tem valor maior que uma máquina ou do que a matéria-prima. É um objeto descartável. O homem médio sentencia que há trabalho em condições degradantes.

6.3.3.Jornada Exaustiva.

Tal como escreve Ubiratan Cazetta, citando José Cláudio Monteiro de Brito Filho, o conceito de jornada exaustiva é o seguinte:

"A jornada exaustiva é a que submete o trabalhador a um esforço desarrazoado, excessivo, sujeitando-o ao limite de sua capacidade e que implica em negar-lhe suas condições mais básicas, ‘como o direito de trabalhar em jornada razoável e que proteja sua saúde, garanta-lhe descanso e permita o convívio social’" [30].

Assim, a jornada exaustiva é aquela que impõe ao trabalhador labor incompatível com sua capacidade, levando-o a atentar contra sua saúde e atingindo o direito à desconexão do trabalho, ou seja, o direito ao descanso, convívio social e lazer. E ainda, conforme lição de Márcio Túlio Viana, a jornada exaustiva pode ser caracterizada como a jornada extensa ou INTENSA [31]. Logo, é jornada exaustiva, tanto a jornada que ultrapassa determinada carga horária [32], como também a que, pela intensidade das atividades e pelo ritmo, leva o trabalhador à extenuação.

Um trabalhador submetido regularmente a uma jornada superior a 10 horas e sem descanso semanal, por exemplo, está submetido a uma jornada exaustiva. No entanto, um trabalhador com jornada normal e descanso semanal regular também pode estar submetido à jornada exaustiva, em face do ritmo do trabalho. Ambas as hipóteses têm sido encontradas no setor sucroalcooleiro.

Na primeira situação, são encontrados trabalhadores laborando sem descanso semanal (ou com escala de folga 6X1, sem respeito à coincidência com o domingo) e em jornadas que vão das 5h às 17h, sem intervalo [33]. Em geral, nas situações de jornadas exaustivas encontradas, o trabalhador inicia seu dia acordando às 04h da manhã para preparar a alimentação, espera o transporte à frente de trabalho a partir das 05h, retorna às 19h, para dormir às 21h, após tomar banho, lavar sua roupa, afiar o podão e jantar (quando há comida). Tal ritmo de trabalho retira qualquer condição de descanso adequado ou lazer, transformando o trabalhador em mero meio mecânico de produção.

Mesmo a jornada 5x1 colabora para exaurir o trabalhador:

"Implantação do regime de trabalho 5x1

: muitas usinas têm tentado implantar o regime 5x1 no corte de cana, em substituição ao regime de trabalho atual. No regime 5x1, trabalha-se 5 dias e folga-se 1: conseqüentemente, as folgas só caem no domingo a cada sete semanas. Este regime não encontra nenhuma justificativa técnica e é prejudicial aos trabalhadores porque aumenta a sua jornada de trabalho e prejudica a sua vida familiar e social, uma vez que eles têm que trabalhar em quase todos os domingos. Os sindicatos de trabalhadores têm se manifestado contra a implantação deste regime. Em decisão recente (29/setembro 2004), os juízes da Terceira Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 9° Região (Paraná) confirmaram a sentença que o sistema 5x1 era prejudicial aos trabalhadores rurais e que não poderia ser implantado em uma usina da região". (Fonte: Dissolvendo a Neblina: O Encontro dos Trabalhadores Canavieiros da Região Sudeste: Saúde, Direito, Trabalho. São Carlos, 26 a 28 de Outubro de 2004 FUNDACENTRO)

Na segunda situação, há a questão do ganho por produtividade. A par da desinformação do trabalhador, em relação ao controle de sua produção, o Grupo Especial de Fiscalização Móvel tem detectado a existência de incentivos de produtividade que corroboram para uma rotina laboral que ultrapassa a capacidade física do trabalhador.

Técnicas como premiações e anúncios sucessivos de aumento da gratificação por cana cortada no decorrer do dia são exemplos dos incentivos. Freqüentemente o GEFM encontra registros de acidentes de trabalho e relatos de trabalhadores que passam mal em meio ao canavial por causa da intensidade do labor.

Em relação à capacidade de corte de um trabalhador a EMBRAPA informa o seguinte:

"A capacidade de corte de um trabalhador que atua nessa atividade varia de cinco toneladas por dia, em casos em que a cana é previamente queimada, a 2,5 toneladas por dia, no caso da cana-crua". (ROSSETTO, Raffaella. Agência de Informação Embrapa – Cana-de-açúcar. Sítio visitado em 18/11/08: http://www.agencia.cnptia.embrapa.br/gestor/cana-de-acucar/arvore/CONTAG01_98_22122006154841.html).

Assim, a EMBRAPA dá a média de produtividade de um cortador de cana no patamar de 05 toneladas de cana queimada por dia. Entretanto, o GEFM tem encontrado relatos de trabalhadores que não podem cortar menos de 12 toneladas de cana por dia, sob pena de demissão.

O Professor Francisco Alves, no artigo "Por que morrem os cortadores de cana?", publicado na revista Saúde e Sociedade (v. 15 , n. 3, p. 90-98, set-dez de 2006), conclui que há mortes de trabalhadores empregados no corte de cana que devem ser atribuídas à exigência produtiva, ou seja, à jornada exaustiva decorrente da intensidade das atividade. Relata, em seu estudo, que a exigência de produtividade por toneladas foi de 03t na década de 60, 06t na década de 80 a 12t na década de 90.

"Um trabalhador que corte 6 toneladas de cana, num talhão de 200 metros de comprimento, por 8,5 metros de largura, caminha, durante o dia uma distância de aproximadamente 4.400 metros, despende aproximadamente 50 golpes com o podão para cortar um feixe de cana, o que equivale a 183.150 golpes no dia (considerando uma cana em pé, não caída e não enrolada e que tenha uma densidade de 5 a 10 canas a cada 30cm.). Além de andar e golpear a cana, o trabalhador tem que, a cada 30cm, se abaixar e se torcer para abraçar e golpear a cana bem rente ao solo e levantar-se para golpeá-la em cima. Além disto, ele ainda amontoa vários feixes de cana cortados em uma linha e os transporta até a linha central. Isto significa que ele não apenas anda 4.400 metros por dia, mas transporta, em seus braços, 6 toneladas de cana, com um peso equivalente a 15 Kg, a uma distância que varia de 1,5 a 3 metros. Além de todo este dispêndio de energia andando, golpeando, contorcendo-se, flexionando-se e carregando peso, o trabalhador sob o sol utiliza uma vestimenta composta de botina com biqueira de aço, perneiras de couro até o joelho, calças de brim, camisa de manga comprida com mangote, também de brim, luvas de raspa de couro, lenço no rosto e pescoço e chapéu, ou boné. Este dispêndio de energia sob o sol, com esta vestimenta, leva a que os trabalhadores suem abundantemente e percam muita água e junto com o suor perdem sais minerais e a perda de água e sais minerais leva a desidratação e a freqüente ocorrência de câimbras. As câimbras começam, em geral, pelas mãos e pés, avançam pelas pernas e chegam no tórax, o que provoca fortes dores e convulsões, que fazem pensar que o trabalhador esteja tendo um ataque nervoso". (Professor Francisco Alves. Artigo "Por que morrem os cortadores de cana?" publicado na revista Saúde e Sociedade. V. 15 , n. 3, p. 90-98, set-dez de 2006).

Apesar dos malefícios do pagamento por produção, conforme o documento "Reuniões entre FUNDACENTRO e Representações Sindicais dos Trabalhadores no Setor Sucroalcooleiro em 2006", da FUNDACENTRO, há resistência dos próprios trabalhadores em relação ao fim do salário por produção:

"2- Sobre a proposta de promotores do Ministério Público do Trabalho, de abolir o salário por produção dos cortadores de cana, imputado como causa de seu esgotamento e morte: Representantes da CONTAG, da CONTAC e da FERAESP se manifestaram contra a maneira pela qual membros do MP têm se posicionado sobre o fim do pagamento por produção para os cortadores de cana, em reuniões de trabalhadores e em audiências públicas, no estado de São Paulo e em Goiás. Consideram que o esgotamento é provocado por um conjunto de fatores que estimulam a produção e não unicamente pela forma de pagamento e que a discussão precisa ser ampliada e os sindicatos ouvidos pelo MP. Entre estes fatores citaram:

(...)

B) O aumento das metas de produção: a média de produção exigida pelas empresas está sempre aumentando. Em Goiás, por exemplo, em 1992 a média era de 6,5 toneladas/cortador/dia e hoje é de 10 toneladas/cortador/dia. As usinas empregam mais trabalhadores do que necessitam no início da safra e, após fazer um rigoroso controle de produção de cada um, dispensam os menos produtivos".

De toda forma, a exigência de alta produtividade, seja sob ameaça de punição, seja por incentivo de maiores ganhos, tem coadjuvado para a caracterização da jornada exaustiva. A empresa que se utiliza desta técnica administrativa tem o dever legal de cuidar para que os trabalhadores não se esforcem além das suas capacidades. Se não for possível tal controle, não deve lançar mão da referida técnica, sob pena de configuração de condição análoga à de escravo.

CONTROLE DA PRODUTIVIDADE

"Os motivos que levam as usinas a adotarem o pagamento por produção, que é uma das formas de trabalho, já denunciada por Adam Smith no final do século XVIII e por Karl Marx no século XIX, como uma das mais desumanas e perversas, pois o trabalhador tem o seu ganho atrelado a força de trabalho despendida por ele por dia. É verdade que tanto Adam Smith quanto Karl Marx denunciavam este trabalho, chamando-o de perverso e desumano, analisando apenas esta forma de trabalho em situações em que o trabalhador controlava o seu processo de trabalho e tinham, ao final do dia, pleno conhecimento do valor que tinham ganho, isto porque conheciam o valor do trabalho executado. No corte de cana é diferente, porque os trabalhadores só sabem quantos metros de cana cortaram num dia, mas não sabem, a priori, do valor do metro de cana para aquele eito cortado por ele, este desconhecimento é devido a que o valor do metro de cana do eito depende do peso da cana, que varia em função da qualidade da cana naquele espaço e a qualidade da cana naquele espaço depende, por sua vez de uma série de variáveis (variedade da cana, fertilidade do solo, sombreamento etc.). Nestas condições, as usinas pesam a cana cortada pelos trabalhadores e atribuem o valor do metro, através da relação entre peso da cana, valor da cana e metros que foram cortados. Tudo isto é feito nas usinas, onde estão localizadas as balanças, sem controle do trabalhador. Portanto, entre aquelas situações de trabalho analisadas pelos dois pensadores nos séculos XVIII e XIX e as praticadas na cana nos séculos XX e XXI há uma enorme distância, que é o não controle do salário e do processo de trabalho pelos trabalhadores, este é controlado pelas usinas" (Professor Francisco Alves. Artigo "Por que morrem os cortadores de cana?" publicado na revista Saúde e Sociedade. V. 15 , n. 3, p. 90-98, set-dez de 2006).

Ao analisar a exigência de produtividade, torna-se necessário apresentar o segundo maior problema do atual sistema: a ausência de controle da produtividade pelo trabalhador. Conforme leciona o Professor Francisco Alves, e conforme tem sido verificado nas inspeções do GEFM e, também, pela FUNDACENTRO, o trabalhador não tem controle efetivo de sua produtividade. Não há segurança nas medições feitas pelos fiscais das usinas e a pesagem da cana não é acompanhada pelos trabalhadores ou um representante dos mesmos.

"Na apuração da produção do corte de cana, cada trabalhador contratado diretamente pela Usina ...omissis... tem acesso ao apontamento da sua produção diária ao final do dia, por meio de anotação conhecida por "pirulito", onde a base do peso da cana é feita por amostragem, permitindo ao empregado um acesso mais rápido ao resultado da sua produção (...) Por outro lado, para os trabalhadores contratados por intermédio dos fornecedores, a produção diária é anotada em folhas que ficam com o fiscal de turma. Desta forma, o trabalhador não consegue ter acesso rápido à sua produção diária, na medida em que não recebe qualquer anotação para seu controle pessoal. Ressalte-se que, conforme informação prestada à fiscalização, a relação "peso por metro de cana cortada", muitas vezes, só é repassada para os trabalhadores ao final do mês, ou nem é repassada" (Operação do GEFM n. 67/2007).

"Junto aos trabalhadores os fiscais da empresa faziam a medição da produção (fotos 07, 08 e 09). Para tanto, utilizavam uma espécie de ‘compasso’. O instrumento não apresenta rigor técnico para a medição. As medições eram lançadas em caderno. A auditoria encontrou rasuras nos mesmos. (...) Não é fornecido cópia das anotações aos empregados" (Operação do GEFM n. 31/2005).

Uma outra dimensão do problema se refere ao controle dos trabalhadores sobre a sua produção diária, sobre o cálculo do preço da cana cortada. Este controle não existe. A transformação de tonelada de cana em metro, que deveria ser fiscalizada pelos trabalhadores, não ocorre em muitas usinas, nem ao menos a colheita realizada pelo "campeão" e as três áreas de amostragem que deveriam ser escolhidas com participação dos trabalhadores. Quem decide o preço do metro de cana é o departamento agrícola da usina. Tem se constatado diferenças de mais de 30% entre o preço do metro aferido com rigor e o preço estipulado pelas usinas. É comum os trabalhadores serem informados do preço da cana depois do trabalho realizado. Estes procedimentos geram perdas irrecuperáveis para os trabalhadores, suspeitas de fraudes, indignações e algumas vezes "paradeiros" (Fonte: Dissolvendo a Neblina: O Encontro dos Trabalhadores Canavieiros da Região Sudeste: Saúde, Direito, Trabalho. São Carlos, 26 a 28 de Outubro de 2004. FUNDACENTRO).

O Princípio da Boa-fé Objetiva, encampado pelo Direito do Trabalho, traduz o dever de lealdade e informação entre os contratantes. Havendo obscuridade no aferimento da produção, o dever de informação é infringido, o que resulta, conforme art. 8º e 9º da CLT c/c art. 122, 123, III e 187, in fine, do CC, em nulidade.

Art. 122. São lícitas, em geral, todas as condições não contrárias à lei, à ordem pública ou aos bons costumes; entre as condições defesas se incluem as que privarem de todo efeito o negócio jurídico, ou o sujeitarem ao puro arbítrio de uma das partes.

Art. 123. Invalidam os negócios jurídicos que lhes são subordinados: III - as condições incompreensíveis ou contraditórias.

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Nos termos da doutrina de DALLEGRAVE [34], a boa-fé subjetiva é verificada na intenção daquele que age "acreditando não estar prejudicando ninguém". Doutra banda, a boa-fé objetiva é regra de conduta que obriga a parte a agir "pensando no outro" e "respeitando seus interesses legítimos, suas expectativas razoáveis". Enfim, a boa-fé objetiva verifica-se no cumprimento do dever de lealdade para com a outra parte contratual, coibindo o abuso de direito, o "puro arbítrio" e as condições incompreensíveis.

Verificada a desinformação do trabalhador em relação à sua produtividade (seja pela ausência de comunicação; seja por ser incompreensível o método de apuração; seja por não poder acompanhar ou ser representado na pesagem da cana) e o puro arbítrio nos fatores que levam ao cálculo da produtividade (como a técnica de estimativa baseada na experiência do fiscal da usina), há ilicitude do procedimento.

Reforça-se que há casos em que é assegurado FORMALMENTE ao trabalhador acompanhar a pesagem da cana. Entretanto, materialmente isto não ocorre. O trabalhador que ganha por produção não pára sua atividade para verificar a pesagem. É dever da empresa assegurar que, pelo menos, um representante dos trabalhadores (se for empregado deverá ter o salário garantido conforme a média de sua produtividade) acompanhe a pesagem.

"Uma experiência do Sindicato dos Empregados Rurais Assalariados de Cosmópolis, no Estado de São Paulo foi apresentada como opção concreta para monitorar o controle da produção no corte manual da cana, já que nessa experiência a pesagem da cana cortada é feita pelo Sindicato junto às balanças das usinas, no momento da chegada do caminhão, permitindo o monitoramento das áreas da colheita ao longo da safra" (ENCONTRO DOS TRABALHADORES CANAVIEIROS DA REGIÃO NORDESTE - Organização do Trabalho e Controle da Produção, Acidentes e Doenças, Migração e Transporte, Terra e moradia. Data: 22 e 23 de novembro de 2005. FUNDACENTRO).

Concluindo o tema, é importante informar outras irregularidades no sistema de pagamento por produção: paralisação do corte por problemas na usina; técnica de aliciamento que promete "cana boa para o corte".

Os art. 2º, caput, e 468 da CLT sustentam o Princípio da ALTERIDADE, que tem por corolário o caráter forfetário do salário – o salário é "obrigação absoluta do empregador, independentemente da sorte de seu empreendimento" [35]. A alteridade informa que o risco do negócio não pode ser repassado ao trabalhador, principalmente através de redução da remuneração, em decorrência de fatores estranhos ao labor do trabalhador.

A redução salarial indireta, conforme esclarece Godinho (2005, p. 1034), "ocorre em derivação de mudança em cláusula contratual distinta da regulatória do salário, mas que repercute no nível remuneratório". Ou seja, é aquela que, alterando ponto diverso do salário em si, acaba por repercutir neste. Exemplo dado é a diminuição do trabalho em contrato com salário por unidade de obra, que, por afrontar o princípio da inalterabilidade contratual lesiva, é proibida.

Assim, havendo redução/paralisação do corte da cana por conta de problemas na usina ou por outro motivo inerente ao risco do negócio, isto não pode significar ausência de pagamento ou pagamento de diária em valor inferior à média do corte, sob pena de, num só proceder, se repassar ao trabalhador o risco do negócio e realizar alteração contratual lesiva (esta última, caso perdure a situação).

Da mesma forma, tal como tem sido encontrado pela inspeção, a punição de trabalhador com o corte de cana que permite pouca produtividade não encontra respaldo na CLT que não prevê tal forma de punição, caracterizando, assim, assédio moral. E ainda, falsas promessas de "cana boa para o corte", ou seja, que permite alta produtividade, feitas por arregimentadores de mão-de-obra migrante, implicam em aliciamento.

Sobre o autor
José Luciano Leonel de Carvalho

Auditor-Fiscal do Trabalho, Bacharel em Direito, pós-graduado em Direito Material e Processual do Trabalho

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, José Luciano Leonel. A auditoria-fiscal do trabalho no combate ao trabalho escravo moderno no setor sucroalcooleiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2493, 29 abr. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14741. Acesso em: 5 nov. 2024.

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