Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

O artigo 270, parágrafo único, alínea b, do Código de Processo Penal Militar, perante a Constituição Federal de 1988

Exibindo página 1 de 3

O Código de Processo Penal Militar veda a liberdade provisória para determinados tipos de delitos militares, principalmente aqueles que violam a hierarquia e disciplina. militares, determinando de forma implícita a prisão preventiva obrigatória.

Resumo:

Este trabalho apresenta um breve estudo sobre o instituto da Liberdade Provisória perante o Código de Processo Penal Militar, no qual é encontrada a vedação à sua aplicabilidade a determinados tipos de delitos militares, principalmente aqueles que violam a hierarquia e disciplina militares, determinando de forma implícita a prisão preventiva obrigatória. Pretende-se, desta forma, demonstrar que o referido artigo não encontrou guarida no novo ordenamento jurídico brasileiro, não sendo recepcionado pela Constituição Federal de 1988 por ferir os direitos e garantias fundamentais da liberdade, presunção de não-culpabilidade e dignidade da pessoa humana.

Palavras-chave: liberdade provisória; vedação; Código de Processo Penal Militar; recepção.


1 INTRODUÇÃO

Com o presente trabalho visa-se estudar a não-aplicabilidade do art. 270, parágrafo único, alínea "b" do Código de Processo Penal Militar frente às garantias fundamentais tuteladas pela Constituição da República Federativa do Brasil. O tema proposto mostrou-se interessante ao autor, uma vez que este teve a oportunidade de estagiar na Promotoria de Justiça Militar do Estado de Mato Grosso do Sul, deparando-se com diversos casos práticos em que foram negados os pedidos de liberdade provisória em razão da regra do art. 270 do Código de Processo Penal Militar.

A relevância jurídica é demonstrada nos diversos casos práticos em que Militares - sejam aqueles ligados às Forças Armadas ou aos Estados - são impedidos de responder pelos seus processos-crime em liberdade, em razão do veto à concessão de liberdade provisória para um rol de determinados crimes propriamente militares, que, em sua maioria, afrontam os princípios da hierarquia e disciplina militares.

Desta forma, questiona-se se a vedação adotada pelo Código de Processo Penal Militar foi recepcionada pela Carta Magna, haja vista que ela resguarda à dignidade da pessoa humana, à liberdade e à presunção de não-culpabilidade, dentre outros princípios que são claramente violados pela regra militar, posto que de sua leitura é possível extrair a regra implícita que determina a "prisão preventiva obrigatória", sem que seja feita a análise do fumus delicti e do periculum libertatis (ou seja, da necessidade).

Este trabalho destina-se a estudar, inicialmente, o instituto da liberdade provisória perante o Código de Processo Penal Militar, analisando as possibilidades de cabimento e as situações em que o Magistrado fica "impedido" de concedê-lo.

Serão abordados, ainda, os princípios que incidem diretamente na matéria ora trabalhada, com ênfase aos princípios da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da hierarquia e disciplina militares e da presunção de não-culpabilidade, todos eles admitidos pela Constituição Federal de 1988.

Por fim, será feita a abordagem constitucional sobre o tema, no intuito de observar se houve a recepção do dispositivo ora questionado, verificando se há guarida na Carta Magna para sua vigência ou se ele deve ser abolido do sistema legal, perdendo sua aplicabilidade junto aos Tribunais Militares.

Após a análise do material de pesquisa, pretende-se demonstrar com o presente trabalho que o dispositivo em comento não encontra guarida no novo ordenamento jurídico brasileiro, haja vista que vai de encontro com diversos direitos e garantias fundamentais, que jamais poderão deixar de ser observados em razão de uma qualidade do agente. Muito pelo contrário, eles devem proteger e tutelar a todos os cidadãos, sem distinção de carreira, função ou profissão, sob pena de se tutelar o chamado Direito Penal do inimigo.


2 O NOVO ORDENAMENTO JURÌDICO E A LIBERDADE PROVISÓRIA

Após o longo período ditatorial (1964-1985) vivido pelo Brasil, o constituinte originário de 1988, temente as restrições das garantias individuas comuns no passado, entendeu por bem criar uma nova ordem social trazendo para a nova Constituição Federal o Estado Social Democrático de Direito, inserindo, em grande parte, princípios explícitos protetores de direitos e garantias do homem, como liberdade, igualdade, dignidade, não-culpabilidade e vida.

Mas não foi a simples inserção de direitos que permitiu ao brasileiro tantas garantias, mesmo por que muitas delas também eram tuteladas nas constituições passadas. O fato de o país ter se tornado Democrático e Social revolucionou todas as formas de interpretação das leis e, assim, todos os Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) tiveram de se adaptar às mudanças decorrentes desta nova forma de Estado.

Desta forma, todas as normas pré-existentes, recepcionadas pela Constituição Federal, tiveram de ser reinterpretadas, agora sob a égide do novo Estado. Foi o que ocorreu com os diversos tipos de prisões provisórias admitidos até então.

Com a nova carta, a prisão se tornou medida de exceção, sendo a liberdade a regra a ser observada para todos os casos. Portanto, enquanto não for proferida uma sentença penal condenatória com trânsito em julgado, o sujeito só poderá ser privado de sua liberdade se preso em flagrante delito ou por decisão judicial que demonstre o fumus delicti (indícios de autoria e prova da materialidade da prática do delito) periculum libertatis (perigo de se conceder a liberdade ao suspeito), consoante artigo 5º, LXI, da Constituição [01].

Quanto a prisão provisória, Tourinho Filho manifesta-se:

[...] todas as legislações do mundo admitem, em maior ou menor intensidade, a prisão provisória [...] como um "mal necessário". Mal, porque põe em perigo o jus libertatis do cidadão, que a Lei Maior protege e preserva. Necessário, porque sem ela, muitas vezes, não se assegurariam a regular colheita do material probatório para um julgamento justo e o império efetivo da lei penal. [02]

Todavia, o constituinte originário não previu apenas a possibilidade de se formalizar a prisão cautelar, mas enfatizou a sua restrição conforme prescreve o inciso LXVI, artigo 5º, da Constituição Federal, determinando que "ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança".

Desta feita, diz ainda Tourinho Filho:

De qualquer sorte, essa prisão processual, pelos intensos sofrimentos morais, físicos e materiais que produz, por sua larga duração e porque fere um homem não definitivamente condenado, somente poderá ser admitida em casos de absoluta necessidade. Do contrário, não. [...] Daí falar-se em liberdade provisória em contraposição a prisão provisória. Em determinadas hipóteses, o Estado permite a substituição da prisão provisória por garantias equivalentes, sem os malefícios do cárcere, tais como a obrigação de comparecer em juízo sempre que necessário, a prestação de cauções etc. [03]

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Percebe-se que, apesar do receio do constituinte originário de que o Estado fosse utilizado novamente para mitigar direitos, intuindo também que a prisão cautelar é imprescindível em determinados casos para a garantia da aplicação da lei penal, logo, foi preciso garantir a liberdade, mas também possibilidade a sua privação.

2.1 A LIBERDADE PROVISÓRIA NA HISTÓRIA

A liberdade provisória não é um instituto moderno, uma vez que estudos remontam sua origem nos povos gregos e romanos. Assim descrevem Oliveira e Garcia Baz, citados por Trigilio:

A liberdade provisória, sucedâneo da prisão provisória, foi contemplada pelos antigos povos gregos e romano. Entre os gregos, naqueles casos que não envolviam conspiração política ou peculato, era lícito ao réu ficar em liberdade mercê de caução prestada por outros três cidadãos, os quais se obrigavam a garantir a presença do increpado nos atos processuais.

Entre os romanos, a partir da Lei das Dozes Tábuas, a liberdade provisória passou a ser considerada direito do imputado. O instituto somente conheceu seu ocaso com a troca do processo acusatório pelo advento do Império, que trouxe consigo um arrefecimento do respeito aos direitos individuais dos cidadãos. A liberdade provisória passou a ficar sob o poder discricionário do magistrado, como mero favor do Estado soberano. Antes da época imperial, porém, nos casos em que o crime não atentasse contra a segurança do Estado, o imputado poderia obter o benefício de defender-se em liberdade, pagando uma fiança ou apenas prestando compromisso pessoal de comparecer aos atos processuais, se fosse pobre. [04]

Noronha, citado por Mirabete, informa que era possível identificar a existência da liberdade provisória também nas leis portuguesas:

A origem desses sucedâneos, substitutivos da prisão provisória, remontam a Grécia e Roma e são frequentemente encontrados na legislação colonial pátria. Referia-se esta a menagem (de homenagem), concedida a pessoas de qualidade que, sob palavra, ficavam em liberdade durante o processo, em situação semelhante à prevista no artigo 264 do Código de Processo Penal Militar (Decreto-lei 1.002, de 21-10-1969); às cartas de seguro, de liberdade mediante processo judicial; à fiança, já constante das Ordenações Afonsinas, e a graça de fiéis carcereiros, pela qual o Príncipe, por motivos justos, permitia ao réu sair da prisão desde que apresentasse fiadores idôneos. [05]

No Direito brasileiro, o Código de Processo Criminal do Império (1832) admitiu apenas a liberdade provisória mediante fiança. Com a proclamação da República (1891), a nova constituição também previu o instituto da liberdade provisória mediante fiança, que restou regulamentada apenas pelo Código Penal de 1890, uma vez que os Estados-membros possuíam competência para legislar sobre matéria processual. [06]

Com a promulgação da Constituição de 1934, foi retirada a competência dos Estados-membros para regulamentar a matéria processual penal. Assim, em 1941, com a criação do Código de Processo Penal, foi criada a liberdade provisória com ou sem fiança. [07]

Com instituição do Código de Processo Penal Militar (1969), não foi conferida a possibilidade de liberdade provisória mediante fiança, sendo possível somente para os casos previstos nos artigos 253 e 270 – sem a necessidade de qualquer tipo de caução. Todavia, criou-se a menagem, artigo 263 [08] e seguintes do CPPM, espécie de liberdade provisória concedida a presos militares ou civis que estão sujeitos a jurisdição militar.

Fabiano Samartin Fernandes escreve sobre o tema:

A origem da menagem remonta da Grécia e Roma, referente à aférese da palavra homenagem, que segundo conceito de Tostes Malta é o benefício concedido a militares, assemelhados e civis sujeitos à jurisdição militar e ainda não condenados, os quais assumem o compromisso de permanecer no local indicado pela autoridade competente. É cumprida em uma cidade, quartel, ou mesmo na própria habitação, sem rigor carcerário.

[...]

A menagem tem dupla natureza jurídica. Com efeito, é prisão provisória, porque o homenageado não pode retirar-se do lugar para o qual foi ela concedida, sob pena de cassação, havendo um cerceamento da liberdade ambulatorial. Mas, por outro lado, a menagem é um benefício, uma vez que não é cumprida com os rigores carcerários.

[...]

O lugar da menagem é sempre fora do cárcere, tanto para o militar como para o civil, podendo ser na residência do réu, em lugar sujeito à administração militar ou na cidade, esta última modalidade equipara-se à liberdade provisória. [09]

Como o Código de Processo Penal Militar não foi reformado no que se refere à liberdade provisória, observa-se que a fiança não é admitida no âmbito da Justiça Castrense.

Atualmente, o instituto, além de permanecer tutelado no Código de Processo Penal e no Código de Processo Penal Militar, possui importância constitucional e encontra guarida no artigo 5º, LXVI, da Carta Magna de 1988, no Título dos Direitos e Garantias Fundamentais, tendo força de cláusula pétrea [10] e, portanto, não pode ser abolido pelo poder constituinte derivado.

2.2 CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA

A liberdade provisória é um direito subjetivo do acusado que, não presentes os requisitos da prisão preventiva e observados os requisitos legais, tem o direito de responder ao processo sem a necessidade de se recolher ao cárcere, ficando comprometido ou não a determinados deveres que o vincula diretamente ao processo e ao juízo processante para assegurar a aplicabilidade da Lei penal.

Nesse sentido, escrevem Capez e Colnago:

Trata-se de instituto processual que garante ao acusado o direito de aguardar em liberdade o transcorrer do processo até o trânsito em julgado, vinculado ou não a certas obrigações, podendo ser revogado a qualquer tempo, diante do descumprimento das condições impostas. [11]

Diz, ainda, Mirabete:

[...] Por este instituto, o acusado não é recolhido à prisão ou é posto em liberdade quando preso, vinculado ou não a certas obrigações que o prendem ao processo e ao juízo, com o fim de assegurar a sua presença ao processo sem o sacrifício da prisão provisória. É, pois, um estado de liberdade que pode estar gravado nas condições e reservas que tornam precário e limitado o seu gozo. [12]

Nas palavras de Nucci, citado por Mara Aparecida Trigilio:

É a liberdade concedida ao indiciado ou réu, preso em decorrência de determinadas espécies de prisão cautelar, que, por não necessitar ficar segregado, provisoriamente, em homenagem ao princípio da presunção de inocência, deve ser liberado, sob determinadas condições [13]

Nessa perspectiva, a liberdade é tida como provisória, uma vez que pode ser cassada a qualquer momento se descumpridas as obrigações impostas em Juízo ou se surgir algum requisito da prisão preventiva, motivo pelo qual o réu pode retornar à prisão.

Para Trigilio, a liberdade provisória é uma contracautela que serve para substituir a prisão processual. Ela utiliza este termo "contracautela", pois entende ser a prisão a própria cautela, sendo a liberdade provisória um elemento de contraposição, que inexiste sem o seu antecedente lógico que é a própria prisão cautelar. [14]

Destarte, o Estado entende desnecessária a manutenção do acusado em cárcere, mesmo porque deve prevalecer a presunção de inocência e o direito à liberdade, sendo a prisão cautelar uma medida que pode ser substituída no caso concreto por uma liberdade "assistida/vinculada", ou seja, o réu é liberto mas fica condicionado a certas obrigações que o mantém preso ao processo.

Borges, citando José Frederico Marques:

[...] a liberdade provisória é medida de contracautela porque destinada a eliminar os danos ao direito de liberdade que poderiam originar-se da prisão cautelar. Apresentando caráter instrumental negativo, em relação às medidas cautelares consubstanciadas na prisão provisória, ela se reveste, outrossim, da natureza de medida instrumental positiva como afirmação do jus libertatis. [15]

Para Costa, a liberdade provisória pode ser analisada em ângulos diferentes:

[...] a regularidade do processo e a defesa do indiciado ou réu. Como proteção individual do acusado, essa franquia libertária objetiva evitar as inconveniências oriundas da maléfica convivência do cárcere.

[...]

Pelo prisma da preservação da regularidade do processo, a liberdade provisória – impondo ônus e restrições – é ordenada com o fito de proteger a boa marcha da instrução criminal. Por força das obrigações processuais assumidas, fica o beneficiário da medida jungido aos atos do processo, sob pena de revogação da benesse, que poderá precipitar o seu encarceramento. [16]

Conclui-se dessa forma que a liberdade provisória é o instrumento jurídico que irá evitar a aplicabilidade da medida cautelar (prisão processual), uma vez que para determinados casos a prisão se torna medida excessiva, capaz de gerar futuros danos em razão de um processo moroso e, portanto, uma ameaça à dignidade da pessoa humana, ao direito de liberdade e à presunção de inocência; mas que também dará uma cautela ao Estado, posto que vincula o réu ao processo, em uma espécie de liberdade restrita, para que futuramente possa ser garantida a aplicação da lei penal. Trata-se de uma dupla segurança: ao réu, para que não tenha restrita a sua liberdade e ao Estado, para que o processo possa transcorrer até a prolação da sentença e, sendo esta condenatória, o cumprimento da lei penal.

2.3 A LIBERDADE PROVISÓRIA DO CÒDIGO DE PROCESSO PENAL MILITAR

O Código de Processo Penal Militar brasileiro, em seus artigos 253 e 270, estabelece as hipóteses de cabimento para concessão da liberdade provisória, nos seguintes termos:

Art. 253. Quando o juiz verificar pelo auto de prisão em flagrante que o agente praticou o fato nas condições dos arts. 35 (erro de direito), 38 (excludente de culpabilidade), observado o disposto no art. 40 (coação física ou material), e dos arts. 39 (estado de necessidade) e 42 (exclusão de antijuridicidade), do Código Penal Militar, poderá conceder ao indiciado liberdade provisória, mediante têrmo de comparecimento a todos os atos do processo, sob pena de revogar a concessão.

[...]

Art. 270. O indiciado ou acusado livrar-se-á sôlto no caso de infração a que não fôr cominada pena privativa de liberdade.

Parágrafo único. Poderá livrar-se sôlto:

a) no caso de infração culposa, salvo se compreendida entre as previstas no Livro I, Título I, da Parte Especial, do Código Penal Militar;

b) no caso de infração punida com pena de detenção não superior a dois anos, salvo as previstas nos arts. 157 (violência contra superior), 160 (desrespeito a superior), 161 (desrespeito a símbolo nacional), 162 (despojamento desprezível), 163 (recusa de obediência), 164 (oposição a ordem de sentinela), 166 (publicação ou crítica indevida), 173 (abuso de requisição militar), 176 (ofensa aviltante a inferior), 177 (resistência mediante violência ou grave ameaça), 178 (fuga de preso ou internado), 187 (deserção), 192 (deserção por evasão ou fuga), 235 (pederastia ou ato de libidinagem), 299 (desacato a militar) e 302 (ingresso clandestino), do Código Penal Militar.

Realizado o auto de prisão em flagrante ou a comunicação de flagrante, compete ao Juiz de Direito analisar se foram preenchidas as formalidades legais para manutenção da prisão, consoante disposto no artigo 244e seguintes do CPPM, bem como se foram respeitadas as garantias constitucionais do autuado.

Não sendo o caso de relaxamento de prisão, deve o juiz observar se o agente não praticou o delito acobertado por excludentes de culpabilidade ou antijuridicidade, em estado de necessidade ou sobre erro de direito, o que permite a concessão da liberdade provisória, sem pagamento de fiança, mediante termo de compromisso de comparecimento a todos os atos do processo [17].

Esta é a liberdade provisória regulada pelo artigo 253 do CPPM, que vincula o agente a comparecer a todos os atos do processo, todavia, é de difícil aplicabilidade pelo Juiz de Direito, haja vista que depende de uma análise aprofundada de como ocorreu o delito, necessitando de dados que nem sempre se encontram disponíveis no auto de prisão ou na comunicação do flagrante.

O artigo 270 do CPPM contempla, em seu caput, a possibilidade do réu livrar-se solto, ou seja, mesmo que tenha sido preso em flagrante, poderá responder ao processo em liberdade. Diferente da liberdade provisória regulada pelo art. 253 do CPPM, a liberdade provisória contida no art. 270 não vincula o agente ao processo, O legislador castrense vislumbrou que os delitos ali descritos são mais "leves" e, portanto, a prisão cautelar iria ferir a razoabilidade, posto que mesmo sendo proferida uma sentença condenatória, o réu não receberá pena privativa de liberdade ou a pena aplicada será cumprida em regime prisional aberto ou semi-aberto, pelo que a restrição à liberdade seria por demais excessiva.

Todavia, o parágrafo único trouxe algumas vedações a concessão da liberdade provisória. A alínea "a" determina que o réu livra-se solto se cometer crime culposo, desde que o delito praticado não atente contra a segurança nacional, consoante tipificação contida no Livro I, Título I, da Parte Especial do Código Penal Militar.

Já a alínea "b" informa que o réu poderá ser liberto desde que cometa crime não punido com pena de detenção não superior a 2 anos, salvo se encontra no rol ali expresso, para os quais não caberá a concessão da liberdade provisória.

No que tange às hipóteses de vedação à liberdade provisória contidas no artigo 270 do CPPM, Chila informa que

nos crimes militares dolosos punidos com pena de detenção superior a dois anos e nos crimes militares punidos com pena de reclusão, mais os delitos expressamente indicados pelas alíneas a e b, do parágrafo único, do art. 270 do CPPM, não cabe liberdade provisória ao agente que tenha sido preso em flagrante, pois, em face da natureza e da gravidade da infração cometida, o legislador castrense desacolheu a possibilidade de restituí-lo à liberdade. [18]

Não obstante as hipóteses elencadas nos artigos 253 e 270 do CPPM, não basta que o réu tenha preenchido as exigências ali impostas para que possa responder o processo em liberdade, é imprescindível que não estejam presentes os requisitos para decretação da prisão preventiva, consoante artigo 271 [19] do CPPM.

Faz-se mister destacar que legislador considerou os delitos relacionados na alínea "a", do parágrafo único, do art. 270 do CPPM aviltantes à disciplina e hierarquia militares, sendo que estes são princípios basilares da organização militar, nos termos dos artigos 42 [20] e 142 [21] da Constituição Federal, o que deu ensejo a proibição da liberdade provisória.

Tais princípios encontram-se regulamentados pelo Estatuto dos Militares [22], consoante artigo 14:

Art. 14. A hierarquia e a disciplina são a base institucional das Forças Armadas. A autoridade e a responsabilidade crescem com o grau hierárquico.

§ 1º A hierarquia militar é a ordenação da autoridade, em níveis diferentes, dentro da estrutura das Forças Armadas. A ordenação se faz por postos ou graduações; dentro de um mesmo posto ou graduação se faz pela antigüidade no posto ou na graduação. O respeito à hierarquia é consubstanciado no espírito de acatamento à seqüência de autoridade.

§ 2º Disciplina é a rigorosa observância e o acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições que fundamentam o organismo militar e coordenam seu funcionamento regular e harmônico, traduzindo-se pelo perfeito cumprimento do dever por parte de todos e de cada um dos componentes desse organismo.

§ 3º A disciplina e o respeito à hierarquia devem ser mantidos em todas as circunstâncias da vida entre militares da ativa, da reserva remunerada e reformados.

Ao fazer o estudo destes princípios, Carvalho cita os ensinamentos de José Afonso da Silva e Macedo Soares:

Para JOSÉ AFONSO DA SILVA, hierarquia "é o vinculo de subordinação escalonada e graduada de inferior a superior", por sua vez, disciplina "é o poder que tem os superiores hierárquicos de impor condutas e dar ordens aos inferiores. Correlativamente, significa dever de obediência dos inferiores em relação aos superiores." Partindo dessa afirmação é possível notar o fato de que a hierarquia e disciplina militar entrelaçam-se sobremaneira, que são ambas interpenetráveis e indissociáveis. Em conseqüência do referido embasamento, MACEDO SOARES assevera que "a subordinação pela obediência é a base da disciplina militar."(destaque do autor)

Contudo, deve-se atentar para a inconfundibilidade desse bens jurídicos, como bem salienta JOSÉ AFONSO:

"Não se confundem, como se vê hierarquia e disciplina, mas são termos correlatos, no sentido de que a disciplina pressupõe relação hierárquica. Somente se é obrigado a obedecer, juridicamente falando, a quem tem o poder hierárquico. ‘Onde há hierarquia, com superposição de vontades, há, correlativamente, uma relação de sujeição objetiva, que se traduz na disciplina, isto é, no rigoroso acatamento pelos elementos dos graus inferiores da pirâmide hierárquica, as ordens, normativas ou individuais, emanadas dos órgãos superiores.’ A disciplina é, assim, um corolário de toda organização hierárquica."(destaque do autor) [23]

Ao fazer a análise destes princípios é possível entender os motivos que ensejaram o legislador castrense negar a liberdade provisória para os delitos elencados no artigo 270, parágrafo único, alínea "b", do CPPM. Diante de tamanha afronta que eles proporcionam à hierarquia e disciplina militar, manter o réu solto feriria de morte a ordem e a disciplina na caserna, proporcionando o igual desrespeito pelas normas de conduta por entre seus pares. Logo, o caos poderia se estabelecer dentro das organizações militares.

Sobre os autores
Pedro Cesar da Fonte Nogueira

Professor universitário, especialista em direito público e em direito criminal

Rejane Alves de Arruda

Advogada, Mestre e Doutora em Direito pela PUC/SP.Coordenadora do Curso de Pós-Graduação lato sensu em Direito Criminal da UCDB, Orientadora do Trabalho de Conclusão de Curso da Pós-graduação.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FONTE NOGUEIRA, Pedro Cesar; ARRUDA, Rejane Alves. O artigo 270, parágrafo único, alínea b, do Código de Processo Penal Militar, perante a Constituição Federal de 1988. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2509, 15 mai. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14852. Acesso em: 24 dez. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!